A DEBANDADA

 

9.1 Conselho de família

Noto que meu pai tenta agora ocultar-me as suas crescentes preo­cupações. Está certamente ávido de notícias, porque constantemente me pede as «últimas novidades». Mas parece-me claro que evita os comen­tários pessimistas, precisamente quando os acontecimentos justificam plenamente aquela frase com que se demarcou do nosso entusiasmo na manhã de 26 de Abril de 1974:

Desculpem, mas não alinho...

Agora, agarra-se às últimas razões de esperança, com uma pertiná­cia e uma coragem que muitos rapazes novos já não sentem.

Vi-o de rosto crispado e pálido, quando do rebentamento da bomba no meu jornal. Mas limitou-se a dizer-me que devia ter cuidado.

Claro que um homem deve saber enfrentar o perigo ponderou ele com uma calma que era apenas força de vontade. Mas precisas de pensar também naqueles que te estimam...

Claro que penso, pai.

Não julgues que me refiro principalmente a mim. Eu já sou o passado... Mas há o teu futuro: essa moça com quem vais casar.

Nunca pensei que fosse uma coisa tão difícil. Ainda não consegui todos os papéis necessários para o casamento. Agora, nas repartições, gasta-se o tempo todo a discutir política...

Tenho pena de te não poder ajudar. Mas os meus amigos já não valem nada. E eu estou na lista negra dos novos governantes.

Se calhar, nem está... Os novos governantes também apreciam a honestidade... E, a mudar de assunto, informei:

Sabe que o pai da Mariluz está doente?

Só agora mo dizes... Vamos vê-lo!

O sr. Calabriz já andava a pé, porque a mulher sabia tratá-lo. Recebeu-nos a Mariluz, que beijou meu pai com alegria repassada de carinho.

Em maré de dificuldades declarou meu pai, logo a seguir às apresentações é bom que as famílias se juntem. E nós vamos ser família. Nem lhe pergunto pela saúde, porque já vejo que deu na doença um bom pontapé à Eusébio...

Isso de Eusébio é favor, porque eu já não posso com uma gata pelo rabo rectificou o dono da casa. O que acontece é que, aos mosquitos que me mordem, sou eu que lhes pego o paludismo. Por isso já nem ligo a pïcadelas de anofeles. Há coisas que me preocupam muito mais... E, voltando-se para mim, esclareceu:

...Por exemplo, essa bomba no seu jornal.

A bomba era de «espera, galego» minimizei eu, afectando uma grande serenidade. Não estragou nada de insubstituível.

Mas representa um aviso muito sério insistiu ele. Vivemos as horas do diabo!... E esses papéis do casamento?

Hei-de consegui-los, custe o que custar!

Eu já acendi uma vela a Santo António interveio a Mariluz com o seu bom sorriso.

Pois é... fez ambiguamente o meu futuro sogro.

9.2 Última alternativa: fugir

A situação em Luanda agrava-se de dia para dia. Com os seus conhecidos apoios, as FAPLAS movem uma perseguição feroz contra os luandenses ligados (ou supostamente ligados) aos dois Movimentos ex­pulsos da cidade. Quando os não matam logo, sem perder tempo com for­malidades, levam-nos para a Praça de Touros, transformada em campo de concentração. Milicianos do Poder Popular violam mulheres em plena rua ou assaltam as moradias dos brancos, com o mesmo danado intuito. Numa vivenda do Alvalade, uma menina de 12 anos sucumbiu à brutalidade de nove estrupadores sucessivos. E uma cena idêntica sucedeu no Largo dos Lusíadas, à vista de toda a gente, junto da estátua que o povo crismou de Maria da Fonte.

Perante espectáculos tão infames, a tropa portuguesa, infestada de uma hedionda escumalha intencionalmente mandada pelos comunistas de Lisboa, mantém-se vergonhosamente apática, quando não descarada­mente colaborante.

         Em face de tudo isto, aos portugueses de Angola só resta uma alternativa: fugir. E, completamente abandonados pelo Governo da sua Pátria, sem a menor confiança no sucessor do general Silva Cardoso, dirigem-se, em grandes multidões, aos consulados estrangeiros, nomeada mente aos dos Estados Unidos, da França, da Alemanha Ocidental, da Bélgica e da África do Sul, pedindo aviões que os levem para longe desta cidade, agora transformada em velhacouto de ladrões, estrupadores e assassinos.

E, como diria o cronista Fernão Lopes, é coisa tristíssima de ver, na terra ainda portuguesa de Angola, a lamentável procissão destas afli­tas gentes de todas as raças, suplicando a estrangeiros o auxílio que lhes é negado pelo Governo de Lisboa, totalmente absorvido na mise­rável tarefa de continuar a destruir os restos de uma nobre e antiga nação.

