O PRIMEIRO AVIÃO

Durante o almoço chega o Major Alves Cardoso que me ordena deslocar até Carmona, a mais populosa cidade do norte de Angola, a fim de conseguir um avião no aeroclube local, que usaremos para reconhecimento.

O Major pretende deixar-nos, o mais rapidamente possível, independentes em termos operacionais, para que nossas ações não sejam prejudicadas pela natural incapacidade militar dos africanos, acostumados com guerrilhas e não guerra clássica como se estava desenvolvendo aquela.

Num Land-Rover, parto na manhã seguinte e embora continue em trajes civis, levo comigo agora o inseparável fuzil.

Em Carmona a vida transcorre quase normalmente, não fosse os restaurantes servirem prato único e a cerveja escassear. Sou hospedado num bom hotel, de vários andares, a serviço da FNLA.

Nas ruas ainda se encontram as Patrulhas Integradas, constituídas de soldados portugueses, UNITA e ELNA; a Polícia da Segurança Pública ainda controla o tráfego, sem muito interesse. Os carros, repletos de africanos, rodam com gasolina de aviação em sua maioria; foram simplesmente apanhados no aeroporto ou nas ruas, abandonados pelos donos e funcionam com ligação direta.

Ao chegar no aeroporto posso sentir os efeitos da guerra civil; dezenas de famílias brancas se amontoam pelo chão do saguão principal, sem condições de higiene e alimentação. Esperam pêlos aviões da FAP, que fazem uma ponte aérea diária com Luanda, de onde serão repatriados para Lisboa.

É um espetáculo degradante, mas nada posso fazer; cada chegada do avião provoca cenas de quase pânico, dos que temem serem deixados para trás.

         No aeroclube, jogados às moscas, além de uma dezena de valiosos pára-quedas esportivos para-commander, papillon e outros, estão dois Cessnas, um Auster e um Cherokee. Este último é particular e dos outros apenas um pequeno 150 não está em pane. Para voos de reconhecimento o Auster seria o ideal, mas na sua falta o Cessninha poderá fazer o serviço satisfatoriamente, pousa e decola curto de qualquer estrada ou terreno!

O piloto do Cherokee se oferece para me instruir no comando do 150, pois eu estava acostumado com um jato, pesado e não com o leve e frágil aparelho. Voamos quase duas horas, até que eu deixasse de entrar alto na pista e passasse a aproveitá-la no início.

Realmente era engraçado pilotar algo tão delicado em guerra, quando na paz do Brasil pilotava um versátil e rijo T-37, birreator!

Após rebuscar as gavetas da secretaria do Aeroclube e conseguir mapas, régua, transferidor e um computador manual Jeppsen, tudo o que eu necessitava para navegação aérea, considerei-me apto a voltar para Ambriz.

O Major Moura, do Exército Português, que se passara para a FNLA, pede-me uma carona e na manhã seguinte mal clareara o dia empurramos o avião para a bomba de combustível, enchemos os tanques e partimos, sem que ninguém perguntasse por nada!

Na cabeceira da pista olho o tempo; não estava nada bom, mas não quero demorar mais em Carmona, meu trabalho é preciso na frente de combate. Manete ao máximo, acelerei o 150 pela faixa asfaltada, segurando-o rasante até conseguir uma boa velocidade; puxei o manche e numa chandelle (curva em ascensão) ganhei altura, aproando Ambriz a 270 graus.

Mas Carmona era cercada por montes e tive que subir para transpô-los, penetrando sem mais alternativas na densa camada de nuvens que cobria a região.

Somente aí é que procurei pêlos instrumentos de navegação e simplesmente nada encontrei, apenas um indicador de curva, trabalhando com grande retardo. Cercado pela densa massa branca, desorientei-me e quando dei por mim o avião estava saindo da camada, em parafuso!

Os reflexos falaram mais alto e ao notar as montanhas "girando" abaixo, acordei, lancei o manche à frente e chutei o pedal com violência, saindo da perigosa manobra sem maiores consequências que um susto. O leigo major nem deu pela coisa, todo sossegado em sua cadeira.

Já desperto, com mais respeito pelo avião, penetrei cuidadosamente na camada até rompê-la, quase 4000 pés acima. Com o sol a aquecer-nos e o tapete branco aos nossos pés, voei pela bússola magnética fazendo de quando em quando correções do vento, às cegas, instintivamente, pois nenhum ponto tinha para me localizar.

Passado pouco mais de uma hora, tempo previsto para a viagem, as nuvens continuavam sólidas lá em baixo. Resolvi, sempre no palpite, voar mais 15 minutos na rota e depois iniciei a descida.

- Olho aí fora, Major, se vires alguma montanha me avise!

-OK!

No litoral não havia elevação, mas a nossa "navegação por palpite" não me oferecia a certeza de que fora realmente para lá.

Reduzi o motor e comecei a penetrar na camada, suavemente e em cinco longos minutos aterra apareceu, estávamos exatamente em cima da praia, com Ambriz à nossa esquerda, visual!

Mostrei a vila ao meu companheiro, que não acreditou na "eficiência" dos cálculos feitos:

- Não é possível, deve ser Luanda!

- Que nada, é Ambriz - retruquei, seguro de mim... e com uma rasante sobre o quartel, anunciei minha chegada.

Preparava-me para o pouso quando fui cortado e saudado por um bimotor Beech, era Holden Roberto que também regressava de Carmona. No solo, estava o jeep Toyota do nosso grupo esperando, mas antes, perfilei-me à saída do bimotor para receber e cumprimentar o Presidente, como fizeram todos os presentes.

Magro, alto, sempre com óculos escuros, Holden demonstrava no falar e no agir simplicidade e calma. Depois que os conflitos entre os movimentos de libertação se transformaram numa aberta guerra civil, ele permanecia a maior parte do tempo em Ambriz, seguindo de perto as operações militares, muitas vezes debaixo de fogo para desespero de seus auxiliares.