OS
DIAS MALDITOS
2.1 — A morte do enfermeiro Pedro
Benge
Num dos
primeiros dias de Junho, ainda antes da chegada do governador-geral Silvino Silvério
Marques, o enfermeiro negro Pedro Benge foi assassinado
por um branco.
Correu que o
acto tresloucado acontecera na sequência duma discussão azeda.
— O
enfermeiro limitou-se a dar «vivas»
ao general Spínola — diziam alguns.
— Não acredito!
— afirmava o Baldaque, que é um moço ponderado e sério.
— Eu conheço o assassino e já lhe
falei agora na cadeia. Está arrependidíssimo do que fez, mas afirma que não
conseguiu dominar-se quando o enfermeiro lhe fez ameaças relativas à filha e à
mulher.
— E será verdade? — perguntei eu.
— Ninguém
sabe, porque não houve testemunhas. Mas estou tentado a relatar esta conversa no jornal.
— É
disparate! Coisas destas só se afirmam quando se podem provar.
— Compete-nos esclarecer
o público.
— Assim não esclareces nada, porque tu próprio não
conheces a verdade.
— É a versão
mais verosímil. E eu não vou afirmar que é a verdadeira. Julgas possível que
um homem normalmente sensato mate outro só porque ele dá vivas ao Chefe do
Estado?!
— Vivemos horas de anormal excitação...
— Tentar
explicar um gesto insensato é combater o clima de anormalidade.
— No caso
presente não será. Tudo quanto pareça atenuante do crime servirá para enfurecer
os mais exaltados. E, para a população negra, já o Pedro Benge se transformou
num mártir.
Embora me não parecesse convencido, o
Baldaque escreveu uma crónica sóbria e objectiva, abstendo-se de comentários. E
o funeral de Pedro Benge, com slogans e bandeiras do MPLA, foi uma
impressionante manifestação de protesto ordeiro e silencioso. Claro que o dispositivo militar, dentro e fora do cemitério, também era de respeito. E houve o
cuidado de fechar ao trânsito de viaturas a zona mais quente do percurso.
A tensão na cidade encaminhava-se
para o ponto de ruptura.
Ao amanhecer
de um desses dias, o Gama Ribeiro
apareceu na redacção do jornal, onde eu passara a noite.
— Preciso dum fotógrafo! — anunciou de
olhos esgazeados.
— Há novidade?
— Há mais um
crime. Lá em cima, à entrada do Muceque Lixeira, um motorista de táxi está
morto, ao volante do seu carro. Estrangulado.
— Por quem?
— Ninguém
sabe dizer. Aparentemente, pêlos passageiros que transportava. Está de cabeça
caída para trás, sobre as costas do banco dianteiro, na surpresa da morte. Um
horror!
Precisamente
nesse momento chegava o fotógrafo do jornal, também alarmado. E seguiram ambos
para o local da tragédia.
Na tarde do
mesmo dia, os motoristas de táxi manifestaram-se junto do Palácio, protestando
contra o crime e pedindo providências quanto à sua segurança no exercício da
profissão.
Foram-lhes prometidas.
Mas, logo no
dia seguinte, verificou-se na mesma zona um estúpido assalto aos passageiros dum machibombo. Morreram
inocentes que pacificamente voltavam
do seu trabalho.
Germinavam as sementes malditas do ódio.
— Foram os taxistas! — gritavam uns.
— Não foram nada! — contestavam outros.
E as
opiniões dividiam-se, conforme as simpatias e tendências de cada um. Só a
imprensa de Lisboa parecia dona da
certeza absoluta: «tinham sido os racistas brancos.»
Começou,
para mim, um tempo de intensa actividade profissional. O jornal queria uma
cobertura completa dos acontecimentos. E eu fui para o meio de emoções terrivelmente contagiosas.
Nunca lamentei tanto o meu escasso poder de
expressão. Não há palavras que digam o impacto daquela multidão silenciosa,
acompanhando a pé a última viagem de Pedro Benge, sem mesmo olhar para a tropa
que o general Franco Pinheiro encarregara de assegurar a ordem e a dignidade
do cortejo fúnebre. Não conheço adjectivos capazes de definir a atitude serena e vigilante dos soldados brancos e
negros. E não há, na minha singela técnica de jornalista,
recursos para exprimir a luz amargurada dos olhos dos brancos (falo da grande
maioria pacífica), aio saberem-se incriminados pela imprensa metropolitana de
todo o mal que acontecia em Luanda.
