O BATISMO DE FOGO
Era o dia 2 de Agosto de 1974 e jantava
com o guarda Abdul na casa do Administrador, que havia viajado para Vila Cabral
há uma semana, no barco da Marinha. No momento eu era o dono do lugar. Cansado
de carregar a metralhadora inutilmente, deixara-a no quartel e, banho tomado, vestia um confortável traje civil.
São 19:40h. Quando vou cortar um pedaço do
apetitoso peixe grelhado colocado à minha frente, uma longa e estridente rajada
de Kalashinikov AK-47 rasga o silêncio da noite, tomando-me totalmente de
surpresa. Voam vidros partidos e o som vem de muito perto da casa!
Em frações de segundos estou rastejando
para o quarto, Abdul para a cozinha e o criado correndo, deixando cair a
bandeja metálica com estardalhaço. Os tiros espocam pelo lado do aldeamento.
Todos os palavrões possíveis vêm à minha
cabeça! Desarmado, com roupa clara, pego como um principiante que pensava não
ser!
Agachado, protegido pelo muro de um metro
e meio de altura que prudentemente cerca a casa, corro para o abrigo contra
morteiros. Abdul chega e salva a situação, pois vem com sua G-3.
Responde fogo, dando-me cobertura enquanto
corro para o quarto do quintal, onde apanho uma pistola Walter 9mm e as
granadas que posso, retornando ao abrigo.
Da parede ao nosso lado saltam lascas de
reboco dos projéteis das AK-47 e PPSH russas. As informações que temos é que os
ataques têm sido feitos com um canhão sem recuo de 76mm. Se o usarem, estaremos
perdidos.
Estamos em posição mais alta que o
inimigo, mas este avança para nós, confundindo-se no meio do alto capinzal. São
dois grupos de oito ou nove homens cada e se autoprotegem. Economizo munição tentando
ver os clarões das armas, para depois disparar naquela direção.
Abdul está em dificuldades com a G-3;
estarrecido, verifica um pouco tarde demais que os carregadores que trouxera
eram de FN, um fuzil Belga, e não se encaixavam em sua arma! Começa a esvaziá-los
para carregar o único que serve e com isso paramos praticamente o fogo. O
inimigo está perto e atira a esmo.
Passa-se uma ideia pela
cabeça, perdidos por um, perdidos por mil: levanto-me, subo ao topo do
abrigo completamente desprotegido, destacando com minha roupa clara do céu
negro e grito:
- Frelimo!
Frelimo!
Por um momento os terroristas param de
atirar e escutam. Penso em passar-lhes a conversa que a guerra acabou, a
revolução, etc, etc, mas a pausa dura apenas alguns segundos. Uma saraivada de
balas passa por mim, retalhando um mamoeiro ao lado!
Com um sonoro "f.
da p." gritando com
toda a vontade, encerro minha carreira de parlamentar, dando graças, porém, a
já famosa falta de pontaria dos adversários.
Salto para o solo e faço o que me resta
fazer: muito barulho, blefar com nosso poder de fogo.
Atiro três granadas em rápida sucessão
para a baixada onde já se escutam ruídos de homens e descarrego um pente da
Walter; Abdul, no mesmo momento metralha com a G-3.0 efeito é bom e as granadas
parecem que atingiram alguém.
Os guerrilheiros que não esperavam encontrar reação e
estavam próximos, recuam; os que no aldeamento tentavam saquear a cantina não o conseguem devido a uma inesperada
defesa de dois milícias e seguindo sua tática de sempre batem em retirada, pois
ficaram tempo demasiado atacando e reforços podem chegar. Mal sabem que isso é quase
impossível!
Com alguma comida roubada e seis mulheres
raptadas, a gloriosa Frelimo desaparece.
Recarregamos nossas armas e após uns
terríveis dez minutos de silêncio total salto pelo muro, seguido de Abdul e
desço a aldeia, empunhando a Walter no meio da escuridão. É loucura, mas
prefiro isso ao suspense de aguardar entrincheirado no alto da elevação onde
estava.
Mas o inimigo realmente fugira. Com
exceção dos dois que defenderam a cantina e suas famílias, os restantes
milícias haviam abandonado as armas e saltado para o lago entre os caniços ou
se metido no meio do mato!
