OS SINOS DA
LIBERDADE
1.1 —«Desculpem, mas não alinho...»
— Desta vez é a sério! — anunciou o Simeão Baldaque quando cheguei à sala da redacção, às 9 horas de 25 de Abril de 1974.
— A sério, o quê?
— Coitado! Ele não sabe de nada!... — fez o colega no dito habitual dos programas Luanda-74.
— Deixa-te de gracinhas idiotas e, se tens alguma coisa a dizer, fala!
— Golpe de Estado em Lisboa.
— Ouvi às 7 horas a Emissora Oficial e não falou nisso.
— Não há comunicações com a Metrópole.
— Então como sabes?
— Tu ainda vens a dormir, menino! E as emissoras estrangeiras?! A BBC informou que a maior parte das Forças Armadas aderiu. O Governo refugiou-se no Quartel do Carmo, que está cercado por um esquadrão de blindados de Cavalaria 7.
— Outro passeio das Caldas...
— Não sejas obtuso, homem! O incidente das Caldas foi uma boa manobra para dar ao Governo uma ilusão de força. Agora é que se vai ver.
Peguei no jornal, ainda fresco da impressão e percorri rapidamente os títulos.
— Ainda não traz nada sobre o caso...
— Querias? — perguntou ironicamente o Baldaque. — Não vês aí que foi visado pela censura?
O meu jornal faz-se durante a tarde e a maior parte da noite. Na rotação dos turnos, tocara-me a vez de dormir de noite e era, nesse dia, o único redactor escalado para a parte da manhã.
O Baldaque tinha ficado de piquete ao telex desde as 2 horas. Mas não regressou. E, quase de seguida, outros elementos do corpo redactorial entraram, quebrando o seu tempo de repouso, ávidos de notícias: o Maia Campita, ferozmente decidido a emagrecer e cada vez mais gordo; o Carlos Pontes com a sua barba à Renascença; o Gama Ribeiro, de bigode farfalhudo; o Rosa Amaral, de cara emoldurada numa franja loura; o Sousa Quevedo, que na véspera regressara de uma reportagem aos campos de petróleo do Zaire; o Santos Gouveia, sempre de alma aberta a todas as esperanças —, todos gente nova, idealista e alvoroçada com as perspectivas da sonhada mudança.
— Agora é que é! — exclamavam.
— Que dizes a isto, bailundo? — disparou contra mim o último dos citados, que nasceu no Algarve mas tem a cara tostada dum mouro de Ceuta.
— Que queres que diga, beduíno?
— Beduíno será o teu avô!
— O meu avô é da Gabela...
— E teu pai é fascista...
— Merda para a conversa de chacha! Eu estou de serviço e tenho que fazer.
— Viva o glorioso trabalhador! — chasqueou o Rosa Amaral. — Responde ao que te perguntam, meu filho! Vomita o que pensas, que o tempo da rolha acabou.
— Deus te ouça, poeta! Mas, por enquanto, ainda não vi nada. Deixem-me trabalhar!
— Louvo os teus propósitos, irmão! — declarou o Sousa Quevedo com a voz solene dum padre no altar. — E ofereço-te um tema mesmo em cima do acontecimento: «os sinos da liberdade»...
— Boa ideia! — apoiou o Maia Campita. — Deixemos este génio a alinhar os seus adjectivos e vamos ao Biker, rapazes! É capaz de haver lá mais notícias...
Saíram, na mesma lufada de alegria com que tinham entrado. O Baldaque foi com eles e eu fiquei só, na sala repentinamente silenciosa.
Puxei dum maço de linguados e escrevi ao alto «Os sinos da Liberdade». Mas fumei todo um lento cigarro antes de encontrar qualquer frase de abertura. Eu ainda não ouvia o badalar festivo. Ou estava desabituado do tema. De resto, só pela rádio é que se podem ouvir os sinos das igrejas de Lisboa. É pouco, para mim, que sou um homem de Angola...
Já perto do meio dia, soube que o Presidente Américo Tomaz não estava no Carmo: tinha-se refugiado no quartel de outra unidade militar, também -cercada por tropas do Movimento. A Marinha alinhara no golpe de Estado e uma fragata tomara posição no Tejo, ameaçando bombardear o Palácio de Belém, se fosse indispensável.
Às 13 horas, a secção portuguesa da BBC de Londres voltou a dar notícias. A mais importante -era que o Governo de Marcelo Caetano continuava cercado no Quartel do Carmo mas ainda se não rendera. Constava apenas que já lhe fora entregue um ultimato pelo Capitão Salgueiro Maia, que tinha os canhões dos seus «tanques» apontados para a velha caserna, significativamente situada à sombra de ruínas históricas.
No decorrer da tarde, as notícias continuaram sem qualquer confirmação oficial, com o Chefe do Estado e o Presidente do Conselho privados de comunicação com o exterior e o Governo-Geral de Angola remetido a um silêncio de expectativa.
Foi neste ambiente que, às 17 horas, regressei a casa, sem ter conseguido escrever mais que o título dum artigo e com o pensamento bloqueado pela mistura duma esperançada ansiedade e do receio de uma nova desilusão.