Não é
preciso ser branco (e eu não digo a minha cor) para compreender o profundo
desgosto de homens tão injustamente apreciados por gente do mesmo sangue
e da mesma Pátria. Não é preciso
ter as mesmas ideias políticas, nem
as mesmas crenças religiosas; basta ser apenas um homem como eles.
Mergulhado
nos acontecimentos por dever de ofício, sinto uma enorme tristeza ao relembrar
esses dias malditos, que mancharam de sangue a mais bela cidade da África
tropical.
Vi a raiva
incontrolada das multidões exasperadas. Senti o cheiro acre do sangue
derramado, ainda vivo e quente. Ouvi os gritos do ódio adulto e choro
confrangedor das crianças aterrorizadas.
Não quero —
ninguém deve querer — que Luanda se transforme num hediondo matadouro.
Toda a minha
alma se insurge contra os instigadores de tamanho crime. Todo o meu coração
pede que se trave esta escalada de violência.
E não me digam que as nações também nascem em dor!
Será que todos nos entregamos à fatalidade?!...
2.2 — Sangue,
intrigas e traição
Prosseguiram e agravaram-se os tumultos nos muceques.
Numa segunda-feira,
por ordem da FNLA, os trabalhadores de cor faltam em massa, guardando o luto
pelos seus mortos.
A tropa
negra deixa as armas nos quartéis e marcha para a Fortaleza de S. Miguel, onde
protesta junto do comandante-chefe contra a sua exclusão das patrulhas de
protecção ao povo dos subúrbios.
Uma grande
multidão civil, que vai na retaguarda dos soldados, depara com uma barreira da
Polícia Militar. Impasse. Manifestantes mais exaltados tentam desarmar um
elemento das forças armadas. Segue-se a inevitável reacção pelo fogo. Estalam
rajadas das armas de guerra, primeiro para o ar, depois para o monte. Tombam
alguns manifestantes. Um jovem estudante de Medicina, que se apeia de uma
ambulância para acudir aos feridos, é fulminado por uma bala vadia. E, pela
tarde, os autotanques dos bombeiros lavam o sangue da Avenida Álvaro
Ferreira...
Uma
delegação do M.P.L.A. vai a Lisboa expor a sua versão dos acontecimentos. E,
dias depois, na orla dos muceques, encontrei um dos seus elementos, que
afirmava, num grupo de militantes do partido do dr. Agostinho Neto:
— Nada temos
a recear de Lisboa. Os homens do MFA
estão mortinhos por se verem livres de Angola...
Contei isto
ao Rosa Amaral. Respondeu-me que o MPLA era um partido de fanfarrões. Mas estava
internamente tão esfrangalhado que já não valia o espirro dum gato sifilítico.
— Talvez não
valha — comentei, reticente —, mas não me admiro nada se conseguir afastar daqui o general Silvino
Silvério Marques. Já o chamaram a Lisboa...
— É verdade?! — perguntou o meu colega de redacção.
Era verdade.
E essa viagem não teve regresso. Será que o dr. Almeida Santos o mandou para
Luanda, não porque assim lho tivessem pedido os homens de Angola, mas para mais
depressa o queimar?!...
Já em pleno
domínio da traição, esse Homem bom, generoso e competente foi substituído por
uma Junta Governativa, presidida pelo almirante Rosa Coutinho.
O Almirante
Vermelho desceu na capital de Angola com a arrogância de um comandante de
tropas de ocupação.
— Quando
volta o sr. general Silvino Silvério Marques? — perguntaram-lhe os jornalistas
no aeroporto.
— Já não é
governador-geral de Angola — respondeu com a sua malcriadez de complexado pelas
sevícias a que o submeteram em Matadi.
— Quando será a independência de Angola?
— São os
angolanos que hão-de decidir. Eles já decidiram? — fez ele com o seu risinho
cínico...
2.3 — Que querem fazer da nossa cidade?!
— Será agora
que teremos algum sossego? — pergunta-me a Mariluz, com o seu ar de donzela
assustada.
— A história dos homens é uma crónica de guerras.
— Bem sei.
Mas nós precisamos de paz e tu andas
no meio dos tiros...
