DE VOLTA AO COMBATE

Um combatente se sente renascer quando, afastado finalmente de tudo que não seja a situação de guerra, caminha através de mata, arma em punho, cantil na cintura, olhos e ouvidos aguçados. Naqueles momentos ele é rei, é lei, é vida e é morte. E perto desta, a vida passa a ter mais valor, mais sabor.

Avançamos pela trilha, distanciados de cinco homens, em silêncio. Uma chuva fina começa a cair para nosso júbilo, pois apagará pistas e confundirá ruídos.

O declive termina, vamos entrar na planície; a fronteira foi deixada para trás. Levanto o braço esquerdo e me agacho. Todos me imitam sem ruído e passo a ordem: sair da trilha, camuflar-se na vegetação e esperar o anoitecer. Todos se acomodam da melhor maneira, cobertos pela lona individual, pois a chuva engrossou e parece que vai durar. Entregues aos pensamentos, deixamos a tarde morrer. Só se ouve o barulho das gotas caindo...

A noite ainda não chegara, mas uma neblina adensava-se entre as árvores, tomando-as apagadas. Achei por bem avançar.

Dei o sinal e como fantasmas em suas capas de lona negra foram saindo de suas tocas, sacudindo-se da água acumulada. Debaixo da garoa fina que volta e meia aumentava progredimos em território inimigo. Logo o suor produzido pela marcha forçou-nos a retirar as capas, embrulhadas e colocadas de novo nas mochilas, deixando nossa roupa molhar, mas equilibrando melhor o calor do corpo.

O terreno, que há muito deixara de ser limpo ou habitado, agora cobria-se de alta vegetação que agarrava-se a nós e procurávamos evitá-la, serpenteando entre as "ilhas" de mato, mas sem escapar do capim, que me preocupava bastante devido ao rastro deixado. Era impossível apagar todos os sinais numa longa caminhada ou progredir em linha aberta, o que marcaria menos, mas os acidentes de terreno não permitiam.

Paulo ia à frente, conhecia a região, seguido de mim e fechando a coluna ia Alex, um português que não fora aceito nos comandos em Angola por intrigas de inimigos pessoais, tornando-se depois desta chance negada quase um vadio, sem trabalhar, sem cortar a barba e o cabelo, andando inclusive descalço.

Resolvi lhe reabilitar contra todas as opiniões, sabia que era um elemento valioso.

Uns dez dias antes da partida, lhe comuniquei que haveria algo e ele seria aceito se obviamente mudasse seu comportamento. No dia seguinte um novo homem aparecia à minha frente: barba raspada, cabelos cortados à militar, porte ereto e botas!

Cheio de entusiasmo, passou a fazer exercícios físicos pelas manhãs, deixando inclusive as costumeiras bebedeiras de lado. E não me enganei, tornou-se um combatente eficaz, sacrificado, fiel, conquistando o lugar de "cerra-fila", importantíssimo numa guerrilha, pois é o indivíduo que apaga os rastros, permanecendo atento à retaguarda, nos ruídos de uma possível perseguição, um posto para homens de confiança.

As nuvens baixas do temporal eram instáveis, às vezes deixando surgir uma lua enorme, clareando tudo e semeando sombras.

Depois de andar por horas chegamos a locais habitados, com grandes machambas (plantações), de milho principalmente. E nos milharais havia vigias quase sempre acompanhados de cães vadios, aquecendo-se na pequena fogueira que queima por toda a noite, debaixo de um abrigo de palha. Aqui e ali, extensas faixas de terra preparadas para plantar complicavam-nos a progressão, pois nossa passagem deixaria profundas marcas no solo macio e molhado.

Um cachorro desata a latir feito um desalmado, sentindo a nossa presença, denunciando-nos. Era o primeiro cão comunista que encontrava, mas na hora não senti graça alguma. Afastamo-nos com rapidez, dando   uma longa volta, mas caindo em uma plantação que além de maior, era limitada por um profundo riacho, estreito, mas não o suficiente para que passássemos sem ter que afundar até o pescoço, erguendo armas, munições e mochilas acima da cabeça, produzindo inevitáveis ruídos.

Depois do rio, um barranco alto e despido. Quanto estávamos no meio da subida, as nuvens se espaçaram e a lua brilhou sobre nós. Angustiado, vi as sombras projetadas, compridas silhuetas em negro, cortando o aclive.

Um vigia começou a bater numa lata, rompendo o silêncio da noite, fôramos vistos sem dúvida e as batidas, fortes como as do meu coração no momento, prometiam caçada para o dia seguinte. Sabia que com pista ou sem ela, amanhã nos procurariam por todo o lado.