Pouco mais tarde, ainda não eram 18 horas, ouvi tocar a campainha e fui abrir a porta. O mesmo grupo da manhã irrompeu pela sala de estar, gritando a grande notícia: o Governo rendera-se. O Movimento das Forças Armadas acabava de triunfar sem um tiro. E os recém chegados romperam em vivas a liberdade. Viviam o seu momento de euforia. Abraçavam-se no magnífico entusiasmo da juventude. Quase choravam de alegria.
Alegria que era também a minha, porque tenho 32 anos e nunca simpatizei com o regime deposto. Por isso abracei os colegas, um a um. Mas coibi-me de ser tão expansivo como eles. E a razão era aquele homem de cabelos brancos, entristecido pela recente reforma, sentado e silencioso no seu cadeirão do living.
Caminhei para ele, a pensar num abraço de compreensão. Ergueu em barreira as suas mãos austeras de lutador e disse apenas:
— Desculpem, mas não alinho...
Parei, com o respeito de sempre por aquele velho, que durante 48 anos apoiara os governantes agora vencidos, que nunca me tentara afastar das minhas ideias políticas, que é meu pai...
1.2 — «Não tinha nada de ser!»
Os meus amigos compreenderam a situação, calaram com respeito as suas vozes de alegria e foram saindo discretamente.
Sentei-me então ao pé do meu querido velho e tentei confortá-lo:
— Tinha de ser, pai...
— Não tinha nada de ser! — protestou vivamente. E logo, com uma certa resignação — Mas não falemos mais nisso...
— Ao pé de mim, sempre poderá dizer o que pensa...
— Para quê?! Todo o meu mundo ruiu. Mas eu estou no fim. Tu pareces satisfeito e é isso que mais interessa... Agora, deixa-me só, meu filho...
Fiz-lhe a vontade, porque me pareceu que iria chorar.
No vento daquela amargura, toda a minha alegria se apagou. Será que a perfeita felicidade não é deste mundo?!
Nasci de gente pobre, fiz o curso dos liceus com livros emprestados e matriculei-me em Direito na Universidade de Lisboa, com uma Bolsa de Estudo.
Perdi-a quando entrei na greve de fome, ©m 1963. Tive então o primeiro contacto com o facciosismo político e com a polícia. Emprestei os meus discos, para iludir a fome ao som da música POP. A fome gritava mais alto e os discos nunca mais me foram devolvidos. Assisti a exageros verbais e brutalidades físicas. Nada disto destruiu a minha sede de liberdade, que tem o seu preço.
Na primeira carta após a greve, meu pai nem sequer ralhou. Deu-me apenas alguns conselhos.
«Se tanto gostas da liberdade — escrevia — lembra-te de que, em Portugal, sem um canudo de Curso Superior nunca passarás de subalterno. Conquista a carta de advogado e serás mais livre do que eu pude ser. Muitas vezes me apetece dizer umas verdades ao meu chefe, mas engulo em seco, porque o meu pão depende dele.
«A liberdade é, essencialmente, uma conquista interior. Se formos nós próprios no domínio da nossa consciência, aí somos livres, ainda que de fora nos impeçam de exprimir as nossas ideias.
«Neste sentido, fui sempre um homem livre. Se tu queres ser mais do que isto, como sempre me pareceu, se queres ter também a liberdade de exprimir o que pensas e escolher o ideal político que mais te agrade, tens de te libertar da grilheta económica, que é a necessidade primária de ganhar o pão de cada dia.
«E só a quebrarás completamente quando licenciado em Direito e devidamente instalado no exercício da tua profissão.
«Com o Curso de Direito ganhas uma profissão liberal. E o nome é bem cabido, porque uma profissão liberal ainda é o melhor processo de se beneficiar de um pouco de liberdade efectiva e real.
«Sei que perdeste a Bolsa de Estudo, mas não te aflijas muito por isso. Eu vou
mandar-te toda a ajuda que puder.»
Respondi com palavras de comovido agradecimento por tão bons conselhos, mas declarando que não precisava de dinheiro. Daria explicações para me aguentar nos estudos e havia de vencer.
Meu pai teimou e eu comecei a receber um conto e duzentos por mês. Mas soube mais tarde que o modesto funcionário passara a vestir de fardo e a usar sapatos keeds da Fábrica Macambira.
Mesmo assim, não consegui terminar o curso. As faltas dadas durante a greve da fome fizeram-me perder o ano e, com ele, o direito a adiamento do serviço militar. Fui incorporado, vivi o meu tempo de instrução na Escola Prática de Infantaria em Mafra e fui mobilizado para Moçambique.
Nessa altura, o Sousa Peixoto, meu condiscípulo e amigo, alferes como eu, mas destacado para Angola, propôs-me a troca:
— Tu és de Luanda e eu sou de Lourenço Marques. Ambos temos família na cidade onde nascemos. Dizes que teus pais são pobres e os meus vivem desafogadamente. Se trocasses comigo, eu dava-4e 50 contos...
— Não! — respondi sem hesitar. — Não sou mercenário e vou para onde me mandam.
Embarquei no Príncipe Perfeito e conheci a bordo uma bonita moça, de nome Salomé. Andámos muita vez juntos, dançámos quase sempre um com o outro e, em Luanda, despedi-me dela com a promessa de lhe escrever.