— Com uma esferográfica e um bloco de apontamentos.
— Frágil
couraça contra as balas das
metralhadoras!
— As armas
hão-de calar-se.
— Não é o que se vê...
E não era.
Chegaram
mais dias tumultuosos. Durante a noite, a escuridão dos muceques, enjeitados
pela energia eléctrica vinda do Quanza, iluminava-se com o rubro clarão dos
incêndios. Os estabelecimentos comerciais dos brancos e cabo-verdianos foram
sistematicamente pilhados e queimados. A morgue encheu-se de cadáveres e o
Hospital de S. Paulo ficou encharcado pelo sangue dos feridos. No Golfe, no
Cazenga, no Lixeira, no Prenda e no Catambor, multiplicavam-se as agressões
entre homens da mesma ou diversa cor.
Com a pura
intenção de evitar maior efusão de sangue os soldados tentavam restabelecer a
ordem com a simples presença. Mas havia nos subúrbios gente interessada em que
não houvesse paz, excitando as populações. E estas interpretavam como fraqueza
as armas silenciosas. Tropas de elite, de bravura comprovada, envergonhavam-se
de recuar perante bandos cada vez mais atrevidos e receberam, finalmente, ordem
de abrir fogo, quando absolutamente necessário.
Nas zonas
centrais da cidade recomeçaram a ouvir-se as rajadas das armas automáticas.
Helicópteros e Dorniers da FAP sobrevoavam incessantemente as áreas mais
afectadas.
Os
comerciantes dos muceques fugiram para a zona do asfalto. Luanda — a cidade
branca e preta — parecia infectada pela doença do apartheid. Como não
sabe viver dessa maneira, tomou, durante algum tempo, os aspectos duma cidade
morta. E a revista Notícia, numa das suas crónicas mais emocionantes,
perguntava desoladamente:
— Que querem fazer da nossa cidade?
Com uma inconsciência
incrível, a imprensa lisboeta continuava a sua odienta campanha contra os
brancos de Angola, atribuindo-lhes todas as culpas, mostrando-se vivamente
interessada em despertar todos os ressentimentos da população negra, acirrando
o ódio, parecendo desejar que não
ficasse nem um só branco vivo, numa cidade por brancos portugueses fundada há
quatrocentos amos.
— Como pode
isto acontecer?! — perguntava-se entre gente pacífica, que sempre viveu do seu
trabalho, que sabe ser pior do que nos muceques de Luanda a vida em certas
aldeias do Norte metropolitano, e que tem sido tão explorada como os pretos
pelos colonialistas de Lisboa e Porto.
Instalou-se
um forte dispositivo de segurança entre a cidade e os subúrbios. Na linha
divisória, todos os carros são interceptados, para se. ver
se levam armas.
Meu pai
gosta de ir ver o que se passa, em lentos passeios a pé, ou no seu velho Cortina.
No regresso
de uma dessas voltas de curiosidade, encontra-me em, casa e, contra o seu
costume, mete conversa:
— A tropa
começa a cumprir — informa. — Numa ida ao Aeroporto, mandaram-me parar três
vezes. E, logo à primeira, um sargento, que deve ser do Minho e ainda conserva
as cores de lá, espreitou para dentro do automóvel e disse:
— Traz alguma arma?
— Não senhor.
— Hum! Assim já velhote, com certeza tem aí a sua pistola...
— Já lhe disse que não tenho. Mas pode revistar-me...
— Não temos ordens para revistar ninguém. Siga!
— E o pai seguiu? — perguntei eu.
— Com alguma
desilusão. Se a tropa quer controlar, deve controlar a valer.
— O pai disse que a tropa está a cumprir...
— Pois disse...
— Então — fiz eu, perplexo.
Ele olhou
para mim durante segundos, teve um sorriso triste e esclareceu:
— Cumpre as ordens
que recebe. Só o futuro dirá se chegam para impedir maior sangueira.
2.4 — «Podia
matá-lo, seu marinheiro de água doce!»
O Rosa
Amaral já não mostra o mesmo entusiasmo com que orgarnizou em Luanda a primeira
manifestação a favor do Movimento das Forças Armadas.
Foi hoje ao
enterro do jovem estudante de Medicina, morto na Avenida Álvaro Ferreira,
durante a humaníssima tarefa de acudir aos feridos, quando os soldados
tiveram de optar entre abrir fogo ou entregar as armas aos civis amotinados.