Tinha que tirar o pessoal daquela perigosa zona fronteiriça em marcha forçada, mas Silva, o gordo, começava a apresentar problemas que eu j á esperava e temia. Caíra várias vezes e as paradas para descansar tinham se tornado frequentes, alguns outros também estavam fatigados devido à progressão pelo terreno molhado, mas era preciso seguir.

Empurrava-os, ora ameaçando deixá-los para trás, ora animando-os; não queria amanhecer em perigo, numa má posição, teríamos que acampar em terreno que nos favorecesse e para isso urgia sair daquele buraco, chegar aos morros que se delineavam no horizonte.

Malgrado meus esforços e a tentativa de aliviar o peso das mochilas de quem estava mais estafado, transferindo parte da carga a outros mais resistentes, não foi possível levá-los adiante. A chuva, a lama, a vegetação, o peso do equipamento e a marcha forçada haviam colocado dois dos homens completamente esgotados, sem condições de caminhar alguns metros.

Estávamos em uma pequena elevação, no sopé de outra bem maior onde pretendia passar o dia, mas a única solução foi sairmos do capinzal, espalhados em linha, cada qual apagando seu rastro e enfiar-nos numa "ilha" de mato cerrado que se erguia no declive adiante, distante uns 200 metros. Péssima posição, escondida, mas de maneira que o inimigo nos pegaria sempre de cima para baixo e à retaguarda só escaparíamos rolando ladeira abaixo, caindo provavelmente em campo aberto.

Cada qual isolou-se num canto entre as árvores, num raio de uns 15 metros e cobertos pela capa adormeceram de imediato. Permaneci sentado algum tempo, esticando-me depois no solo, mas sem pregar o olho. Estava excitado demais para dormir, sentia-me como caça que pressente o perigo, fôramos detectados e ainda estávamos cerca de uns 4 quilómetros distanciados do maldito milharal, embora caminhássemos muito mais devido aos zigue-zagues que nos vimos obrigados a realizar, progredindo num terreno cheio de obstáculos e um famigerado rio, repleto de curvas fechadas, com o qual topamos umas três ou quatro vezes.

O dia amanheceu limpo, dando-me um nó na garganta. Mas só restava continuar deitado ou sentado, esperando a acolhedora noite voltar.

Aquela zona era bastante habitada e ouvíamos ruídos de conversas e trabalhos domésticos, em casas que provavelmente teríamos encontrado se progredíssemos mais algumas dezenas de metros à frente!

Por associação de situações, veio-me a lembrança de anos atrás estar sentado na porta de um pequeno Piper Cub que sobrevoava a praia de Itajaí, Santa Catarina, a uns 1200 pés de altura e eu, com as pernas dependuradas para fora e o pára-quedas às costas, preparava um salto no vazio. Era o terceiro ou quarto que dava, principiante, e só naquele é que tive bem a noção dos fatos, antes encobertos pelo entusiasmo. Veio o medo se infiltrando e pensei: "ninguém mandou me meter nesta fria, podia estar muito bem lá embaixo tomando uma cerveja..."

E agora também, podia estar em Pinhal, minha cidade, tomando uma batida no bar do "Tekila", com "muitos anos de vida pela frente" ao invés de estar aqui contando os minutos, esperando a qualquer momento a visita da morte, velha namorada... "quem mandou me meter nesta fria?...".

Logo identificamos barulho de armas e guerrilheiros da ZIPA -Zimbabwe (Rhodésia) Independence People Army - iam e vinham à vontade em suas casas!

         Havíamos caído num vespeiro de guerrilheiros rhodesianos, tropas tanzanianas e advisers cubanos, que substituíam a decadente  Frelimo naquela zona perigosa. O mínimo movimento desastrado e o barulho poderia atrair o inimigo para cima de nós, visto que deveriam ter recebido informações sobre nossa passagem e estavam em alerta.

O sol apareceu, aquecendo-nos e dei a contragosto, permissão para tirarem as botas e secarem as meias. Não era aconselhável, mas por outro lado a caminhada que nos esperava logo mais exigia pés e meias em boas condições. Preferi ficar calçado, sentia-me nu sem as botas quando em situação de guerra.

Outros dois problemas logo apareceram: a tosse e o cigarro. Os corpos molhados durante várias horas se ressentiam e a tosse veio, irreprimível e violenta. Os homens tornavam-se roxos, tapando aboca com as mãos fortemente e agitando-se em espasmos para contê-la.

