MAIS UM PARA O BANDO

A FRA, atentas às circunstâncias, pediu a retirada das tropas portuguesas a curto prazo, porque os aconteci­mentos em Luanda traduziam uma hostilidade insustentável contra a Junta Governativa. Com o mesmo intuito, preco­nizou imediatas conversações dos representantes dos movi­mentos de libertação para uma plataforma de entendimen­to político. E exigiu que, dessa reunião, estivessem ausen­tes os elementos governativos portugueses que, a obter-se acordo, se limitariam a funções meramente administrativas.

Correia Jesuíno reagiu brutalmente, decretando que a FRA e duas outras organizações fossem classificadas de associações de malfeitores, com penas de dois a oito anos de prisão para os seus membros.

Não nos intimidámos e continuámos a trabalhar, mais disciplinados e conscientes. O nosso comité militar es­tudara as operações a cumprir em Luanda, num total de 62 (três de carácter civil); tinha um conhecimento minucioso dos quartéis e suas disponibilidades em homens e mate­rial; e contava com a adesão de muitos oficiais. Mas, caren­tes de armas e querendo impedir a todo o transe a efusão de sangue, hesitámos. Entretanto, os militares portugueses, instrumentalizados, sorriam à vista dos desvarios do MPLA.

Por isso, finalmente nos decidimos por um acto de força, que irradiaria de Luanda para as restantes cidades angolanas. Não havia alternativa: só a força convenceria os movimentos de libertação a negociar. Procurámos auxílio no exterior: na África do Sul, na Rodésia, em França, nos Estados Unidos. Pessoalmente agi nesse sentido. E é curio­so registar que todas as entidades com quem chegámos à fala, punham uma condição: a de que não se faria um movi­mento racista que nunca tinha estado nas nossas inten­ções. Para poupar tempo e tornar, a priori convincentes os meus argumentos, solicitei ao presidente da UNA, Angelino Alberto, e ao dr. Pinheiro da Silva, que connosco colabora­vam, que me acompanhassem nas negociações. A presença de dirigentes da etnia negra dispensaria preâmbulos e objecções sobre hipotéticos intuitos racistas.

Andámos de Herodes para Pilatos, animados com promessas. Que desencadeássemos o golpe, pois logo viriam apoiar-nos garantiam-nos. Doloroso período, em que nos interrogámos como prosseguir. Rosa Coutinho ordenara a entrega das armas na posse de civis, que, inermes, se in­quietavam e desesperavam.

Andámos de Herodes par Pilatos, animados com promessas. Que desencadeássemos o golpe, pois logo viriam apoiar-nos garantiam-nos. Doloroso período, em que nos interrogámos como prosseguir. Rosa Coutinho ordenara a entrega das armas na posse de civis, que, inermes, se in­quietavam e desesperavam.

No palco do drama em que éramos actores involun­tários, apareceu um personagem intrigante: o capitão Gil, que os grupos políticos assediavam, na eminência da evolu­ção para a independência, que se antevia catastrófica.

          Dos primórdios do MFA em Angola, chefe do Sector Operacional de Luanda, o capitão Gil foi, mais tarde, co­mandante dos Comandos. Sempre o respeitei, ainda que discordássemos frontalmente dos métodos seguidos para a "original descolonização". Afirmava a sua confiança, mais, a sua fé nos resultados das negociações e sentia-se seguro de que não haveria sobressaltos, nem violência, nem desas­tres, no decurso do processo, até à sua conclusão. Baseava--se na suspeitíssima observância de que segundo ele os movimentos de libertação manteriam os princípios por que se tinham batido. A sua determinação, como a sua lealdade à pureza de espírito do 25 de Abril, filiavam-se no amor à justa causa do povo angolano. Não seriam abertos alçapões, nem desvios. As Forças Armadas garantiriam a ordem e opor-se-iam a retaliações.

Era um romântico e um ingénuo.

As nossas relações foram pautadas por um tom de civilidade. Os ideais situavam-se em campos, não direi anta­gónicos, mas diferentes. De qualquer modo, antagonismo de ideias não obriga a aversões pessoais. Cada um se guiava pela sua consciência e por aquilo que aceitava como obri­gação. Ao fim e ao cabo, eu era o realista.

Batiam-lhe à porta, a mendigarem apoio. O dr. Mabélio de Albuquerque manejava para enredar o capitão na sua teia. Tantos outros...

Gil movimentava-se em cena, sem pendor para as realidades. Teimoso, obsecado por um ideal que não era o dele.

Integridade ou cobardia?

Passado o 23 de Outubro de 1974, membros da FRA deram-no como denunciador. Sempre o defendi do apodo infamante. Continuo a não acreditar que traiu a FRA. Guardo os seus cartões timbrados dos "Comandos" e recordo o nosso último encontro, no Matadouro de Luan­da. Discutimos, como sempre, as consequências trágicas que o prosseguimento da política de Rosa Coutinho impli­cariam para Angola; e o desprezo das Forças Armadas pela salvaguarda de vidas e bens. Para ele, eu era o pessimista. As minhas razões foram confirmadas, a posteriori como sensatas e oportunas. O capitão era um cego que não que­ria ver... Ao despedir-se, rogou-me: "Engenheiro! Unam-se todos. Unam-se todos..."

Infelizmente, quatro dias depois, em 23 de Outubro de 1974, tudo se desmoronou à minha volta, incluindo a confiança no capitão Gil que, na Metrópole, passou a trabalhar num dos gabinetes da Reforma Agrária, em Évora, bem perto do "intocável conselheiro" da Revolução, Pezarat Correia. O fulgor das estrelas nas mangas ou nas plati­nas do general arvorado não ofuscou as manchas de sangue nas suas mãos, nem a cruz da ignomínia que transporta aos ombros.

Cardoso da Silva recomendaram-me o capitão Gil, como alguém que Lisboa indicara como intermediário váli­do. Enganou-se ou foi enganado?

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