ENTRE A ESPERANÇA E O DESESPERO
6.1 — As boas palavras
Há três ministros portugueses no Governo de Transição. Ou pela própria natureza das suas funções ou porque o processo de abandono efectivamente já começou, têm-se abstido de qualquer atitude política. E os brancos, aqui nascidos ou radicados, respiram mais fundo cada vez que os novos governantes de raça negra reafirmam que é angolano todo aquele que nasceu em Angola, fixou residência em Angola e ama sinceramente esta terra.
Um deles é meu pai.
Ontem, depois do jantar, meti conversa:
— Então, pai, que me diz do novo Governo?
— Parece-me bem intencionado.
— Na sua boca são palavras de grande elogio...
— Na minha boca?! — reagiu ele, vincando as rugas verticais da testa. — Alguma vez me conheceste o vício da intransigência?
— Não. E desculpe o deslize. Mas lembrei-me das suas convicções.
— O que disse em nada as afecta. Continuo saudoso do meu sonho de um Portugal do Minho a Timor. Mas deves lembrar-te de que, nesse meu ideal de uma grande Pátria, sempre defendi uma completa igualdade para todos os seus cidadãos...
— E lembro: uma pátria grande e original, em que um preto de Angola pudesse ascender naturalmente à Presidência da República e Luanda viesse a ser a capital da Nação.
— Exactamente.
— Uma bela utopia!
— Não era utópica, não! Simplesmente, sobreveio o mais terrível veneno das pátrias: a Traição!...
— O pai fez o que pôde...
— Que podia eu?!
— Defendeu as suas ideias com sincero amor a esta terra. Posso testemunhar que foi um grande lutador.
— Que termina vencido.
— A sua dedicação a Angola continua.
— E continuará, enquanto tiver um sopro de vida. Por isso me alegro quando as declarações dos novos governantes revelam maturidade, realismo e bom senso. Que Deus os ajude!
— Acha que precisam?
— Muito. Deixaram-se degradar estruturas vitais. Criaram-se maus hábitos muito mais fáceis de adquirir que de emendar e, para complicar tudo isto, entrou-se numa profunda crise de autoridade. Não é assim?
— Talvez fosse inevitável.
— Em certa medida, aceito que teria de haver um período de descompressão, em que os adeptos da independência exprimissem a sua alegria. Mas, se ainda compreendo o que se passa à minha volta, não foi bem isso o que aconteceu. O que mais se nota nas populações é uma grande preocupação.
— A seguir ao 25 de Abril, o ambiente geral pareceu-me de satisfação e cordialidade...
— Também a mim. Mas durou pouco. E quando o ódio começou a fazer vítimas inocentes, e as estruturas económicas sofreram os primeiros abalos, os governantes, ou traíram preconcebidamente, ou deixaram-se arrastar pêlos acontecimentos, receando que uma actuação firme os complicasse ainda mais.
— Não lhe parece justificado um tal receio?
— Nem ponho a questão, porque há uma verdade acima dela: o primeiro dever de um governo é governar.
— Bem: mas isso é já o passado. E eu gostaria de o ouvir falar sobre o presente.
— O presente anda cheio de boas palavras. Mas não é com palavras que se constrói o futuro...
Olhou-me silenciosamente, durante um longo minuto e, depois, continuou:
— Sei que és um sincero adepto da total independência de Angola e, por isso mesmo, não gosto de te contrariar; mas queres saber qual continua a ser a minha opinião?
— Creio que sei...
— A independência de Angola só pode acontecer na Independência de Portugal. Não acredito noutra!
Fitei-o com certa estranheza, por verificar que ainda não tinha mudado nada. Depois, comentei:
— Belo, mas ultrapassado!
— Talvez — murmurou ele com olhos distantes. — Mas até o chefe da guerrilha na Guiné era da mesma opinião...
— O quê?!...
— Exactamente o que te digo. Em 1971, o eng. Amílcar Cabral declarou que, se Portugal tratasse o seu ultramar em plena igualdade com a Metrópole, de forma que um negro da Guiné ou um mestiço de Cabo Verde pudessem ascender à Presidência da República Portuguesa, eles não teriam de lutar pela independência, «porque já seriam independentes num quadro mais vasto e muito mais eficaz do ponto de vista histórico».
— Isso é verdade?!
— Foi ele próprio quem o disse, em entrevista para a revista «Anti-colonialismo». Posso mostrar-te o «recorte» que ainda conservo em meu poder.
— Espantoso!
— Certo! — rectificou meu pai — Amílcar Cabral era um homem de formação portuguesa. E por isso o assassinaram... Existe uma realidade que vocês, os puros idealistas da independência, parece que nunca descobriram ou já esqueceram. E é que toda a Campanha contra Portugal tem sido conduzida pelas grandes potências, principalmente pêlos russos, que pretendem substituir os portugueses em África. E são eles que agora mandam em Lisboa... Tens dúvidas?
— Sinceramente, tenho!