Uma mistura de licor Cointreau com mel, que, precavido trouxera, amenizou um pouco o problema, mas criou outro, a falsa crise de tosse para poder bebê-lo!

O vício do fumo, que eu não tenho, obrigava-me a não proibi-los totalmente apesar do perigo, porque não sei aquilatar a intensidade desta vontade, desta falta e suas consequências no estado psicológico dos meus companheiros. Fumava-se por turnos, tragando e espalhando com as mãos a fumaça que escapava, precauções que não dissipavam o odor, sentido à distância na mata, pelo menos por um não fumante.

Embora alguns glutões passassem o tempo a mastigar o biltong, nada comi, sem apetite. Chegamos ao meio dia incólumes e a tarde seguiu-se, com todos nós acompanhando as horas pelos relógios, uma por uma. O pôr do sol séria às 18:30h e isto significava uma mão estendida para nos tirar de um atoleiro.

14,15,16 horas, chegaremos lá, apesar do movimento à nossa volta! Já esperançosos, víamos o ponteiro ir chegando às 17 horas, quando à minha esquerda pressentiu-se o caminhar de guerrilheiros conversando entre si, demonstrando que não imaginavam nossa proximidade e pelo lado que vinham não podiam estar seguindo pista alguma. O barulho de galhos se partindo aumentou, estavam penetrando na mata justamente na direção onde estavam Póvoa, eu e mais perto deles, Rui, um caçador em cujas terras que perdera com a Independência, passaríamos, servindo-nos de guia.

A lombada e o mato fechado fariam que, se continuassem a progredir, só viessem a nos avistar praticamente cara a cara. Devo lembrar que não nos interessava qualquer confronto antes de libertarmos Gorongosa, a missão principal. Evitar tiroteios era a ordem.

Estes momentos de pré-combate à curta distância, de expectativa, é uma sensação angustiante, completamente diferente de um embate com blindados, por exemplo, ou mesmo o ataque e defesas de cidades ou posições, em que se vê o inimigo ao longe e ainda que depois possa se transformar numa luta corpo a corpo, não há surpresas. Ali sabíamos que antes mesmo de visualizar um rosto, os estaríamos matando ou sendo mortos.

Não gosto de esperar a luta deitado. Sinto-me mais frágil, mesmo que esta posição me favoreça. Ajoelhei-me e Póvoa fez o mesmo, assim veríamos e seríamos os primeiros a serem vistos. Destravamos as armas segundo eu lhes instruíra, forçando a pequena tecla para fora antes de abaixá-la, a fim de que não produzisse ruído.

Mas Rui, o primeiro na linha de fogo, deitado e talvez nervoso, colocou a tecla em posição de rajada num só movimento, com o estalido característico alertando o inimigo, que claramente ouvimos fazer o mesmo e calarem as conversas. Deram dois ou três passos cautelosos e não sei quem apertou o gatilho primeiro, creio que Paulo, o ex-comandante da Frelimo que embora afastado, estava em posição mais alta. Praticamente todos atiraram juntos, por segundos de diferença, nós e o inimigo.

Na frente vinha um negro de calções brancos e chapéu de palha pintado com tinta vermelha (!) com sua Kalash. Todos os outros portavam as mesmas AK-47.

Quatro de nós, melhor colocados, abriram fogo: eu, Póvoa, Paulo e Zeca. O dono do chapéu teve seu peito arrebentado por dezenas de balas, mas creio que ainda foi sua rajada que nos atingiu com mais danos. Os que vinham atrás já surgiam, mas com rajadas desordenadas, tentando fugir ladeira abaixo. Rui gritou de dor e Zeca apenas disse - "já estou!".

Balas por todo lado, eu e Póvoa descarregamos juntos os carregadores de 30 cápsulas 5.56 das AK-47 e rastejando, de costas,  protegendo-nos mais na lombada, trocamos os pentes e aproveitei para sacar também uma granada chinesa, de meu colete peitoral.

Metralhando em leque para baixo, ainda pegamos dois ou três guerrilheiros, que gritavam o mais que podiam. Zeca estava bem, com apenas o braço atingido, mas Rui tinha suas pernas arrebentadas, principalmente a esquerda, quase cortada fora. No cotovelo de minha blusa dois furos indicavam a entrada e saída de um projéctil que não me tocou!

A aldeia agitava-se, mulheres faziam alarido, correria, tiros eram dados a esmo. Em nossa volta, capinzal e acima, o sol que teimava em brilhar. Ao derredor, enxames de guerrilheiros.