Não morri em Mueda, porque as orações de minha mãe me protegeram. Atirada por um bando de guerrilheiros, uma granada caiu junto de mim, mas não explodiu.
Como todos os combatentes, deparei com angustiantes problemas humanos. Por exemplo, durante uma patrulha de reconhecimento armado, com objectivo importante e rigorosamente secreto, alguma coisa buliu, por entre o capim alto.
Afocinhámos na picada, com as caras no lodo e o dedo no gatilho das armas.
— Esperem a minha voz de fogo! — transmiti ao pelotão. E ficámos à espera do que surgisse.
Afinal, surgiu uma velha tacanha, com as mãos bem erguidas acima da cabeça, já de carapinha toda branca.
Logo cercada por quatro soldados, a pobre mulher nem conseguia falar, do muito que tremia.
— Raios parta o azar! — praguejou o meu sargento — se a deixamos ir, adeus segredo desta operação! E levá-la às costas não podemos, porque nos atrasa a marcha. O diabo da velha... Olhe, meu alferes, vou com ela para trás daqueles arbustos <e arruma-se a questão...
— Ninguém toca nessa mulher! — decidi, após segundos de reflexão, que me pareceram anos — a velha vai connosco. Quando não puder andar, carrega-se numa padiola.
— Desculpe, meu alferes, mas está a arriscar a vida de todos nós...
— A nossa vida está sempre em risco. Não a quero defender com um assassínio. Vamos!...
1.3 — Uma certa confusão de sentimentos...
Naquele meu grupo de amigos, quase todos camaradas de trabalho no meu jornal, a alegria era sincera e profunda. E, se bem que temperada pelo respeito devido a meu pai, também em mim o era.
Mas, em termos de generalidade, na cidade branca e preta, verificava-se uma certa confusão de sentimentos, à volta da grande interrogação que se levantava para os lados do futuro. Como se ia pôr termo à guerra de Angola?
Numa geral aspiração de paz, os angolanos brancos receavam que fosse, para eles, a paz dos vencidos, ou mesmo a paz da sepultura. E a grande massa dos angolanos de cor, que não tem ambições políticas, pensava no que poderia acontecer nos dias da confusão.
Por isso, não houve imediatamente em Luanda nada semelhante à explosão de alegria popular que aconteceu em Lisboa no dia 1.°de Maio. E isto parece-me grandemente significativo, porque em Lisboa havia apenas a deposição de um regime e, em Angola, estava no horizonte o nascimento de uma nova nação.
O Rosa Amaral, escandalizado com esta apatia, perguntava:
— Então, que raio de pasmaceira é esta?! Quando chega a Luanda o 25 de Abril?
E, dias mais tarde, foi, com alguns partidários políticos mais decididos, quem organizou a primeira manifestação de apoio ao Movimento das Forças Armadas.
— Tens de vir! — disse-me ele no dia aprazado. — E vê se contas a verdade no jornal!
— Estás a insultar-me com a recomendação. Mesmo com a Censura, se calei muito do que sentia, nunca disse o que não pensava. Entendido?
— Tá bem, mas quero-te lá com o teu saco de adjectivos de primeira escolha...
A concentração é às 15 horas, no Largo Dom Afonso Henriques.
Quando lá cheguei, já o largo estava cheio de gente de todas as classes sociais e de todas as cores da pele. Mas pareceu-me que a maior parte era de curiosos, sem integração real no sentido político daquele encontro.
O Rosa Amaral foi o primeiro a falar, empoleirado no pedestal daquela estátua, que Lisboa nos mandou como sendo Afonso Henriques mas que, na má língua de Luanda, era Egas Moniz, antes de ir ao rei de Leão com a corda ao pescoço...
Com o rosto moreno debruado pela barba bem tratada, o Rosa Amaral lembrava um condottïere, com a bravura dum guerrilheiro na alma dum poeta lírico.
Falou pouco e bem. Disse que o programa era irem dali ao Largo do Palácio e, seguidamente, ao comandante-chefe. Afirmou que Luanda devia associar-se à alegria de todo o Povo português, pelo regresso às liberdades democráticas.
E logo irromperam os primeiros aplausos:
— Muito bem! Muito bem!... •
Aquecido pelo entusiasmo
popular, o orador lançou-se nas grandes
afirmações.
— A partir desse glorioso amanhecer de 25 de Abril em que o sol já era o rosto da Liberdade...
— Muito bem! Muito bem!
— ...é preciso que todos nós, finalmente restituídos à nossa dignidade de homens, todos nós...
— Apoiado! Viva o 25 de Abril! Viva o general Spínola!
— ...todos nós — dizia eu — gritemos a nossa liberdade, abracemos a nossa liberdade, defendamos a nossa liberdade...
— Muito bem! É assim mesmo! Viva a Liberdade!
— ...e proclamemos bem alto a nossa união, a nossa força, a nossa...
— Muito bem! Muito bem! O povo unido jamais será vencido. O povo unido jamais será vencido. Viva a Liberdade!
— Peço a palavra!
— Tem a palavra o senhor (como se chama?)
— Abel Rieiros, metalúrgico.
— Tem a palavra o sr. Abel Rieiros...
— Pois eu pedi a palavra só para dizer aqui bem alto, sem medo dos pides, e dos fascistas e do grande raio que os parta a todos...