— Eu, não. Mas oxalá seja eu que esteja enganado!...
6.2 — Entrevista
Creio ter já dito que a face humana desta cidade está a sofrer uma rápida transformação. A grande massa dos subúrbios, que representa mais de dois terços da população luandense, começa a emergir da penumbra em que viveu até há poucos meses. É ela que fala, argumenta e reivindica.
Com a teimosa esperança que é uma das suas características étnicas, os brancos de Angola compreendem a situação e nem estranham o facto de terem desaparecido, quase completamente, das gravuras dos jornais e revistas. Os angolanos de cor subiram definitivamente para o primeiro plano da vida política e social.
Os homens que andam na boca do grande público e nos noticiários da imprensa e da rádio são, agora, além dos presidentes dos movimentos de libertação e dos novos governantes, os seus mais directos colaboradores, com predomínio dos elementos das etnias negras.
As figuras de vértice — Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi — até há pouco só bem conhecidas dos seus militantes, definem-se perante o conjunto das populações.
A minha profissão de jornalista tem-me oferecido algumas oportunidades de contacto com os actuais responsáveis pelo destino desta terra. Parecem-me homens convencidos das suas verdades, mas simples, afáveis -e compreensivos. Gosto da sua facilidade de expressão, tão característica dos povos bantus, da sua maneira directa de encarar os problemas, da sua enorme vontade de encontrar os melhores rumos para a Angola do futuro.
Ontem, entrevistei um dos membros do Governo de Transição. Antes de qualquer pergunta, tomou a iniciativa de afirmar a importância da imprensa! Entrelaçou os dedos das mãos sobre os joelhos, esteve durante um longo minuto com os olhos alongados, através da ampla janela, para a cidade velha que descia até aos modernos arranha-céus da Avenida Marginal e disse:
— Os jornais exercem uma grande influência sobre as massas — disse — e, nesta hora de Angola, é imperativo que a exerçam no melhor sentido...
— Pode haver concepções diferentes do que seja esse «melhor sentido» — insinuei.
— Claro que pode. Mas, na presente conjuntura da nação angolana, não nre parece difícil encontrar um ponto de convergência.
— Como definir as coordenadas desse encontro?
— Basta que os jornalistas se orientem pela realidade essencial desta fase histórica de Angola. Vivemos uma fase de transição para o pleno exercício da soberania. É nas dificuldades da travessia desta ponte que se conjugam presentemente os esforços de um governo com igual representação de cada um dos três Movimentos. Haverá algum bom angolano que não deseje uma travessia sem perigosas colisões?
— Com direito ao qualificativo de bom, não há.
— Então, aí está o ponto de convergência: não complicar ainda mais as tarefas do Governo de Transição. Ou, por outras palavras: evitar tudo quanto nos divida, num momento em que precisamos do esforço conjugado de todos. Certo?
— Certíssimo! E, pela minha parte, dentro da modéstia das minhas possibilidades...
— Não há, nas minhas palavras, qualquer alvo pessoal — atalhou o ministro. — Nem sequer sugiro que os jornalistas sacrifiquem as suas ideias ou se diminuam na sua personalidade. Apelo apenas para o bom senso de todos, no sentido de atenderem agora ao que é essencial.
— Nos domínios do essencial podem inscrever-se vários temas...
— Creio serem do conhecimento geral. Salvaguardadas as indispensáveis condições de paz, é preciso que a juventude continue a estudar, que os trabalhadores continuem a trabalhar e que os erros antigos sejam gradualmente corrigidos, sobretudo no que respeita à equitativa distribuição da riqueza por aqueles que efectivamente a produzem. E repare que, afinal, ainda não saímos do primeiro problema, porque tudo isto se insere no quadro das condições de paz.
6.3 — Situação explosiva
Na redacção do meu jornal, discutia-se a conferência de imprensa dada em Kinshasa pelo presidente da FNLA, por motivo da comemoração do 14.° aniversário do 15 de Março de 1961.
— Quando Holden Roberto considera explosiva a situação em Angola — começou o Santos Gouveia — faz-nos um aviso terrível.
— Quem me avisa meu amigo é — sentenciou o Sousa Quevedo. — E as palavras do presidente da FNLA são objectivas, embora cautelosas. «Não é minha intenção entrar em polémica com quem quer que seja
— afirmou ele. — Mas, em função dos acordos de Alvor, a situação em Angola preocupa-me realmente. Tenho a impressão de que as assinaturas não estão a ser respeitadas e isso é grave. Eu considero a situação em Angola explosiva. É um vulcão. Dizem-me que há movimentos que se opõem às eleições. Boatos que nos chegam aqui e que não sei se será assim ou não. Mas as eleições fazem parte dos acordos de Alvor. Por isso as eleições devem ter lugar...»
— Nestas afirmações — concluiu o Sousa Quevedo — vejo apenas uma honesta preocupação, misturada ao desejo de evitar maior efusão de sangue.
— Certo! — concordou o Santos Gouveia. — Mas não se absteve de afirmar que não há segurança em Angola, especialmente em Luanda.