As palavras que proferem não podem deixar de exprimir a sua enorme raiva e o seu profundo desespero.

Esses tipos que agora governam em Lisboa são todos uns filhos da puta! berra um camionista moreno, de olhos ardentes como tições.

Temos agora um Governo de bandalhos sem ponta de vergonha! reforça o dono de um dos melhores prédios da Avenida Marginal, que já se sente reduzido à miséria.

Não haverá quem castigue os responsáveis por toda esta des­graça? clama uma vendedeira de peixe do Mercado dos Lusíadas, que já abandonou a sua banca, porque não há peixe para vender.

Esse malvado Rosa Coutinho está cá outra vez? pergunta um construtor civil, que tem todas as suas obras paradas.

Tu para onde vais, Zé Manuel?

Sei lá... Para longe deste inferno!

Quando vai acabar a confusão? perguntam ansiosamente muitos pretos.

Tudo isto e muito mais, com as palavras mais expressivas e as pragas mais contundentes do rico vocabulário português, chega até aos ouvidos do corpo diplomático acreditado em Luanda, ainda na vigência da soberania portuguesa. No julgamento dos representantes das nações civilizadas da Europa e da América, durante estes dias trágicos de Setem­bro de 1975, os actuais detentores do poder em Lisboa e os seus dele­gados em Luanda devem ter descido abaixo da última cotação possível para seres humanos, porque a sua abjecção atingiu requintes inconcebí­veis. Com um louco grotesco num cargo que foi exercido pelo dr. Salazar, com um Chefe de Estado eleito por três votos (incluindo o seu), com um alto comissário em Luanda, escolhido pêlos comunistas de entre os músicos do famigerado «quinteto de cordas», com o destino da sua maior província africana a ser decidido em Cuba e Moscovo é o próprio destino de Portugal que se afunda vergonhosamente no lodo e na merda.

Nunca um país, mesmo sob a pata dos invasores, foi tão profundamente humilhado e se comportou com tanta indignidade e cobardia. Uma antiga e nobre nação, que soube realizar sozinha um dos mais bri­lhantes capítulos da História Universal, e ainda há menos de dois anos constituía um exemplo de coragem e determinação, torna-se de repente um motivo de lástima ou de escárneo para todo o mundo civilizado, mere­cendo amplamente e qualificativo de «manicómio em auto-gestão».

Como poderiam os bons portugueses de Angola escolher palavras moderadas para exprimir a sua raiva e o seu desespero?...

Na verdade, durante essas concentrações de muitos milhares de portugueses, vendidos ao comunismo internacional pela mais ignóbil quadrilha de traidores que ainda houve em Portugal, ouvem-se acusações terríveis. Por exemplo, a um dos mais antigos alfaiates da cidade, um danado tripeiro que há mais de quarenta anos trabalha, com alguns pretos do mesmo ofício, num pequeno apartamento bem próximo da redacção do meu jornal, ouvi eu dizer, para um dos seus habituais fregueses, que «os safardanas da descolonização contavam com a chacina de todos os brancos de Angola».

Homem protestou o outro , não será tanto assim...

É assim mesmo! teimou o alfaiate. Você não leu essa carta do Almirante Vermelho (mil diabos o levem!), a aconselhar o Agostinho Neto a matar os brancos, sobretudo mulheres e crianças, porque só assim os malvados colonialistas se iriam embora?

E será autêntica essa carta?

Está lá, bem clara, a assinatura do malandro, sobre o papel timbrado do Governo Geral de Angola!

Custa a acreditar...

Pois a mim não me custa nada. Tudo é possível, nessa canalha que nos vendeu. E ainda há coisas piores. Contaram-me que um dos grandes políticos de agora afirmou no Brasil que os portugueses de Angola são para atirar aos tubarões...

Trazem o povo enganado sobre toda esta desgraça a que chamam «descolonizarão exemplar» e não lhes interessa nada que nós regresse­mos para contar a verdade...

E conseguiremos regressar?...

Espero que sim. Não ouviste o que disse o cônsul dos Estados Unidos?...

O cônsul geral dos Estados Unidos, visivelmente impressionado pela aflição de tanta gente, assegurou que o seu Governo começaria ime­diatamente a enviar aviões. E o mesmo prometeram os cônsules da França, da Alemanha Ocidental e da África do Sul. Um grande movimento de solidariedade internacional intervinha para salvar a vida de quase um milhão de portugueses.