— Muito bem! Apoiado! Isso é que é falar...
— ...só para dizer que sempre fui um bom democrático. E agora que foi esmagada a cabeça da tirania...
— Muito bem! Viva o 25 de Abril!
— ...agora, coimo estava a dizer, só quero gritar com toda a minha alma: viva a Liberdaaaaade!...
— Viva!!! — ecoou a multidão em delírio.
E outros vivas explodiram, ao general Spínola, ao Exército Português, a Angola, ao MFA, a Portugal, até mais outro, bem cabido mas de cariz pessoal:
— Viva o dr. Rui Luís Gomes, que é meu amigo! E logo a nota cómica, inevitável na euforia dos grandes entusiasmos populares:
— Viva o amigo do sr. dr. Rui Luís Gomes!
— Viva!
— Viva a Democracia!
— Viva!
— Viva a Liberdade!
— Viva!
— Viva Luanda!
— Viva!
— Viva Angola!
— Viva!
— Viva Portugal!
— Viva a gente dos Muceques!
— Viva!
— Viva, outra vez e sempre, o 25 de Abril!
— Viva Moçambique!
— Viva!
— Viva Cabo Verde!
— Viva!
— Viva S. Tomé e Príncipe!
— Viva!
— Viva Portugal!
No rosto fino de Rosa Amaral, notei o aborrecimento de ver descarrilar a sua manifestação para níveis de mau gosto e de chacota.
— Meus senhores — pediu, erguendo os braços num gesto de reclamar silêncio — temos de ir ao Palácio.
— Mas eu também quero falar — lembrou um dos presentes.
— Deixem falar o homem! — gritaram várias vozes.
— Sim, porque ou há liberdade ou não há liberdade! — refilou o candidato ao uso da palavra.
liderados por velhos democráticos de sempre, outros claramente nascidos das despertas ambições dos oportunistas de todas as horas confusas.
A Acção Nacional Popular, a Mocidade Portuguesa e outras instituições do regime deposto foram sucessivamente dissolvidas. Quase todos os mais entusiásticos defensores de Salazar e Marcelo Caetano desapareceram como por encanto. Afinal, nesta terra, agora novamente designada como colónia, só havia democratas. Democratas sinceríssimos, fidelíssimos e indefectíveis...
Meu pai, no seu cadeirão de repouso, lia os jornais de ponta a ponta, acendia os cigarros uns nos outros e não correspondia às minhas tentativas de o distrair da sua crescente amargura.
— Porque não aceita a realidade, pai?
— Sou um vencido e aceito a derrota.
— Mas com uma cara de desesperado...
— Estás a ser cruel, meu filho. Lembras-me aquele tenente americano da «25.a Hora» que aponta a sua máquina fotográfica a Johan Moritz e pede: — Smille! Também tu queres que eu sorria para ficar bonito no retrato?
— Só queria vê-lo menos infeliz...
— Ouço dobrar a finados por uma Pátria que sonhei grande. Não é música agradável...
— Como podemos ser tão diferentes, pai?!
— Estás profundamente enganado, rapaz! Ambos somos sinceros e é na sinceridade que se igualam os homens com ideologias diferentes. Assisti à Revolução de 28 de Maio de 1926 e as palavras que hoje se dizem são bem semelhantes às que então se disseram.
— Mas com sinais diferentes...
— Sempre os povos gostaram dos ventos da mudança. Eu já estou velho demais para mudar. Segue o caminho que julgas melhor e deixa-me ser fiel a mim próprio. Não viro a casaca, até porque foi albarda que nunca tive.
— Bem sei. Usou roupa de fardo, para eu continuar a estudar...
— Que importância tem isso, agora?
Meu pai é assim: uma rocha inabalável. E nem eu gostaria que fosse diferente...
Entretanto, na Metrópole, começaram as greves reivindicativas. E não tardou muito que o processo ecoasse em
Angola, com perturbações de toda a ordem que só a espantosa vitalidade económica do território poderá vencer.
Houve a greve dos estivadores do Porto, a dos Transportes Colectivos, a dos Bancos, a dos serventuários da Câmara, a do Caminho de Ferro de Benguela, a das tripulações de alguns navios fundeados no porto e até, numa hora em que se pediam vassouradas gerais, também parou a laboração de uma fábrica de vassouras.
Assisti, por incumbência do meu jornal, à mais breve e mais ordeira de todas: a da Refinaria de Petróleo, cujas unidades pararam às 12 horas de uma sexta-feira e recomeçaram o fabrico ao anoitecer desse mesmo dia.
No intervalo, houve reunião no Centro de Convívio do pessoal da Petrangol, com diálogo animado e a serena paciência dum major do Exército, que ajudou a conciliar as partes em litígio.
As palavras mais exaltadas que ouvi, enquanto o oficial tentava demonstrar os inconvenientes de uma tal greve, viriam dum operário mais renitente, que do meio da assistência, comentou:
— Parece um guarda republicano a falar!
Mas o major não ouviu (ou não ligou) e tudo terminou em beleza com um convite que lhe foi dirigido pelo pessoal da refinaria para uma visita a unidade.
O oficial acedeu, circulou através dos toppings e das fornalhas, acabando por entrar na sala de controlo.
