NO RUMO DA INDEPENDÊNCIA
3.1—O
discurso presidencial de 27.7.74
Em 27 de
Julho de 1974, num discurso justificadamente classificado de histórico, o
general António de Spínola, presidente da República Portuguesa, reconheceu às
populações da Guiné, Angola e Moçambique o direito à autodeterminação e à
independência, declarando-se pronto a iniciar imediatamente o processo
de transferência de poderes.
Sinto-me
feliz, porque sou angolano e sei que Angola reúne todas as condições para uma
independência autêntica. Há, todavia, uma tarefa prévia e fundamental: a
fraterna reconciliação de todos os angolanos, tanto dos que pegaram em
armas e assim nos arranjaram três exércitos
(que não chegam, porque são demais) como daqueles que, durante estes últimos
treze anos, continuaram a obra do progresso desta terra, criando-Ihe
perspectivas e estruturas muito superiores às que existiam em 1961.
Ora, é essa
fraterna conciliação que eu ainda não
vejo. Dentro e fora de Angola, pretos e brancos estão muito mais divididos do
que nunca e, com Portugal a oferecer a independência e a paz, a guerrilha
instala-se na própria cidade de Luanda onde, até agora, as Forças Armadas
Portuguesas nunca a tinham deixado chegar. E, com ela, chegam aos subúrbios sistemas de apartheid que nunca
existiram nesta bela cidade atlântica, já a rondar os 400 anos de idade.
O Gama
Ribeiro deitou chispas de lume pelo bigode à antiga portuguesa, quando lhe
falei nestes termos.
— Até pareces fascista, homem!
— Bem sabes que o não sou.
— Então
porque estranhas que fale agora em excesso quem andou de boca fechada durante
meio século?! Não é a falar que a
gente se entende?
— Devia ser.
Mas o que eu noto é que, com tantas sessões de esclarecimento, cada vez andamos
mais baralhados...
— É o fenómeno da descompressão.
— Deus queira que não redunde em grossa pancadaria!
— Todos queremos a independência.
— Cada um à
sua maneira. E também há quem só queira tacho.
— Isso era
no tempo da outra senhora.
— Os homens
não mudam só com usar um cravo vermelho na lapela...
— Estás um corvo de mau agoiro...
— Talvez.
Mas explica tu esse apartheid que agora existe em alguns muceques
de Luanda...
— Referes-te ao Golfe?
— Exactamente.
— Não é apartheid nenhum, criatura. Eu levo-te lá e já vês como é...
Fomos.
Na fronteira do que risonhamente passou a
chamar-se «o Estado Livre do Golfe», um cabo do posto de controlo militar
mandou-nos parar.
— Que desejam?
— Dar uma vista de olhos
pela zona.
— São jornalistas?
— Até somos —
declarou o Gama Ribeiro —, mas não viemos propriamente nessa qualidade. Aqui o
meu colega tem umas ideias esquisitas sobre este muceque e eu gostava de lho
mostrar...
— Está bem —
disse o militar —, mas nesta altura não lhe posso dar escolta; e, sozinhos, nem
pensar!
Então, um
preto de meia idade, que assistia à cena, a alguns passos de distância,
aproximou-se e ofereceu os seus préstimos:
— Eu acompanho-os.
O cabo olhou para ele e perguntou-lhe se tomava a
responsabilidade.
— Se vêm na boa intenção, ninguém lhes faz mal. E já íamos a
largar, quando o cabo interveio:
— Um momento! Os senhores levam armas?
— Nem um canivete! — declarámos ambos ao mesmo tempo.
— Desculpem, mas tenho de verificar...
Erguemos os
braços e ele passou uma rápida vistoria. Depois decidiu que o nosso Volkswagen ficava
ali: nos teríamos de seguir a pé.
E lá fomos,
com o amável cicerone, que informou chamar-se Paulo Cabanga.
O Muceque do
Golfe, que é dos mais recentes de Luanda, não tem os intrincados meandros de
certas zonas do Rangel ou do Lixeira. Já foi instalado com algum ordenamento,
embora elementar. E lá dentro, tudo nos pareceu calmo e normal.
Pelos estreitos arruamentos de terra
batida, havia crianças a brincar. Uma
delas, contagiada pelo tiroteio dos últimos dias, apontou-me um cabo de
vassoura, fuzilando-me com uma rajada terrível: tá-tá-tá-tá-tá!
— Pronto! — gritei, entrando no jogo. —
Estou morto. Pronto! O miúdo riu,
consolado, mas o seu riso
apagou-se logo, ante a severa repreensão do Paulo Cabanga:
— Tem juízo, menino!
— Não fez
nada de mal — aleguei, lembrado de iguais brincadeiras do meu tempo de garoto.
— Com a
morte não se brinca — sentenciou o Cabanga, ainda com olhos maus para a criança
encabulada.