— Maldita
bala! — exclamou ele, ao regressar à redacção com os apontamentos para a
reportagem do funeral.
— Estava muita gente?
— Nada que se pareça com um acompanhamento de Pedro Benge.
— Aí entrou política...
— Começo a
odiar a política — fez ele com desalento. — A morte desse moço branco é tão
lamentável como a do enfermeiro negro.
— Mas não foi um crime.
— Sei lá...
— Estás desorientado, homem!
— Venho de ver enterrar um amigo...
— Que não foi visado pessoalmente.
— A morte com
alvo certo é o gesto assassino de um só homem. A morte indiscriminada é um
crime de todos.
— Também te consideras culpado?!
— Claro que
sim. Todos nós somos responsáveis pelo clima de loucura que deixámos criar
em Luanda. Andamos todos excitados. E pouco
se faz para apagar a fogueira.
— Estás a ser
injusto. Todas as emissoras e jornais
de Luanda se juntaram agora num apelo à calma.
— Bem sei,
mas não basta. Nos muceques apedrejam os carros dos bombeiros que vão acudir
aos incêndios. Há dias passaram pelas ruas da cidade os quatro negros mortos no
assalto ao machibombo. Mas a quinta vítima foi esquecida, porque era um branco,
que também lá morreu. Não gosto de cortejos macabros e, muito menos, de
qualquer espécie de discriminação...
O Rosa Amaral
é branco e louro como um inglês de Oxford, mas sei que tal circunstância nada
influi nas suas apreciações. Não há, no seu coração, nem um miligrama de
preconceitos étnicos. Lamenta, tanto como eu próprio, este vento de violência
que devasta os subúrbios de Luanda, e em que é de pretos o maior número de
vítimas, porque já não há brancos para matar, embora conste que os há, vindos
de fora de Angola, para incitar à matança.
Sucedem-se
os actos incompreensíveis para quem seja apenas um homem bom. Os brancos
deixaram de ir aos muceques, mas há milhares de pretos que fogem para os
bairros de predominância branca. A pilhagem, o incêndio e a morte continuam à
solta nas zonas suburbanas.
«Vários
incêndios crepitam. Acorrem novamente os bombeiros, mas desta feita não passam.
O acesso foi bloqueado. Recorrem os bombeiros ao exército para que lhes
possibilite o acesso. Sem melhores resultados. Uma barragem na entrada corta a
via e uma multidão atrás dela hostiliza os soldados. O que arde é para
arder...»
Assim escreve a revista Notícias, no seu número de 10 de
Agosto.
Até as
ambulâncias que recolhem os feridos
são alvejadas com coqueteis Molotov. Nem os postos de venda de pão escapam à
fúria destruidora. Nem as escolas, tão necessárias à promoção social dum povo
que vai para a independência num mundo ferozmente competitivo.
Os cinemas
suprimem sessões, mesmo no centro da cidade. Era certo dia, é interdito todo o
trânsito automóvel após as 20 e 30. Parece morta, a minha linda Luanda!
Numa dessas
noites de sono intermitente, acordei com o estalar de tiros mais próximos e fui
à varanda da frente, onde já encontrei meu pai.
— Há para
ali barulho do grosso — informou ele, apontando o Muceque Prenda.
E havia.
Tiros soltos de pistola, logo seguidos de rajadas de G3. Estouros maiores, que
parecem de granadas de mão. Explosões mais abafadas, mas sinistras, talvez dos
foguetes das basucas. Depois a cadência das armas de guerra, no tiro-a-tiro. E
mais disparos de pistolas. E novas rajadas de carabinas automáticas, agora
contínuas, resolutas, raivosas, na decisão militar de acabar com aquilo. Quinze
minutos de fogo nutrido, terrivelmente ampliados pelo multiplicar da nossa
angústia.
— É uma autêntica batalha! — diz meu pai.
— Parece que
já acabou — respondo eu, dando voz à minha esperança.
Esperança
vã, porque o tiroteio recomeça, ainda mais vivo. Agora julgo distinguir o
ribombo dos morteiros. Um helicóptero, denunciado mais pelo seu grasinar
característico do que pelas luzes de posição, aparece em voltas apertadas sobre
o Prenda. E, logo a seguir, as rajadas tornam-se menos frequentes, o
tiro-a-tiro rareia e volta um silêncio que, para alguns, terá sido definitivo.