— Agora, o sr. major carregue neste botão! — pediu o chefe do turno.
— Para quê?! — disse o oficial. — Eu não percebo nada de refinarias de petróleo...
— Nem é preciso. Basta carregar neste botão. Faça favor! O major fez o que lhe era pedido e o técnico declarou com a maior naturalidade:
— Pode V. Ex..cia telefonar ao sr. comandante-chefe que a Refinaria de Luanda já está de novo em labutação. Aqui tem o telefone...
1.5 — De Salomé à Mariluz
Ainda não tenho 35 anos e já uso um estado civil que cheira a velho: sou viúvo. Viúvo daquela Salomé que encontrei a bordo do Príncipe Perfeito, durante a minha viagem para Moçambique e a quem prometi escrever quando ela des-embarcou em Luanda.
Prometi e fui além da minha promessa. Na verdade, as minhas cartas e as dela tornaram-se tão frequentes e progressivamente tão íntimas que logo se transformaram em namoro pegado. Namoro por correspondência, que é dos mais perigosos que podem acontecer entre homem e mulher.
Teimoso como sempre fui, consegui vir passar a Luanda as minhas primeiras férias militares, viajando num velho Skymaster da FAP.
Meu pai ficou delirante, porque pensou que seria por amor à família. E também era, mas não em regime de prioridade. A razão mais forte estava naquelas cartas incendiárias, em que, às minhas primeiras ousadias verbais, a Salomé correspondia sem hesitações, abrindo-se toda, como um botão de rosa que desabrocha ao toque mágico dum sol primaveril.
Passei a frequentar a casa dela, onde fui acolhido com as honras de noivo declarado, aceite e seguro. Ela morava numa vivenda do Bairro da CAOP, bonita e confortável. Chamava-se Salomé de Almeida Cadernais, filha de Júlio de Malva Cadernais, funcionário público, e de Cremilde Figueirinhas de Almeida Cadernais, dona de sua casa e muito senhora do seu arrebitado nariz.
Era de leite e mel para mim, essa dama ainda frescalhota, bastante espalhafatosa, com todos os vícios da nova rica e sempre com quatro pedras na mão contra o marido, que usava com ela a fatal condescendência de quase todos os homens pacíficos e bons.
O meu pensamento de que a filha única talvez saísse à mãe depressa naufragou nas vagas encapeladas do nosso desvairo amoroso.
E o que tinha de acontecer, aconteceu...
Com uma honestidade herdada de meus pais, considerei-me comprometido e, no termo da comissão militar, casei com a Salomé, no maior disparate que ainda cometi na minha vida.
Abreviando uma história cuja recordação ainda me aflige, passo imediatamente ao final. Aquele precipitado casamento falhou em menos de dois anos, felizmente sem filhos, porque ela não os queria ter.
Requeremos o divórcio de comum acordo. Pouco depois de o juiz ter lido a sentença, ela matou-se estupidamente num aparatoso desastre de automóvel. E, apesar de tudo, tive muita pena dela.
Durante longos meses, que lentamente se
foram dobando em três novelos de anos, senti-me complexado pela ideia de ser viúvo. Entendia que isso me colocava à margem de qualquer interesse de rapariga.
Até que reparei nos olhos límpidos da Mariluz (Maria Lucinda, na pia do baptismo).
Os olhos límpidos diziam coisas suaves mas eu já tinha perdido a sensibilidade requerida para bem as entender. Interpretei-as com um sentido que não tinham, aproveitei a primeira oportunidade para avançar com as mãozinhas, levei uma tampa de todo o tamanho e tive o bom senso de reconhecer o meu erro.
— Desculpa, Mariluz! — pedi com humildade. — Transformei-me num bicho... Sabes que fui casado?
— Contaram-me.
— Foi uma péssima experiência!
— Acredito. E deste agora em experimentador profissional...
— Será um pouco isso...
— Mas é mau. Nem todas as mulheres são iguais.
— Estás zangada comigo?
— Não gostaria que me obrigasses a tanto.
— Não quero obrigar-te a nada. Só gostaria de me reconciliar com a vida.
— Acabarás por encontrar quem te ajude nessa boa tarefa.
— Talvez já tenha encontrado...
Ela sorriu, com os seus modos comedidos de menina séria e bem educada. Multiplicámos os nossos encontros, comigo no comportamento de namorado fiel e respeitador. Contei-lhe a minha vida. Contou-me a dela. E nasceu entre nós uma doce intimidade.
Nos olhos límpidos também às vezes chispavam fulgurações muito vivas, cuja intenção não me atrevia a perguntar. Tornava-se belíssima nesses momentos fugazes.
— Porque estás tão linda? — perguntei às vezes.
— Isso é dos teus olhos... — respondia evasivamente.
— Gosto muito de ti — disse-lhe, mais tarde, evitando ainda a palavra amor.
— Não gostas mais do que eu...
Arregalei os olhos, na surpresa daquela inesperada confissão. E, depois, murmurei-lhe baixinho:
Tu dizes que gostas muito e eu digo que gosto mais; juntam-se as bocas num beijo e os beijos ficam iguais...
— Bonitos versos! São teus?
— São.
— Dedicados à tua primeira mulher?