— Este é o
senhor presidente da Comissão Administrativa do Bairro do Golfe — apresentou o
Cabanga, indicando um negro de meia idade, elegante e bem vestido, que, por trás
duma secretária metálica, falava pausadamente a um grupo de populares.
Notei a sua
barbicha à Lumumba, que lhe prolongava o queixo voluntarioso, e os seus olhos
espertos, protegidos por óculos de pequena graduação.
— São
jornalistas? — perguntou, depois de um certo olhar para o apresentante.
— Somos. E
pretendemos ver como se vive neste bairro. Dizem-se coisas na cidade...
— Nós sabemos... É para contar no jornal?
— Talvez —
respondi eu. — Mas, por agora, apenas desejamos saber como funciona isto.
— Melhor que
dantes — respondeu o presidente. — Ninguém cuidava disto. Agora cuidamos nós.
— Já prometeram a água — lembrou o Gama Ribeiro.
— Prometeram mas ainda não cumpriram. É sempre assim...
— É verdade
que não deixam entrar aqui os brancos? — perguntei do meu lado.
— É verdade
e não é. Os brancos podem entrar, desde que sejam acompanhados por um de nós. E
com os pretos de outros muceques é igual. Não queremos cá quem não seja do
bairro...
— Porquê?!
— Porque queremos viver em paz...
3.2 — O engenheiro Balanta
Hoje almoçou connosco o eng.°
Duarte Balanta, que foi geólogo da Companhia de Petróleos de Angola e, por
morte do pai, abandonou as boas perspectivas que ali lhe ofereciam para tomar conta da herança
paterna — uma grande fazenda de café nos Dembos.
É um rapaz
novo, se bem que já casado e pai de um bonito par de miúdos, que são o seu
maior enlevo.
Há semanas que o não via e notei-lhe alguns cabelos brancos.
— Já?! — estranhei no tom cordial da
nossa antiga amizade.
— Já, o quê?
— Essas veneráveis cãs nas tuas fontes de menino rico...
— Aí está
uma frase bem recheada de asneiras —
sentenciou ele com a voz calma dum juiz em férias. — Os meus cabelos brancos
ainda se não podem chamar veneráveis e eu já não sou rico nem menino. Sou apenas
um pai cheio de preocupações.
— Preocupações
porquê? Nasceste em Angola, nunca andaste na política, sabes cheirar as
riquezas do sub-solo...
— E tenho,
nos Dembos, uma fazenda de café que vai ficar
afogada em capim.
— Já
percebi... É essa história do avanço dos guerrilheiros de Holden Roberto. Uma
fase que há-de passar...
Meu pai
parou a colher da sopa, a meio caminho do destino, para me perguntar em que
factos concretos baseava eu tanto optimismo.
— Está na
ordem natural das coisas — afirmei sem hesitações.— Em
vésperas de negociações, a Frente Nacional de Libertação de Angola prepara uma
posição de força.
— Força da FNLA não será igual a fraqueza de Portugal?
— Portugal já desistiu de continuar em Angola.
— Mas pode
manter a sua dignidade! — atalhou o meu pai, elevando a voz.
— Gostaria
que me explicasse melhor — insinuei com a calma toda, para o não irritar.
— Interpreta
como quiseres. A mim custa-me falar em certas coisas...
— Também a
mim — interveio o eng.° Balanta —, mas compreendo o
problema. Ou Portugal conserva em Angola a capacidade de iniciativa que lhe
permita a função de árbitro no processo da independência, ou esta já não será
uma concessão: será uma conquista.
— Não vejo
bem onde está o valor prático da diferença — afirmei eu. — Parece mera
subtileza.
— Não é mera subtileza —
contestou o engenheiro. — Embora nascido em Angola, sou de raiz portuguesa e não
gosto de ver Portugal na função de triste figura. Já que reconheceu a Angola o
direito à independência, deve dar-lha de mão a mão, efectiva e limpa. Tem de
manter a força indispensável para desencorajar as pressões externas e
permitir que as populações façam a sua opção política, num processo correcto e
livre. Para transferir os poderes soberanos, deve exercê-los com dignidade e
(eficiência até à declaração da independência. Se perder a autoridade e os
meios de a impor, quais são os poderes que vai transferir? Ninguém pode dar o
que já não tem...
— Exacto! — concordou meu pai, que parecia encantado com o discurso. —
Em tudo isto, eu já não sou mais do que mero
espectador. Mas se os meus cansados olhos me não enganam, assisto a tristeza
dum rápido desmoronamento de estruturas que levaram muito tempo a construir. É lamentável...
— São as
convulsões naturais do nascimento duma nova nação...
— Naturais,
uma ova! — refilou o engenheiro. — Que raio de naturalidade
encontras tu nesta atitude de se expulsarem os bailundos das fazendas onde
trabalham?!
— Talvez uma
questão de bairrismo. Em Trás-os-Montes também se diz que «para lá do Marão
mandam os que lá estão»...