Se tal estava, ou não, nas intenções dos que planearam e realizaram a entrega de Angola ao Comunismo Soviético, só o poderemos saber quando todos esses criminosos forem expulsos dos cadeirões do poder. Por agora, o certo é que aos russos convém esvaziar o território dos «quadros» portugueses, porque o processo mais fácil de assumir o poder efectivo no novo país soberano é substituir os portugueses nos seus cargos, nas suas empresas, nas suas casas e nos seus bens.

Meu pai, a quem acabo de falar neste assunto, contando-lhe o que há horas ouvi ao alfaiate, puxou os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados e declarou judiciosamente que o desespero quase sempre conduz a injustiças e a exageros.

E nota que eu não vou desculpar os responsáveis por esta imensa tragédia acrescentou com certa brusquidão. Esses hão-de ficar amarrados, para sempre, ao crime mais infame que se praticou em toda a nossa história...

Volta a ser muito duro, pai...

Duros e cruéis são os factos, que até com os olhos fechados nos causam um indizível horror. O procedimento de Lisboa, no caso de Angola, já não pode ter atenuantes de política ou ideologia. Repito que é um crime: um crime hediondo, repugnante, imperdoável...

Calou-se, passou de novo a mão direita pelos olhos, como que para afastar uma visão de inferno, e recomeçou mais sereno:

Bem: voltando ao assunto, julgo que não é preciso pensar em sinistros planos de um premeditado extermínio dos portugueses de Angola. Além de tudo o mais porque acredita, meu rapaz eles ainda nos têm medo... De resto, o objectivo de abrir vagas para os russos e cubanos que eu aceito seja uma das determinantes de toda esta des­graça também pode ser conseguido com a debandada que já começou. E repara que as próprias autoridades portuguesas (ou isso que para aí se exibe com esse nome) declararam que não podem garantir a segurança de ninguém que aqui permaneça para além do dia da independência. Não parece um incitamento à fuga?

Certo! concordei. Mas se este êxodo bastará para os desí­gnios de Moscovo, que nos quer substituir em Angola, para o conjunto dos responsáveis pela descolonização, o regresso de centenas de milha­res das suas vítimas constitui certamente um risco muito sério.

E acreditas, por isso, que eles tenham jogado numa chacina geral dos brancos?

— Já não sei no que deva acreditar. Só sei que fizeram tudo para excitar o racismo negro. Não houve nome feio que não chamassem aos brancos na imprensa, na rádio e na televisão. E também sei que só a morte cala definitivamente a voz das testemunhas incómodas. Por isso me impressionaram tanto as palavras daquele alfaiate, que até me lem­brou o Fernão Vasques da História.

— Pode acontecer que ainda apareça um novo Fernão Vasques — insinuou meu pai sibilinamente. — Mas, entretanto, vamos agora aos factos: qual é, neste momento, a perspectiva de Angola?

— Pretende que lhe faça o ponto da situação?

— Exactamente. Já perdi o fio à meada, porque o teu jornal há três dias que não sai...

— E quando voltar a sair, já não será o mesmo. Passa a ser contro­lado por uma comissão da UNTA H, reforçada por um delegado do Comité Político do MPLA. E não tem saído por falta de papel. Ainda há bastante nos nossos armazéns do Bairro da Cuca. Mas as FAPLAS cercaram a zona e não deixam transitar os civis para além da passagem de nível do Caminho de Ferro de Malange.

— Entendido. E que sabeis vós, no jornal?

— Consta que os homens da UNITA, com o apoio da África do Sul, estão a chegar à Barragem de Cambambe. E a tropa de Holden Roberto, que integra alguns antigos oficiais do Exército Português, já retomou o Caxito e vem novamente a caminho de Quinfangondo, com o objectivo de ocupar a Estação de Captação de Agua, no Rio Bengo. Diz-se que o cerco a Luanda se fechará em breve e que a cidade poderá ser bombar­deada pela artilharia pesada. Mas um elemento da FNLA, que conseguiu entrar na nossa redacção exibindo um emblema do MPLA, garantiu-nos que Holden Roberto poupará as principais zonas residenciais, nomeada­mente as da Baixa, do Aeroporto e do Palácio do Governo. Prevê-se a ocupação das estradas que dão acesso à capital de Angola, para lhe cortar os abastecimentos, mandando então um ultimato a Agostinho Neto. Se ele se não render, cortarão a água e a energia eléctrica antes do assalto decisivo.

— Bonita perspectiva! — concluiu meu pai. — E nós, que vamos fazer?

— Continuo a lutar pela obtenção dos documentos para o casamento. Mas, entretanto, também já estou a tratar das nossas passagens. E quando digo «nossas» incluo as da Mariluz e família. Em último caso, peço ao padre Freitas que nos case com os documentos que tivermos e regula­rizaremos depois o problema civil em Lisboa. Eu ainda não desanimei, pai! Nem deves desanimar disse ele, forçando um sorriso de esperança e compreensão. Mas eu ainda não te disse que queria regressar a Lisboa...