— Fi-los esta noite, porque não conseguia dormir.
— Aquém?
— A uma certa rapariga, cuja lembrança me tira o sono...
— Não te sabia poeta. Os poetas imaginam coisas...
— Não há como tirar a prova da verdade!
E assim aconteceu o nosso primeiro beijo de amor...
1.6 — «Nem precisa, homem!»
Num dos primeiros dias de Maio, o cabo João dos Santos, da Polícia Militar, estava de sentinela à porta de armas da Fortaleza de S. Miguel, em Luanda.
Pensava na sua modesta casa na Rua da Figueirinha, em Oeiras, onde sua mãe o aguardava ansiosamente, agora que a guerra de Angola ia findar, para dar lugar a uma solução política, livremente escolhida por toda a população da maior província africana de Portugal.
Sonhava com o belo sorriso daquela moça leal e afectiva, que encontrara na Feira Popular de Paço de Arcos, pouco antes do seu embarque para Luanda, e que agora lhe escrevia todas as semanas. Sentia-se já demais, de guarda àquela grave fortaleza de outras eras, tendo à sua frente quatro grandes canhões do século XVIII.
Mas, de repente, olhando por cima daquelas peças históricas, avistou um belo Mercedes a atravessar a ponte dos suicídios que une a cidade alta ao morro de S. Miguel, por cima da ravina que do Hotel Continental conduz à Praia do Bispo.
O veloz automóvel galgou rapidamente a pequena encosta, entrou na meia laranja e estacou junto da porta de armas. Já perfilado em continência, o cabo viu como do carro saía um general de quatro estrelas. E, ao fitar-lhe o rosto, João dos Santos ia caindo de puro espanto. À sua frente estava o general Costa Gomes.
Com um risinho de esguelha, o antigo comandante-chefe das Forças Armadas de Portugal em Angola correspondeu à continência do militar, entrou no túnel de acesso e pediu ao oficial de serviço que o conduzisse ao comandante-chefe.
Em passadas largas e firmes, foi pisando aquelas pedras históricas e entrou na impressionante sala de comando.
Também colhido de surpresa, o general comandante-chefe das Forças Armadas ergueu-se da cabeceira da grande mesa rectangular, onde estudava um grande mapa do Sector Leste e bateu a continência.
— Podes sair — disse o general Costa Gomes — já estás substituído neste posto. — E o outro saiu, sem dizer palavra.
Entretanto, alguns capitães e um major, que tinham chegado de Lisboa no mesmo avião militar do general Costa Gomes, reuniram-se no salão de convívio da Base Aérea n.° 9, à volta de mesas bem fornecidas de cerveja Cuca e de uísque White Horse.
— Como foi isso do 25 de Abril? — perguntou um piloto de helicópteros.
— Temos aqui o cérebro da revolução — informou um dos recém-
-chegados. — Ele que vos conte.
O oficial indicado bebeu o resto do seu uísque, esmagou no cinzeiro o cigarro que começava a fumar e declarou que tudo tinha sido muito simples.
— Os gajos estavam todos podres. Não foi preciso disparar um tiro. Tudo funcionou com a precisão dum relógio suíço. Logo às primeiras horas da manhã, já sabíamos que tínhamos vencido.
— Mas o Presidente do Conselho só se rendeu ao fim da tarde
— objectou um tenente aviador.
— No Carmo, o capitão Salgueiro Maia armou em menino bem comportado, que não gosta de partir a louça. Ia-se lixando, porque chegou a estar encalhado entre a Guarda Republicana que o visava das janelas do Quartel e uma força de infantaria, cujas intenções não conhecíamos e que descia dos lados da Santa Casa da Misericórdia. Mas o Maia é um gajo fixe e tudo terminou em bem.
— E agora? — quis saber o chefe dos mecânicos da Base.
— Agora, vamos começar a limpar as pocilgas do país.
— Quanto às colónias? — insinuou outro.
— Temos de acabar com esta guerra sem sentido e entregar a terra aos donos. Estamos muito satisfeitos com os nossos camaradas de Angola. Mas os elementos do MFA devem manter os olhos bem abertos. Sabemos que há por aí uns tipos com peneiras. Vão ser imediatamente enquadrados por gente da nossa inteira confiança... Vejo aí, na placa de estacionamento dois Camberras da África do Sul! — que vieram cá fazer?
— Havia um plano para acabar com os últimos focos de resistência dos turras — explicou o comandante da Base. — E os nossos caças bombardeiros F 84 já não estão operacionais. Com as três Fortalezas Voadoras B 26 vindas de Lisboa e uma pequena ajuda da Força Aérea Sul Africana, já podíamos actuar em força.
— Tudo isso é história antiga — decidiu o major. — O general Costa Gomes deve estar a despedir o comandante-chefe. E certamente ordenará a partida dos Camberras para a sua terra e o regresso das três Fortalezas Voadoras a Lisboa. Os bombardeamentos da aviação em Angola terminaram. E pronto, rapazes! Vão consciencializando as tropas da necessidade de abandonar uma terra que nos não pertence, Portugal tem de reconquistar a sua dignidade e o seu prestígio no mundo. O fascismo terminou. É preciso substituir rapidamente os elementos suspeitos. E cautela com a maioria dos brancos, hein!............