Só então
reparamos, meu pai e eu, que todas as janelas
do largo fronteiro à nossa casa estão cheias de gente alarmada por esta guerra
estúpida que tenta atingir uma cidade pacífica.
A guerrilha
suburbana já acontece em pleno dia. À entrada do Muceque Lixeira, mesmo ao pé
da rua asfaltada, incendeiam mais um estabelecimento, que fica a arder durante horas. Os trabalhadores
da zona industrial da estrada do Cacuaco preferem regressar a suas casas pela
Avenida da Boavista.
A notícia (ou o boato) de que pretendem
desarmar a Polícia de Segurança Pública leva uma grande massa de civis até ao
Comando-Geral da Corporação. Forma-se um cortejo até ao Palácio do Governo
Geral. Um magote de populares teima em entrar no edifício e procura o
presidente da Junta Governativa, que foge de gabinete em gabinete, até ser
cercado por uma turba furiosa. Pula para cima duma secretária e ergue as mãos a
proteger a cabeça, na exacta posição de um animal encurralado — a única posição
em que poderá ficar na história.
Invectivado,
insultado, trémulo de medo, promete tudo, concorda com tudo, confessa que os
verdadeiros colonialistas estão em Lisboa.
A multidão
acalma, chega mesmo a sorrir com desprezo. E, segundo se afirma no dia seguinte
por toda a Luanda, uma rude mulher, vendedeira de peixe no Mercado dos
Lusíadas, terá então bradado para o Almirante Vermelho:
— Podia
matá-lo, seu marinheiro de água doce, mas o senhor não vale os 7$50 que me
custa uma bala...
Depois desse
dia, o Palácio do Governo Geral passou a ser guardado por fortes destacamentos
dos fuzileiros especiais, que vigiavam permanentemente nos terraços do
edifício, à volta dele e ao longo dos corredores.
2.5 — «A
minha cubata a tropa não pode chegar...»
Nas repartições,
nas fábricas, nos escritórios das empresas privadas, nas esplanadas, nos
cadeirões da sapiência da Livraria Leio, nos cafés, nos restaurantes, no
convívio das famílias à mesa das refeições, os acontecimentos dos muceques
constituem o tema de todas as conversas.
— São
racistas brancos — afirmam os mais timoratos, que tentam uma carta de seguro,
dizendo-se agora do MPLA.
— São
guerrilheiros da FNLA que se infiltraram nos subúrbios — declaram outros, argumentando
com o facto de ninguém hostilizar os pretos na cidade do asfalto.
— É tudo uma
desgraça — concluem aqueles para quem o sangue inocente não tem cor política.
E a tónica geral das conversas é de espanto, apreensão e terror.
Ainda não disse que fiquei sem mãe
aos 10 anos de idade. Meu pai não voltou a casar. E, desde então, quem governa
a casa é minha Tia Isaura, irmã de meu pai e como ele nascida na Gabela, na
primeira década deste século. Embora mais velha do que o irmão, mantém-se uma
mulher de armas que traz a casa num brinquinho, sem criados mas com a ajuda de
todos os electrodomésticos de que se pode dispor em Luanda.
Por isso,
quando não há visitas, que são raras, somos apenas três à mesa.
Meu pai anda pouco falador, mas ela fala pêlos dois.
De política
nada entende — afirma —, mas não se coíbe de rir das ingenuidades do «menino»,
como continua a chamar-me.
— Sabe de
quem tenho pena, menino? Dessa pobre gente dos muceques, que anda entregue à
bicharada.
— Os pretos ou os brancos?
— Todos os que
não querem barulhos e andam metidos neles. Os brancos já de lá saíram, depois
de verem queimadas as suas casas. E os bailundos estão a fugir para as suas
terras. Ainda esta manhã, quando voltava do talho, encontrei uma família
completa, a caminho da Estação do Caminho de Ferro, com as biquatas às costas.
O menino já viu aquela tristeza?
Eu já tinha visto.