E assim recebi meu batismo de fogo, no
topo de uma colina africana e juntamente com Abdul, rechaçara um ataque de
guerrilheiros que possuíam superioridade em efetivos e material, o que não fora
suficiente para lhes suplantar a covardia.
Abaixo da casa encontramos carregadores de
AK-47 e um saco de comida, provavelmente abandonados por um ferido. Não
consegui contato com Metangula através do rádio e resolvemos dormir, mas vestidos
e prontos a nos defendermos de uma segunda investida.
Aos primeiros clarões da manhã mandei que
buscassem as baterias do gerador e as troquei pelas do rádio, que estavam
fracas.
- 668,
668, 668, 666 chamando! 668 era Metangula e 666 éramos nós.
-Prossiga,
666!
- 666 atacado, sem baixas, seis nativos raptados,
vamos sair empatailha.
Repeti a
mensagem, esperei o entendido.
- 666 solicita três carregadores para G-3,
munição e se possível uma MG-42 para reforço, câmbio!
Com a metralhadora MG, entrincheirado em cima do morro, poderia
anular com sucesso as investidas do inimigo, mesmo em superioridade de número.
Seus ataques não eram contundentes e em caso de resposta rápida e eficaz,
retrocediam sempre.
- OK,
Abdul, vamos ver o que poderemos fazer;
- Não é
Abdul, é Pedro que fala, câmbio;
- ?!
- O
"missionário"? Confirme!
-Positivo!
Em Metangula acharam estranho um
missionário pedindo uma MG e mais confusos ainda ficaram quando ao meio do dia
chegou uma lancha da marinha com um grupo de combate e me encontraram fardado e
armado!
Acabara de chegar da patrulha que havia
seguido a pista dos guerrilheiros, pista, aliás, facílima de encontrar dado o
sem número de objetos que deixavam cair, em sua pressa de se distanciar para
não serem interceptados. Iam em direção a N'go, uma aldeia distante duas horas
de barco de Cóbue.
Avisei a marinha e também 666A (N'go) via
rádio. Eles não possuíam armas automáticas nem granadas e precisavam se
precaver.
Recebemos o pedido, menos a MG e a lancha
da marinha retornou. Saberia depois que o Comandante da Base Naval interrogou o
padre da Consolata sobre minha pessoa. Na confusão daqueles tempos
pós-revolução ninguém podia confiar em ninguém, mas muito menos se impor. Quem
seria eu? De que lado realmente estava? Também não os daria muito tempo para
saber...
No dia 4 de agosto, ao anoitecer, ouvimos
o som seco do canhão sem recuo e um metralhar distante. Era N'go sendo atacado
como previra e malgrado meu aviso foram colhidos despreparados. Desta feita,
usando o canhão sem recuo destruíram o posto policial, matando um guarda e
ferindo outros. A população embrenhou-se pelo mato e os poucos milícias fugiram
de canoa para Metangula.
N'go ficou
deserta.
Pela rádio, uma ordem: eu deveria voltar
no mesmo barco que estava levando o Administrador para Cóbue. Embarquei com
granadas, munição
e uma Walter.
Em Metangula, a surpresa: eu era tido como agente da
Frelimo, apesar do ataque que sofrera. Mas verdade seja dita: incompreensivelmente
o mesmo grupo que destruíra N'go, apenas arranhara Cóbue, quando lá
estava! E um grupo de oficiais da Marinha queria de mim nada menos que um
contato com os guerrilheiros, para o cessar fogo! O mesmo pedido me foi feito,
através do padre local, pelo Bispo anglicano, que chegara da capital Lourenço
Marques e queria conversar com os "legítimos representantes do povo"...
Ora, todos sabiam que os contatos nas
aldeias eram sempre os professores nativos, que negavam veementemente tal fato.
Mas para mim, estrangeiro,
"missionário" e com os boatos que lançaram à minha volta, não tive
problemas. Cheguei a uma aldeia próxima de Metangula e me dirigi diretamente ao
professor, que nunca vira antes e falei-lhe sobre o encontro com a Frelimo,
como se seu envolvimento com terroristas fosse para mim um fato conhecido e normal.
Achando-se entre colegas, o professor caiu no conto e se abriu. Avisou a um
grupo que se encontrava próximo e o primeiro encontro se fez, com o Bispo
anglicano. Quanto ao encontro com a Marinha não sei se veio a se realizar, pois
as atenções se voltaram subitamente para algo mais alarmante: a tentativa de
independência unilateral de Moçambique!