- Vamos dar o fora daqui! Vamos sair na marra e tentar chegar ao topo do morro maior de qualquer jeito! Dois de vocês abandonem as mochilas e carreguem o Rui!

Após gritar as ordens saí em frente, para o descampado. Paulo recolheu a arma do morto mais próximo, haviam outros dois estendidos atrás e abaixo, feridos que gemiam. O capim dava-nos pela cintura e agachados ficávamos cobertos, mas não abrigados.

Progredi pelo campo, pronto para disparar, girando em torno de mim. Meus homens acompanhavam, bem espaçados e logo à direita já havia uma casa, mas abandonada às pressas para nossa sorte ou dali seríamos ceifados com facilidade. O barulho de um motor de veículo soou como uma condenação - podia significar o deslocamento de tropas, cortando nossa retirada.

Em verdade, o inimigo, sofrendo um ataque em pleno dia, superestimou nosso grupo, fugindo sem saber que éramos pelo menos 10 vezes inferiores em número ao efetivo lá existente.

- Onde está Rui? Quem está com ele? - perguntei, quando já havíamos avançado uns 300 metros em direção ao morro. Ninguém respondeu à minha interrogação, só vi cabeças apontando do capim, caladas. Não fora socorrido...

Voltei imediatamente com Paulo e penetramos novamente na mata. O ferido estava no mesmo lugar, sofrendo, e a pequena sacola que continha injeções descartáveis de morfina rolara para fora de meu alcance. Mesmo sem proteção tivemos que dependurar as armas a  tiracolo e suspendemos Rui em cadeirinha, com seus braços em nossas costas. Para ele, ser transportado sem a morfina era uma verdadeira tortura, urrava devido à dilacerante dor que sentia, sua perna esquerda balançava-se com os ossos partidos e expostos.

Avançamos com ele o mais que pude, ladeira acima, mas rapidamente esgotei minhas forças. Nossa fuga estava se atrasando e ali não havia modo de contemporizar; ou desaparecíamos ou ninguém escapava.

Quando do recrutamento fora claro ao informar que, se um ferido ameaçasse todo o conjunto, seria abandonado e isso se aplicava mesmo se o ferido fosse eu, assumindo o subcomandante, e embora teoricamente este fosse o Silva, apenas pela idade, entregaria o comando ao Póvoa ou ao Zeca, mais audaciosos.

Deitei-o no chão. Eu quase não conseguia falar, extenuado pelo esforço.

- Vamos ter que deixar você aqui, não há outra maneira de salvar o grupo com segurança. Você tem que ser medicado logo e se o pegarem irá para um hospital.

- Vocês continuam? - perguntou;

- Não, voltaremos para a Rhodésia.

Pêlos seus olhos passou uma ténue esperança, a salvação ali tão perto e íamos deixá-lo. Não prosseguiríamos justamente porque ele seria capturado e debaixo de tortura podia revelar o plano da Gorongosa e a missão ser desbaratada. Eu não o levaria, embora duramente penalizado, devido ao seu estado e ao mesmo terreno que teríamos que enfrentar, desta vez debaixo de perseguição e em marcha forçada. Inclusive ficaria para trás o "gordo", se não aguentasse.

O ferido escutou sem se rebelar ou implorar que o salvássemos. Portou-se com dignidade e calmo, pediu-me que guardasse seu anel e relógio, para levá-los à sua mãe.

Apertando-lhe a mão o deixei, juntando-me aos outros, mais à frente.

          Progredimos morro acima, e a chuva que nos negara a proteção, aparecia agora, pesada, mas tarde demais, pelo menos para Rui, cujos gemidos ouvíamos ao longe. A dor provocada pela água a escorrer-lhe pelas feridas abertas deviam o estar deixando fora de si.

Uma atadura foi colocada no braço de Zeca, que não apresentava maiores problemas nem mesmo hemorragia; fora uma bala traçante, ela própria praticamente cauterizara o ferimento.

Tratamos de realizar uma grande curva, descendo o morro ao escurecer e debatendo-nos mais uma vez contra o maldito rio. Interceptamos uma estrada, haviam pegadas de botas militares e a abandonamos, apagando o local por onde cruzamos. Com o inimigo aos calcanhares, não houve ninguém caindo de cansaço... chegamos são e salvos à fronteira, apesar de seguir por locais ditos minados. Quanto a Gorongosa, teríamos que esquecer por enquanto ou os pegaríamos prevenidos.