A todo o
comprimento da fachada do velho edifício do Bungo e dos armazéns para
mercadorias, uma pobre multidão de fugitivos aguarda o comboio que os leve para
longe das makas que outros alimentam e eles não querem. Fogem de zonas
onde se morre sem saber porquê. Onde se mata sem saber porquê. Onde as balas
são anónimas e os incêndios constituem a única iluminação pública. Onde a noite
tem garras de chumbo quente que se cravam em carne de inocentes. Onde já nem a
luz do Sol intimida a fúria do crime. Onde se barra o caminho dos chefes de
família que pretendem ir ao seu trabalho. Onde a loucura é a ordem do dia e a
insónia a tortura das noites, quando já nem os cães respondem ao ladrar das
metralhadoras.
Pobre gente
apavorada, que foge dos seus lares e abandona os seus empregos, com o pânico de
quem foge dum terramoto!
Homens emagrecidos no
trabalho sem pão suficiente, mulheres com filhos ao colo e outros agarrados às
saias, crianças em pasmo de espanto ou na eloquência das lágrimas infantis. E o
estendal comovedor da pobreza! Velhas mesas de pé coxinho,
cadeiras desconjuntadas, colchões de folhelho atados com fios de mateba, míseros trastes de cozinha
sumariamente embrulhados em jornais, panelas amolgadas, caçarolas enegrecidas,
fogareiros de ferro, malas de fechos avariados atadas com cordéis, fardos de
roupa remendada, alguns caixotes de ferramenta, sacos de plástico atulhados com
as últimas compras do Mercado de S. Paulo ou do «Pão de Açúcar» — toda a
pobreza em gritante comício de condenação ao egoísmo dos ricos, à incúria das
autoridades e à fraqueza patente das chamadas forças da ordem. A debandada dos
enjeitados da cidade, que só têm os braços para trabalhar e não sabem política,
não pertencem a movimentos de libertação e nada fizeram — nada, Senhor Deus! — para merecer a desgraça que lhes acontece, sem saberem como
veio, de quem veio e porque veio.
São apenas as
vítimas habituais de todos os conflitos, de todo o choque de ideias, de todas
as ambições embrulhadas em palavras bonitas, que eles não compreendem e aos
seus ouvidos apenas soam com o sentido de um «salve-se quem puder!»
Dos seus
cómodos automóveis, os brancos olham e passam. Das suas barulhentas
motorizadas, outros negros, bem vestidos e bem alimentados, olham e passam.
Mas eles só
têm a esperança ao comboio
que os leve para longe duma cidade que parece louca, para longe dos
bairros do medo, da pilhagem e da morte.
Aproximo-me
desse quadro vivo do êxodo e é com timidez que faço algumas perguntas:
— Você donde é?
— Sou da
Quibala — responde-me um preto de pequena estatura, que vigia o seu grupo
familiar.
— Operário?
— Sim: carpinteiro de cofragens.
— E deixa o emprego?!
— Não quero morrer.
— Onde é a sua casa?
— Era no Cazenga. Queimaram-na.
— Dizem que por lá agora está mais sereno.
— Ainda ontem me apontaram uma faca...
— Mas a tropa está lá.
— À minha cubata, a tropa não pode chegar.
— Quem são os culpados da confusão?
— Não sei.
— São os
brancos! — grita raivosamente uma rapariga de outro grupo.
— Não
mintas! — repreende uma velha — Não foi um branco que
te trouxe até aqui na sua carrinha?!
— Esse é branco bom. Mas os brancos bons são poucos...
— Mas ainda
há brancos no Cazenga?! — pergunto eu.
— Ainda há —
teima a moça. — Com olho azul e cabelo da cor da tuge de menino com diarreia...
— Talvez nem sejam portugueses — insinuo.
— Não sei: são brancos.
E, sem
dúvida alguma, naquele rosto de rapariga vi perfeitamente os sinais do ódio
racial. Mas na grande multidão dos fugitivos só estava a pobreza, igual em
todas as raças, filha do egoísmo de outros homens, sem discriminação de
política, religião ou cor...
2.6 — Hum!
Quais são os problemas que este Governo já resolveu?
A Mariluz apareceu-me hoje muito triste.
— Que te aconteceu, pequena? — perguntei, solícito.
— Meu pai parou as obras, por falta
de pessoal.
— Greve?
— Não. Os
bailundos foram-se embora. Nunca vi o meu velho tão desanimado. Nem quis
almoçar...