— E é mentira?
— Bem...
— Bem, uma ova! Toda a gente sabe dos assaltos que todos os dias se praticam em Luanda. E Holden Roberto não tem medo da verdade.
— Ando pelas ruas de Luanda e ainda me não aconteceu nada — alegou o Santos Gouveia.
— Pode acontecer-te amanhã — interferi do meu lado. — Ao Cardiga, que é do MPLA como tu, ontem, em plena Baixa e à luz do dia, roubaram--Ihe 4 contos, arrancaram-lhe o relógio do pulso e bateram-lhe.
— São coisas que acontecem em toda a parte.,.
— Não com este descaramento e sem que a polícia ou a tropa intervenham. O Jorge Penha, que trabalhava na Robert Hudson, foi ontem levar a bagagem para o Infante Dom Henrique, em que regressa a Portugal. Os dois carregadores negros que contratou começaram por pedir 300 escudos à hora; depois de içarem para bordo a primeira mala, pediram 600 — e o Jorge, apesar dos protestos da mulher, que estava com ele, pagou. Daí a meia hora, pararam e declararam que só trabalhavam por 1 200 escudos para cada um. Aí, o Jorge refilou. Então o carregador sacou do bolso uma navalha de ponta e mola, apontou-a ao peito do branco e ameaçou:
— Pagas, e já! Senão...
A mulher do Jorge, aflitíssima, correu até um polícia, que rondava perto, e contou-lhe o que se passava.
— Não posso fazer nada, minha senhora! — disse o guarda envergonhadamente. — Estamos rigorosamente proibidos de intervir...
— Tem de se atender à conjuntura — teimou ainda o Santos Gouveia.
— Holden Roberto está bem dentro dela e exprime claramente os seus receios — disse o Sousa Quevedo.
— O presidente da FN1A fala dentro de um certo ideário político e com uma determinada intenção — explicou o Santos Gouveia. — Não aceita o Poder Popular...
— Vamos apreciar as coisas com serenidade — aconselhei eu — Holden Roberto também diz que está ao lado do povo. Mas entende que o povo manda através dos homens que livremente escolhe para o exercício do poder. E, nisto, parece ter o acordo de Jonas Savimbi. Nenhum deles quer a anarquia.
— E o dr. Agostinho Neto quer?! — refilou o Sousa Quevedo.
— Ninguém disse isso, pá! Estou a tentar explicar posições diferentes: mais nada! E nem sequer vou dizer qual é a que julgo melhor. Todos temos de fazer um esforço para compreender o que se passa, o que não é nada fácil nem agradável. Ora, enquanto dois dos movimentos tendem para um regime democrático, baseado no voto secreto dos cidadãos, há um terceiro que se apoia na força emocional das massas, pretendendo que o povo participe directamente no exercício do poder. Por outras palavras: o dr. Agostinho Neto luta contra a ideia duma burguesia negra que substitua a burguesia branca. E a sua arma é o Poder Popular.
— Também o dr. Savimbi se apoia no povo — argumentou o Santos Gouveia.
— Bem sei — confirmei eu. — Qualquer dos movimentos em armas quer o apoio popular e precisa dele. A diferença está nos processos. Holden Roberto e Savimbi concordam em que a vontade do povo se manifeste pelo voto secreto, em eleições livres. Agostinho Neto prefere que as massas populares reajam agora, organizando-se para manifestar a sua força e exprimir directamente a sua influência política. Dum lado temos o processo clássico da Democracia; do outro há um processo revolucionário semelhante ao que presentemente se verifica em Portugal.
— E para que lado pendes? — atacou rudemente o Sousa Quevedo.
— Para nenhum. Como jornalista, procuro observar os factos como eles são e interpretar lealmente o pensamento dos líderes políticos da hora presente. Quando me enganar, aceitarei que me corrijam e darei publicamente a mão à palmatória.
— ...Lavando-a primeiro na bacia de Pilatos — rosnou o Sousa Quevedo.
— Merda para as tuas piadas de comício barato! — explodi com certa irritação. — Reconhecer um erro é o contrário de fugir às responsabilidades.
— Merda, digo eu, para a tua atitude de juiz arbitrai — vociferou o outro. — Tu não tens ideias próprias, pá?!
— Claro que tenho. Mas não as devo inserir no pensamento alheio. Isto, como jornalista. Como angolano, sei que vivemos numa fase política muito delicada. Não quero escrever uma só palavra que possa contribuir para cavar ainda mais as dissidências que já existem. Achas que faço mal?
— Acho que a tua calma é indecente — definiu o Sousa Quevedo, desistindo de me convencer.
Só então reparei que o Baldaque ainda não tinha dito uma única palavra. E decidi sacudi-lo daquela espécie de torpor meditativo:
— E tu, dorminhoco, que pensas dos três movimentos de libertação?
— Não acredito em nenhum — respondeu ele soturnamente. — Há uma vil traição em curso...