37.     CONCLUSÃO:

EU   E   O   TRAIDOR   MARRÃO

Atravessara com sucesso a Angónia, no mês de Maio, de 1976, e colocara a bom recato, numa estação postal malawiana, as três primeiras partes desta reportagem, algumas fotografias e documentos.

Acompanhara-me voluntariamente na aventura um velho amigo, transmontano de boa cepa, rijo como os ibondeiros das serras tetenses. Ele sofreu os meus sustos e, homem possuidor de extraordinária presença de espírito, vencia, com um propositado silêncio, ou com as mais inesperadas observações, os gestos e reparos de desconfiança dos homens da Frelimo, postados nos controlos dos caminhos por onde tínhamos de circular.

Agora, à distância dessa aventura, recordo com graça algumas peripécias da viagem, em que o meu acompanhante, José António Meireles, era, na maior parte das vezes, vedeta.

Seguíamos num «Citroen», eu ao volante, e nas imensas paragens forçadas pela idesmentível eficácia de duas ou três Kalashnicovs apontadas ao carro, o Meireles era forçado a sair pela porta do meu lado, visto a do seu estar dani­ficada por um recente acidente. Esta atitude era suspeita aos olhos dos homens da Frelimo que, perante o ingénuo espanto do Meireles perguntavam, sempre a ele e nunca a mim, que abandonava o carro em primeiro lugar, onde estava a arma.

— Onde está a arma? — repetiam perante o seu silêncio. A sua resposta era sempre a mesma e obtinha repetidos sucessos:

— Eu tenho cara do José do Telhado?

Eles não entendiam a resposta e por isso mesmo a aceitavam, pedindo-lhe montões de desculpas. Essa resposta passou a ser o nosso código de salvação nos momentos críticos, mas, forçosamente, teria de partir da sua boca, onde o rosto, com um princípio de barba à guerrilheiro, esbranquiçada, lhe dava um certo aspecto bélico e agressivo, máscara fluentemente exposta nas caras de ocasião, caseiras cópias de Fidel Castro e de Che Guevara, dos homens brancos ao serviço dos quadros da Frelimo.

Mesmo no interior do Malawi, onde penetramos para que eu cumprisse a missão a que me propusera, um comandante da Frelimo nos perseguiu e vigiou, interrogando um outro português sobre quem éramos, para onde íamos e o que queríamos. Para que o leitor compreenda a trágica situação em que nos encontravamos  direi   que  passáramos   a  fronteira  clandestinamente,   com  uma   guia   de marchfa por mim forjada.

A partir daí — e o meu regresso apressou-se para evitar a acumulação de suspeitas — os meus sonos passaram a ser repousados, embora por vezes fossem interrompidos por pesadelos.

Hospedei-me no Hotel Beira, onde me conservaria por mais uns meses até à minha partida para Portugal. Uma tarde, quando regressava ao quarto, fui abordado por dois agentes da P.I.C. — que já anteriormente haviam dado ordens na recepção do Hotel para não me permitirem o acesso aos meus aposentos — que me obrigam a segui-los.

Entraram no meu quarto e vi-os remexerem todos os meus pertences. Abriram as camas, leram os meus papeis e, só depois, mostraram-me um mandato de busca e detenção passado pela P.I.C. de Tete.

A acusação era clara: Eu era um dos mais perigosos elementos da Rádio África Livre, que era necessário eliminar.

Seguidamente, sem mandato, e acompanhados por minha mulher, dirigiram-se a casa dos meus sogros e fazem idêntica busca enquanto eu aguardava à porta, na viatura policial, que a missão piquesca fosse concluída. Ali apenas deixaram de examinar um guarda-fatos acoplado à parede de um quarto, onde, bem à vista, se encontrava uma cópia integral, dactilografada, dos documentos por mim enviados clandestinamente para Lisboa.

O medo retirou anos de vida aos meus familiares mas a sorte bafejara-me. Se este trabalho um dia for às mãos do agente Cande da P.I.C., que chefiava a brigada policial, ele terá a informação de que a sua diligência não foi cabalmente cumprida. Ele esteve a segundos de deitar as mãos a um terrível reaccionário, de adquirir louros para a sua criminosa organização, de enclausurar ou destruir mais um português, e de subir uns furos na hierarquia policial moçambicana.

A acusação nascera em Tete. Ela partira de Isaías de Jesus Marrão, antigo delegado provincial da G.U.M.O., e, finalmente, homem de confiança das estruturas provinciais da Frelimo. Atordoado e enraivecido com as acusações de que fora alvo numa das emissões da Rádio África Livre, Isaias Marrão, depois de muito pensar, encontrara um autor para os trabalhos lidos na emissora. Para ele eu seria, forçosamente, o seu autor.

          Estávamos a 21 de Agosto de 1976 e eu embarcaria para Portugal no dia 3 de Setembro, tendo-me sido dada ordem de me apresentar na P.I.C. O mandato de detenção fora olvidado por influência do chefe da Terceira Brigada, de nome Wenceslau, português que comigo colaborara em imensas investigações policiais, eu como repórter jornalístico e ele como policial ao serviço da Judiciária. Foi a ele, pois que, por ordem do agente Cande, me apresentei. Ficaria, ainda em liberdade, mas a polícia apoderou-se, porém, de diversas fotos dos meus arquivos e de gra­vações colhidas ao longo da minha carreira profissional. O que se salvou à busca dos meus inquiridores remeti pelo correio em envelopes de diversas organizações estatais, que adquiri para o efeito, para diversos destinatários lisboetas, mas apenas no dia do embarque e já no aeroporto, motivo por que algumas fotografias, não tantas e tão valiosas como podiam ser, documentam esta reportagem.