É a ocasião
de falar um pouco da família desta moça amorável e sensata. Seu pai é natural
de Luanda, filho de branco e de mestiça, e não nega a cor da mãe, embora seja de tez mais clara que a de muitos
algarvios curtidos pelo ar do mar.
Casou com
uma branca e, na sua profissão de construtor civil, o sr. Armindo das Neves
Calabriz conseguiu meios de vida confortável para a família. A dona da casa,
Aríete de Moura Calabriz, pertence a uma família antiga, de origem beira,
radicada em Angola há três gerações. Fez o 7.° ano dos
liceus e só não tirou um Curso Superior porque os pais não tinham posses para a
sustentar em Lisboa, nesse tempo em que ainda não existia a Universidade em
Angola.
A Mariluz,
filha única, frequenta Química Industrial na Universidade de Luanda.
É uma
família do velho estilo, com a autoridade paterna bem instalada e firme,
embora sem despotismo.
Habitam numa
vivenda do Bairro Miramar e fazem vida de bom nível, mas sem luxos que
escandalizem os mais pobres.
Com o sr. Calabriz falei há
dias, na intenção de o tranquilizar quanto às minhas intenções sobre a filha.
Levava um discurso cuidadosamente estudado, mas ele estragou todos os meus
planos, recebendo-me com a maior naturalidade e lançando logo uma pergunta
sobre o assunto político do dia:
— Que raio de gente é essa, que
manda agora em Lisboa? Então, nomeiam para aqui
um governador-geral e nem sequer lhe dão tempo de acabar
de formar o seu Governo?!
— Estamos
numa fase muito complexa — expliquei eu cautelosamente —, o Governo de Lisboa
tem agora muitos problemas a resolver...
— Hum! —
resmungou o sr. Calabriz — quais são os problemas que este Governo já resolveu?
— Está a ser
injusto — protestei com respeitosa firmeza
—, o regresso às liberdades democráticas é um facto.
— Nunca ninguém me impediu de ser democrático.
— Aqui, em Angola...
— É onde
tenho vivido, desde que sou gente. E não precisei de esconder as minhas ideias
políticas.
— Nas conversas
com amigos. Se escrevesse para os jornais, tomaria conhecimento com a Censura.
— Esqueci-me
que você é jornalista... Tá bem! Então, diga lá o que o trouxe a esta sua
casa...
— Vinha
informá-lo das minhas intenções sobre a Mariluz... Encontramo-nos com
frequência...
— Eu sei —
disse ele, assumindo um ar muito sério. E sério se manteve durante lentíssimos
segundos. Depois, cravou nos meus os seus olhos castanhos e disse, numa voz
pausada, baixa, quase segredada:
— Sabe que estimo profundamente a Mariluz?
— Também eu.
— Não quero que lhe aconteça algum mal...
— Nem eu.
Pode confiar em mim. E suponho que também confia na sua filha.
— Se não
confiasse, fechava-a à chave. Nós somos uma família honrada. E espero que se
não esqueça disso...
Eu não esquecia.
E agora, quando a Mariluz me falava na tristeza do pai, sentia as preocupações
daquele homem, como se fossem minhas.
— Gosto
profundamente de meu pai — disse-me ela, acentuando o seu ar melancólico. — E
ele não sabe estar parado. Além disso/, e como já te disse, nós não somos
ricos.
— Acredito. Teu pai é honesto demais para enriquecer
depressa.
—
Exactamente. Meu pai não explora ninguém e cumpre escrupulosamente os
contratos que assina. Ora, durante os últimos tempos, tudo aumentou à bruta. As
construções contratadas há seis meses custam agora quase o dobro. Com as obras
paradas e letras a vencer, as perspectivas não são risonhas.
— Toda esta
confusão há-de passar — profetizei por não ter
mais nada que dizer.
— Não é o que
parece. Porque expulsam os bailundos? Não terão eles o direito de trabalhar em
Luanda?
— Claro que
têm. E suponho que ninguém os expulsa. Fogem porque não gostam de barulhos.
— Meu pai diz
que ninguém lhes dá a protecção que merecem. E diz isto indignadamente. Não é
só porque as obras param; ele afeiçoa-se ao pessoal com quem trabalha...
— As Forças Armadas já estão a restabelecer a tranquilidade...
— Na cidade
do asfalto — interrompeu ela com vivacidade. — Em certas zonas dos muceques,
parece que nem entram.
