A CILADA
Ainda sonolento ouvi a informação que pela
manhã, cerca das 07:00h, a P.J. desencadearia uma operação de cerco das duas residências
onde me hospedava alternadamente e eu seria detido. Ao mesmo tempo, alguns
jornais me relacionariam com os tais "crimes sem dono", que serviriam
de pretexto para me manter na prisão.
Despedi-me agradecido daquele que
arriscava seu emprego e sua liberdade para me ajudar, mas o momento não era
para lamentos e preparei a fuga do País. Iriam me atingir da forma mais baixa
possível - ser eliminado só serviria para fortalecer a
causa que defendia - alvejando-me moralmente, fazendo descer sobre mim um véu
de suposta desonestidade, justamente o crime que eu impedia com minha ação
contra os falsos movimentos que só buscavam dinheiro. Cerca das 02:00h tinha
uma valise pronta. Havia raspado o bigode e mudado o tipo de penteado.
Às 05:00h dirigi-me ao guichê de tickets
da Estação Santa Apolonia, onde comprei dois bilhetes para duas localidades
diferentes. Embarquei no primeiro trem a sair e quando ele começou a mover-se,
mudei rapidamente de vagão e saltei de volta à plataforma no meio da multidão
que aguardava sua vez - para alguma coisa servem os
filmes e romances de espionagem!
Aí então tomei o trem para uma vila onde
havia um entroncamento para a fronteira. Lá desci já com outros trajes e
embarquei para Vilar Formoso, local que conhecia bem e sabia ser um ponto pouco
controlado.
Metade do dia transcorrera quando cheguei
ao destino e a operação em Lisboa se frustrara, mas quais seriam as
providências que adotariam? Comunicariam os postos fronteiriços? Ou pensariam
que estava algures na capital, sem nada saber?
A pé, dei um passeio
"despreocupado", passando pela frente do posto policial e depois
pelas imediações da Alfândega. Tudo normal.
- Pois é
aproveitar agora - pensei.
Tomei um táxi e mandei rumar para Fuentes
Onoro, no lado espanhol.
- Para
onde? - perguntou o motorista.
- Para o melhor hotel que houver por lá - respondi, evitando revelar o lugar para onde
verdadeiramente me dirigia, a estação ferroviária.
No controle alfandegário havia uma fila de
uns cinco carros e sugeri ao motorista que levasse os passaportes para
carimbar, o que fez sem problemas. Permaneci no veículo, com um ar indiferente
de "turista cansado". Um guarda civil indagou se eu levava alguma
bagagem além da valise e diante da reposta negativa e dos passaportes já carimbados,
mandou-nos avançar e ultrapassando a fila, entramos em território espanhol.
Saltei diante do hotel e mal o táxi se
afastou entrei no primeiro bar para tomar um bom vinho
tinto da terra, com a tranquilidade de não se sentir com a cabeça a prémio.
Depois fui a pé até a estação onde comprei uma passagem para Madrid, de olho
nos policiais portugueses que lá estavam, conversando com seus colegas
espanhóis como de costume.
Algumas horas depois o trem partiu e vendo
a fronteira se perder ao longe respirei mais aliviado. Outro "cerco"
que não se fechara...
Na capital espanhola instalei-me num hotel
que ficava ao lado do restaurante italiano na Calle de Los Libreros, que tinha
a vantagem de estar a 50 metros da Gran Via e ser ponto de hospedagem de outros
conhecidos. Teria que passar dez dias esperando até que um "correio" mandado
por amigos me trouxesse as novidades, meus arquivos e dinheiro: receberia um
cheque no dia 24, referente aos direitos autorais do livro.
Mas as coisas se complicaram. Apesar de terem
recebido o dinheiro não conseguiam enviar-me, pois eram vigiados de perto pela P.
J. O capitão Valdemar foi chamado para depor e nada de concreto lhe disseram
acercadas acusações. Enquanto isso os jornais de esquerda acusavam fictícias
"associações de malfeitores", incriminavam-me como o "pistoleiro
de Picoas", uma ocorrência de tiroteio havida em plena luz do dia no
início do ano, no bairro deste nome etc, apresentando-me como um marginal e
mercenário da mais baixa qualificação. Quanto aos jornais descomprometidos ou
de direita, derrubavam uma por uma as acusações, todas feitas sem muito
conteúdo e convicção. Uma observação de "O Dia" me fez sorrir, eu não
poderia ser o "pistoleiro de Picoas" visto o mesmo ter errado três
tiros à queima roupa na vítima. Uma falha impossível, devido ao meu
"currículo"! E imputavam à DIS A, a polícia política angolana, a
montagem da farsa.
Mas haviam testemunhas compradas e o
esquema fora montado para vencer. O prudente seria não retornar, quem me
espaldaria? Estava só, e na "democracia" portuguesa, não teria chance
alguma. Senti pelos meus arquivos, centenas de fotos, documentos,
correspondência, medalhas e outras lembranças de África, arbitrariamente
recolhidas pela P.J. e que hoje deve servir de decoração nas casas de alguns
agentes.
Isolado em Madrid, um tanto desgastado
psicologicamente e enojado com a podridão dos políticos, senti falta da
disciplina da caserna; um quartel me faria bem. Uma ideia veio-me à mente.
Era um ciclo que se fechava: começara com
a Legião Estrangeira Francesa, terminaria com a Legião Espanhola, o famoso
Tercio de los Estranjeros, de Franco. Nos primeiros dias de Abril apresentei-me
no quartel de Leganês, como voluntário.