Entretanto, falando ao findar desse mesmo dia, pela Emissora Oficial de Angola, o general Costa Gomes adoptava um tom muito diferente, manifestando uma grande confiança no futuro do que significativamente chamou «a maior parcela de Portugal».
Afirmou que Angola continuaria portuguesa, embora ressalvando que seriam as suas populações — todas as suas populações — a decidir sobre os laços que desejavam manter com a Mãe-Pátria, no exercício do seu direito à auto-determinação. Assegurou solenemente que nada se faria sem que a etnia branca fosse previamente consultada. E, referindo-se aos guerrilheiros, que então passou a chamar movimentos emancipalistas, embora considerasse muito pequena a sua representatividade, disse que poderiam vir para a sua terra dialogar connosco no plano das ideias políticas. «Mas com uma condição — acrescentou — a de deporem as armas. Tenho ordens terminantes da Junta de Salvação Nacional para não permitir a propaganda de movimentos em armas. Permitir isso seria apunhalar os nossos soldados pelas costas.»
Antes de regressar a Lisboa, não deixou de visitar um velho amigo e conterrâneo, em casa de quem jantava frequentemente quando foi comandante-chefe das Forças Armadas na maior província do Ultramar Português.
E como este, enquanto lhe servia um uísque bem doseado, insinuasse que não tinha um centavo fora de Angola, atalhou impulsivamente, em tom de grande convicção:
— Nem precisa, homem!... Se eu fosse rico,
era agora que investia todo o meu dinheiro nesta bela terra.
1.7 — Manifestação e contra-manifestação
Veio a Luanda o ministro da Comunicação Interterrítorial, com a declarada intenção de auscultar as populações sobre a nomeação do novo governador-geral.
Com a sua paciência de advogado, habituado a dirimir «milandos» em Lourenço Marques, ouviu quantos quiseram falar-lhe e depois, numa animada conferência de imprensa, revelou desconsoladamente que, em vez de um nome, lhe tinham sugerido quarenta.
No dia da partida (26 de Maio de 1974), autorizou que adeptos dos movimentos emancipalistas se manifestassem em frente do palácio. E pôde ler dezenas de cartazes, desde os apelos à independência total e imediata, até aos «vivas» e «morras» que são inevitáveis quando o povo começa a falar sem papas na língua.
Mas o pior aconteceu depois: a contra-manifestação, em que o ministro foi alvo de palavras azedas, que persistentemente o acompanharam até ao avião do regresso a Lisboa e, mais do que todos os discursos de circunstância, o terão alertado para a real complexidade do processo de descolonização de Angola.
De regresso a casa, informei meu pai dos acontecimentos e pedi a sua opinião.
— Nunca aprovei faltas de respeito à autoridade constituída — respondeu ele prontamente. — Mas a primeira manifestação também foi um erro. Assisti, por acaso, à debandada dos manifestantes. E não gostei.
— Incomodaram-no?!
— Nada. Quando atravessava um grupo mais numeroso, até um garoto negro teve um rasgado gesto de sinaleiro e berrou cordialmente:
— Deixem passar este branco velho!
— Mas também houve atitudes bastante diferentes, pedradas em automóveis, coisas que podiam dar muito mau resultado.
— A contra-manifestação foi mais desordeira— intercalei, em defesa da verdade.
— Não sei, porque não vi. Mas, a ter de acontecer, foi bom que o ministro assistisse. Se já cá não estivesse e depois lho contassem, talvez não acreditasse...
— Não me diga que aprova?!
— Não aprovo nada! Já te disse que não gosto de desordeiros, sejam eles quem
forem. Mas os governantes que nos mandam de Lisboa devem saber prever as reacções de todos os sectores da população. Luanda não foi construída por gente abúlica ou insensível...
Calei-me respeitosamente. Meu pai aparentava uma serenidade que não sentia. Continuava fiel a convicções muito sinceras. E ao mais ligeiro toque, a ferida sangrava...
Eu via os factos de outra perspectiva. Mas também começava a sentir-me apreensivo. Não poderá a Nação Angolana nascer sem grandes sofrimentos e convulsões?...
Tardou mais tempo do que o previsto a nomeação do novo governador-geral de Angola, mas acabou por chegar. E, com grande surpresa para muitos, recaiu sobre o general Silvino Silvério Marques.
— Vais à chegada do governador? — perguntou-me a Mariluz, na manhã do dia anunciado para o acontecimento.
— Tenho mesmo de ir, porque estou encarregado da reportagem para o jornal.
— Correm por aí uns panfletos, a aconselhar que não vão lá...
— Então, irá muito mais gente.
— E é capaz de haver confusão.
— Confusão também é notícia...
— E perigo...
— Gostarias de um homem medroso?
— Não. E até aos bocadinhos te aceitaria com amor inteiro. Mas a coragem não impede a prudência...
— Um jornalista é, de profissão, um imprudente. Mas não te aflijas, que não vai haver nada de especial.
E até houve. Não pelo facto de o avião dos TAP chegar atrasado, ao que já estamos habituados, mas porque não vi os costumeiros ranchos de crianças das escolas, nem as bandeiras da Mocidade Portuguesa, nem as camionetas carregadas com gente dos muceques. O que logo se notava era um dispositivo militar de muito respeito...