— Não podem
entrar, querida — expliquei pacientemente. — Tu nem fazes ideia do que é o
interior de alguns muceques de Luanda. Naqueles meandros, a coragem dum soldado
pouco vale.
— E quem lá vive fica à
mercê do mais forte, não é?
— Não tanto
como julgas. Os pretos de Angola têm um sentido de solidariedade humana bem
mais apurado do que muitos brancos. Mas, nesta emergência, não querem por
companhia gente de quem desconfiam.
— Posso fazer-te uma pergunta ingénua?
— As perguntas ingénuas ficam bem em meninas como tu...
— Acreditas que a independência de Angola se faça em paz?...
2.7 — «Se aparecesse um chefe...»
Um velho
amigo de meu pai veio a nossa casa, certa manhã, antes do nascer do sol.
Vi-o entrar,
alto e magro, em mangas de camisa, com um ar febril.
Fecharam-se
ambos no escritório e lá permaneceram durante três horas, com uma garrafa de uísque, um balde de gelo e
algumas sodas bem geladas...
Não era a primeira
vez que meu pai mantinha longas conversas com pessoas importantes do regime
deposto e também com gente nova, que tinha feito o serviço militar na luta
contra o terrorismo e agora se interrogava sobre o futuro. Dava-me a impressão
de andar a conspirar.
Desta vez,
decidi interrogá-lo, sem receios nem
complexos, pois ambos sabíamos que tudo quanto entre nós se dissesse, entre nós
ficaria, selado pela nossa recíproca e
absoluta lealdade.
— Julgo conhecer
este senhor — insinuei quando meu pai voltava de acompanhar o visitante à porta
de saída.
— É natural.
Até há pouco ensinava Economia na Universidade de Luanda. Agora, vem de Lisboa.
Incógnito...
— Trouxe-lhe notícias?
— Más! Os comunistas estão a tomar conta de Portugal...
— E sobre Angola?
E como ele tivesse para mim um sorriso ambíguo, acrescentei:
— Se é segredo, não diga...
— Bem sabes
que não tenho segredos para ti. Mas conheço as tuas ideias e não quero
desgostar-te.
— O pai nunca mês desgosta. Se não é segredo, conte!
— É segredo,
mas não para ti, porque te sei incapaz de comprometer este homem, que vem de
Lisboa com muita coragem e uma ideia grande e generosa.
— Louvo a coragem e gostava de conhecer a ideia.
— Quer manter Angola portuguesa.
— E o pai acredita que é possível?
— Contra o
que parece, as populações de Angola,
na sua esmagadora maioria, não querem separar-se
da Mãe-Pátria. E andam apavoradas com os acontecimentos. O visitante de há
pouco confia nisso...
— Eu ouvi a
um dos chefes locais do MPLA afirmar
que Lisboa quer ver-se livre de Angola o mais depressa possível.
— Também sei
disso, mas os homens de Angola ainda terão uma palavra a dizer, se conseguirem sair deste perigoso atordoamento em que
caíram.
— A que
chama «perigoso atordoamento»?
— Talvez eu
não tenha usado a expressão mais adequada. Os homens de Angola andam
hesitantes, entre a -esperança e o desespero. Encontram-se paralisados pelo receio de provocar um banho de sangue. Fecham-se num silêncio
angustiado. Vivem aprisionados numa teia de sentimentos complexos. Sentem-se
abandonados, traídos, caluniados. Se aparecesse um chefe...
— Esse
professor da Universidade veio convidá-lo para qualquer aventura?! —
interrompi, muito preocupado.
— Não! — respondeu
ele com veemência. — Já não tenho idade para aventuras. Infelizmente!...
E, após um melancólico silêncio, acrescentou:
— Mas, acredita, rapaz: continua a
haver bons e corajosos portugueses em Angola. E a grande massa da população não
gosta nada da confusão que se estabeleceu...
— Nunca lhe
ocultei as minhas ideias, pai. Mas gosto de o ver assim, mais animado.
E era totalmente sincero
neste meu gostar. Via o meu velho rejuvenescido com a esperança de que ainda pudesse
sobreviver o seu ideal de uma grande pátria multirracial e pluricontinental.
Eu
considerava tudo isso ultrapassado, mas quase me apetecia compartilhar de uma
ilusão que o tornava tão feliz.
E foi a última vez que o vi ainda confiante.