Voei em seguida  a Tete,  indo  encontrar  a  cidade  ainda  mais  amedrontada.

A minha presença foi acolhida com espanto pela colónia portuguesa, cada vez mais reduzida, e que, na falta de uma informação capaz, alvitrava as mais hipotéticas afirmações sobre o meu destino.

Uns diziam-me na prisão. Outros num campo de trabalho. Outros, ainda, na segurança de uma cidade europeia, após ter conseguido a liberdade numa roman­ceada fuga através das terras acolhedoras do Malawi.

Apenas Isaías de Jesus Marrão, o causador de dezenas de prisões entre a colónia portuguesa, não se alegrou com a minha presença na cidade que domi­nava, e não se afastou do seu fortim para não ser alvo dos olhares silenciosos de escárneo de todos os portugueses que viam na minha liberdade a sua primeira derrota.

Acostumado a vencer com a cumplicidade dos chefes da Frelimo que fausto­samente comprava, ele não podia entender que o mandato de captura, emanado da pena do inspector José Castigo, não tivesse sido cumprido. Não dominara ele, com tanta facilidade, o comandante militar provincial José Moiane após lhe mobilar principescamente uma riquíssima e faustosa vivenda e a cobrir das mais caras tapeçarias? Não conseguira os mesmos sucessos junto do comandante Aleixo, substituto do Moiane e dos comissários políticos Norte, Mechila, Nenhum Fica, Dimaka e quantos ocuparam poderosos cargos, bastando-lhe para o efeito distribuir por eles parte dos lucros da empresa que administra — a Univendas — subtraindo-os aos dividendos dos pacatos e amedrontados accionistas portugueses?

Não se gabava ele de governar mais e ter mais influência do que o próprio governador actual, António Tai, boneco como os anteriores, manobrados pelos cordelinhos do seu cofre?

Não exercia já tão forte influência no inspector José Castigo da P.I.C. como exercera no ex-inspector Joaquim Sabino da P.I.D.E. — D.G.S., influência que tão nefasta foi para grande parte dos comerciantes de Tete, concorrentes às direcções da Associação Comercial que Isaías Marrão desejava vitaliciamente para si?

Era certo que Isaías Marrão se sentira enfraquecido com a partida para Portugal do jornalista Santos Martins, encarregado da sua propaganda pessoal e política, jornalística e radiofónica, mas não ficara esse lugar preenchido pelo primo de Sérgio Vieira (um dos homens fortes do «gang» de Samora Machel) Raul Fer­nandes, detentor da Informação citadina do Departamento de Informação e Pro­paganda da Frelimo?

A que se devia, então, o não cumprimento do mandato de detenção, que vira ser transmitido por telex para a Beira?

A resposta que nunca Isaías Marrão encontrou mostrava-se a mim bem clara: A Frelimo conhecia a minha constante busca de elementos junto das vítimas do Partido e vigiava-me, querendo apanhar-me com a boca na botija, para finalmente me poder mostrar como um exemplo do reaccionarismo da Informação retrógada; queria ligar-me aos movimentos locais — àqueles que, actuando no interior do país, justificavam a existência, fora de portas, de uma emissão radiofónica revolucionária — procurando deste modo o fio do novelo que a enleava.

As suspeitas acumuladas sobre mim não se concretizariam com a minha prisão. A Frelimo procurava homens mais importantes, aqueles que se preparam para desfechar o golpe de misericórdia sobre quantos traíram os anseios de liber­dade democrática do dr. Eduardo Mondlane.

De regresso de Tete sou forçado a, diariamente, me dirigir à P.I.C. onde passo grande parte dos meus dias. Nas restantes horas sou casualmente encon­trado por alguns agentes, chegando um a abordar-me num café.

Falou mal da política da Frelimo e fez alusões às ideias políticas do dr. Domin­gos Arouca, querendo saber a minha opinião a seu respeito. Disse, também diversas coisas sobre a Rádio África Livre, que eu propositadamente deixara de escutar, por saber que, durante as emissões, a vigilância sobre mim era reforçada e eram anotados os locais onde eu me encontrava e os nomes dos meus companheiros. E esta perseguição, constante mas improfíqua, levada a cabo pelos bufos da Frelimo, não cessaria até ao momento do embarque no avião que me transportaria a Dar-es-Salam e a Nairobi, antes de me encontrar com a Europa em Atenas, depois em Londres e finalmente em Lisboa, tendo por companheiros na primeira etapa da viagem, cerca de trinta elementos do exército da Frelimo, que mesmo voando em céus internacionais me cumularam com atrevidas e perigosas indagações.

A liberdade só a viria a sentir, verdadeiramente, em Nairobi, nas terras do Kenyatta, o velho papa africano, onde, olhando as pistas repletas de aviões, relembrei que fora ali, poucos dias atrás, a base de apoio da extraordinária operação israelita ao aeroporto de Entebe, no Uganda, primeira lição no nascente e já desmesurado orgulho dos dirigentes africanos.

Quando chegaria a vez a Moçambique, se a influência dos dirigentes era cada vez menos notória entre os guerrilheiros não afectos à corrente política de Samora Machel?