No entanto, não faltava gente, ou por sincera dedicação a um governante já conhecido em Angola, ou em reacção bem luandense contra o conselho de não comparecer.
De inteiramente novo, registei a presença dum grupo, situado bem em frente da saída da aerogare, com três cartazes, num dos quais se dava o «fora» ao governador prestes a chegar. Isto
acontecia pela primeira vez em Luanda, depois de quase meio século em que os governantes enviados de
Lisboa eram sempre entusiasticamente aplaudidos à chegada e severamente criticados à partida...
Mas também este incidente teve um desfecho ainda mais original e imprevisto. Após a breve cerimónia do protocolo, e quebrando a rotina da habitual mensagem aos microfones da Emissora Oficial na sala dos VIPS, o general Silvino Silvério Marques atravessou por entre o povo que enchia o átrio do aeroporto e encaminhou-se para o automóvel.
Com o seu modo grave mas afável, saudou a multidão acumulada no largo e, como não podia deixar de ser, leu num dos cartazes erguidos bem à sua frente:
«Silvino, vai-te embora!»
Teve um sorriso indefinível e com a mão fina saudou cordialmente quem assim o hostilizava.
Aconteceu então o inacreditável: o grupo deixou cair o cartaz e correspondeu à saudação do governador com uma salva de palmas.
O general Silvino Silvério Marques entrou no carro e seguiu para um palácio já seu conhecido e para uma das mais amargas fases da sua vida de português, de soldado e de governante.
Mas esta sua segunda passagem pelo Governo-Geral de Angola, infelizmente tão breve, foi um clarão de esperança para a esmagadora maioria dos angolanos de todas as etnias.
1.8 — Um clarão de esperança
Assim o afirmou, com inteira verdade e muita oportunidade, um dos mais antigos colaboradores do meu jornal, com ideias muito semelhantes às de meu pai, que saudou o novo governador-geral com palavras de muito respeito e admiração, sem se importar absolutamente nada com a bruta hostilidade, que já então começava a manifestar-se, da parte dos novos antifascistas, contra tudo o que pudesse interpretar-se como apoio, directo ou indirecto, a homens do antigo regime.
«Depois de Norton de Matos — escreveu ele — o general Silvino Silvério Marques é o único governador-geral de Angola a voltar ao cargo que anteriormente exerceu.
«Deixou Angola há cerca de oito anos, com as lágrimas nos olhos. Regressa em circunstâncias decisivas para o destino desta terra e com uma amplitude de iniciativa que nem ao general Norton de Matos foi concedida.
«Penso conhecer bastante bem as suas
qualidades, porque sou testemunha presencial da sua actuação no Conselho Legislativo e beneficiei do
privilégio de o
acompanhar em algumas das suas viagens através de Angola.
«Não agradou então, nem agradará agora, a toda a gente. Mas o defeito que mais insistentemente se lhe apontou, durante os quatro anos do seu anterior Governo, foi, afinal, a sua mais alta virtude: a sua contínua preocupação de chamar os mais válidos naturais da terra ao desempenho de funções qualificadas no Governo, na administração pública e nas empresas.
«Trabalhou esclarecidamente pela sociedade multirracial, com uma honesta e constante atenção aos homens de cor, mas com os olhos bem abertos para os legítimos interesses de todas as etnias. Diziam alguns que só apertava as mãos dos pretos. Mas, sempre que o acompanhei, vi que apertava a mão de toda a gente.
«A sua coragem está documentada pelo próprio facto de aceitar, nas presentes circunstâncias, as tremendas responsabilidades do cargo de governador-gera'1 de Angola.
«Mas, embora altamente dotado para as tarefas mais delicadas, o general Silvino Silvério Marques precisa aflitivamente, não do apoio de todos (que nunca o terá) mas, pelo menos, do apoio de uma significativa maioria dos angolanos de todas as etnias.
«Se lhe negarmos este apoio, talvez nem assim o levemos ao desânimo, porque é um soldado robustecido na luta e um homem de coração africano, definitivamente ligado a esta terra pelo sangue de um filho muito querido.
«Nós é que, abandonando-o à hostilidade aberta dos seus inimigos, poderemos entrar nos tenebrosos resvaladouros do desespero.
«Na verdade, o general Silvino Silvério Marques representa agora uma esperança para todas as populações de Angola.
«E é esta esperança que eu hoje saúdo, com inteira sinceridade, mas sem qualquer espécie de subserviência.»
No dia seguinte, quando saía da Igreja de Jesus, onde fora ouvir missa, o novo governador-geral encontrou o autor do artigo e, depois de lhe agradecer as suas boas palavras, acrescentou, de olhos nos olhos:
— Continue a defender a Angola dos portugueses...
Houve quem ouvisse essa recomendação, porque no dia seguinte, o Santos Gouveia, que estava a ficar «vermelho assanhado», como dizia o Rosa Amaral, comentou na redacção do jornal:
— Não vai durar muito, com estas ideias ultrapassadas...
O Santos Gouveia sabia que esse governante profundamente dedicado à terra do seu governo já estava sob a implacável hostilidade dos que, em Luanda e em Lisboa, tinham pressa de entregar todos o Ultramar Português ao despotismo de Moscovo.