Ter a passagem garantida não prejudica nada...

9.3 No Aeroporto de Luanda

Setembro aproxima-se do fim.

Como ainda se não sabe quando voltará a sair o jornal, passei toda esta tarde no Aeroporto.

A bela aerogare, donde já retiraram a placa comemorativa da inau­guração pelo marechal Craveiro Lopes, e grande parte da zona exterior voltada para as placas de estacionamento estão transformadas em acam­pamento de fugitivos, sob a protecção dos «comandos» e dos pára-quedistas. É um espectáculo confrangedor. Milhares de pessoas aguardam pacientemente os aviões da ponte aérea. Famílias inteiras, com crianças de todas as idades, ali vivem desde há dias, dormindo ao relento e alimen­tando-se de frutas e conservas. Há meninos que choram com fome, enquanto outros guardam ciosamente os seus bens mais estimados: uma boneca vestida de minhota, um Tio Patinhas de plástico que até grasna se lhe apertarem a barriga, um cãozinho de que não quiseram separar-se.

Toda aquela gente parece apática, resignada, já esgotada em toda a sua capacidade de sofrimento, sem outra ambição que não seja a de sair de Luanda o mais depressa possível.

Trocam-se automóveis por alguns maços de cigarros. Entregam-se aos criados pretos as chaves de ricas vivendas. Dão-se dezenas de contos em dinheiro angolano por algumas notas de cem escudos do Banco de Portugal.

Há senhoras que lavam a roupa nos lavatórios das instalações sanitárias. Outras cozinham ao ar livre alguma sopa ainda possível. Paira no ar o odor de corpos, há muitos dias sem banho, nem mudança de roupa.

Os soldados portugueses, não obstante o aviltamento a que têm estado sujeitos durante os últimos tempos, recuperam aqui uma certa dignidade perante esta grande velada de indizíveis angústias, nos dias da vergonha. Humanizam-se no contacto com tamanha desgraça e tentam ajudar os mais famintos, repartindo com eles o seu rancho. Mas também eles pouco podem fazer.

Os aviões estão agora a chegar com maior frequência, porque os consulados estrangeiros cumprem exemplarmente as suas promessas. A ponte aérea atinge proporções gigantescas. Mas a turba dos fugitivos não cessa de crescer. E a cada avião que ruge, na pista de descolagem, em direcção ao mar, acentua-se o desespero dos que ficam.

Malditos sejam, para sempre, os responsáveis por esta imensa tragédia!!!

9.4 — «Gente muito infeliz»

Venho de falar com o comandante de um D.C. 10 da U.T.A. Disse-me que Giscard d'Estaing acompanha pessoalmente a comparticipação fran­cesa na ponte aérea e deu-me a ler a mensagem redigida pelo presidente da França e agora lida em todas estas humanitárias viagens dos aviões franceses.

«Este avião — lê-se nesse texto singelo e comovente — foi posto à vossa disposição pelas autoridades francesas, para facilitar o vosso regresso a Portugal. Esta decisão foi tomada como testemunho da amizade do povo francês para com o povo por­tuguês e como uma contribuição nossa para vos aju­dar a superar as vossas dificuldades neste período da vossa vida. O povo francês deseja-vos uma boa viagem».

Reparei que o autor do texto não incluirá nele qualquer referência ao Governo de Lisboa. Mas, julgando compreender tal omissão, não foi nela que falei ao simpático comandante da grande aeronave. Preferi pedir--Ihe a sua impressão sobre os refugiados.

— É gente muito infeliz — declarou com visível compaixão. — Quando o avião levanta voo, ficam a olhar a terra onde deixam tudo o que era seu. Parecem resignados. Ou talvez apenas exaustos. Mal o avião ganha altura sobre o Atlântico, muitos adormecem logo profunda­mente, libertos da tremenda tensão dos seus últimos dias nesta terra ensanguentada (2).

Assim regressam, por esmola de estrangeiros, os portugueses que foram os primeiros europeus a subir o rio Zaire e construíram em Angola a melhor infra-estrutura sócio-económica de toda a África Tropical.

 

 

(1)     União Nacional dos Trabalhadores de Angola, organização do MPLA.

(2)     Aproveitaram-se, para este episódio, como tudo o resto fiel à essência dos acontecimentos, alguns elementos da entrevista dada ao semanário «TEMPO» por Jacques Godfrain, das Relações Públicas da U.T.A., e publicada em 11 de Setembro de 1975.

 

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