— Chama-lhe
o que quiseres. Para mim, que também nasci nesta terra e nela tenho trabalhado à
bruta, chama-se a ruína completa. Que mal fiz, para tamanho castigo?! De resto,
a minha desgraça, somada à desgraça de muitos outros cafeicultores, gradua-se
numa trágica sangria económica de Angola. Se esta loucura pega, vai perder-se a
próxima colheita de café, no valor de três ou quatro milhões de contos. E, o que
é pior, os cafezais ficarão Infestados. Quem lucra com isso?
— Há que
pensar em termos de cidadão angolano — lembrei com intenção.
— Sou tão
angolano como tu — declarou o engenheiro. — Nem podes fazer ideia dos sacrifícios
que a meu pai custou aquela fazenda de café. Esse pedaço de cafezal roubou-lhe
anos de vida. Morreu com 52 anos. E, seguidamente, fui eu que lhe sacrifiquei a
minha profissão, para a qual estudei no Instituto Superior Técnico de Lisboa.
Agora, sem um centavo fora desta terra, olho para os meus filhos e pergunto se
os poderei ver passar fome num canto qualquer de Portugal, que vai ficar
reduzido a menos da vigésima parte do que era antes da Revolução de 25 de Abril,
e que parece disposto a receber-nos à pedrada.
— Quem te diz que serás obrigado a sair de Angola?
— E quem me garante que não?
— Tens de compreender os legítimos direitos do povo angolano.
— E
compreendo. Mas a justiça perfeita tem de ser para todos, não é verdade? —
acrescentou, voltando-se para meu pai.
— Quem pode
hoje dizer o que é a verdade? — disse ele com uma profunda e contagiante
melancolia.
Neste breve
diálogo se define o clima da população branca de Angola, em começos de Setembro
de 1974.
3.3 — O 7 de Setembro
— Lê! —
convidou o Baldaque, quando cheguei à redacção, em 7 de Setembro de 1974,
entregando-me um pedaço de fita do Telex.
Era a
primeira notícia da Reuter sobre os incidentes da véspera em Lourenço Marques.
Uma viatura
com a bandeira da Frelimo içada sobre o espelho rectrovisor, descendo a Avenida
da República, tinha passado em frente do Scala e do Continental, arrastando
pelo chão a Bandeira Nacional.
Numa reacção
imediata, os numerosos frequentadores dos dois cafés cercaram os atrevidos,
zurziram-nos a soco e a pontapé, viraram o carro e, levantando do chão a
Bandeira de Portugal, foram apedrejar as montras do Diário de Notícias, que
ultimamente se tornara frelimista ferrenho.
O incidente
transformara-se rapidamente num generalizado protesto contra a entrega de Moçambique
à Frelimo. E os que, na véspera, tinham assim desagravado a Bandeira portuguesa
estavam agora de posse do Rádio Clube de Moçambique, donde irradiavam
constantes apelos à união de todos os moçambicanos contra o vergonhoso acordo
de Lusaka e transmitiam palavras de esperança no futuro do Grande Estado
Português do Índico.
— Vai correr
sangue... — murmurei com o meu instintivo horror a todos os aspectos da guerra
civil.
— Talvez—
admitiu o Baldaque. — Mas o que esses homens fizeram é um gesto lindo. Querias
que ficassem insensíveis à profanação do símbolo da Pátria?!
— Queria
que, em todo o Ultramar português, a prometida independência se processasse em
paz.
— Também eu.
Mas seria preciso que não houvesse traidores no Governo de Lisboa. E há... Também
aqui enxovalharam a nossa Bandeira, no Clube do Golfe, ao que consta, com a
conivência de um oficial português. Não te lembras?
— As autoridades desmentiram...
— Os maiores
mentirosos são os que mais desmentem — sentenciou o Baldaque. — Sei de boa fonte
que não se trata de um boato. E é por isso que me sinto orgulhoso com a atitude
dos homens de Moçambique. Estão a dar-nos um exemplo maravilhoso. Oxalá se
aguentem!
Por toda a
cidade, principalmente entre os brancos, mas também entre muitos pretos e mestiços,
e não obstante o justificado receio da feroz perseguição do Almirante Vermelho,
o ambiente era de alvoroço e de esperança.
— Têm toda a
razão! — exclamava-se em reuniões convocadas para casas particulares, ou
segredava-se, com mais cautela, às mesas dos cafés — Estão cheios de razão.
Deus os ajude!
Na
Pastelaria Versalhes, aonde fui tomar o meu pequeno almoço, o Sanches Quintão,
funcionário de Fazenda recentemente transferido da Outra Costa, demonstrava por
a + b, num círculo de amigos, que a Frelimo
era apenas um
bando de comunistas e só os comunistas portugueses é que a consideravam
representativa dos povos moçambicanos.
— Então, por que raio de mania lhe querem entregar Moçambique?!
— perguntava o Tobias da Farmácia Central.
— Não é
mania: é refinada traição — assegurava o da Fazenda. — Eu ainda estava em
Nampula quando o general Costa Gomes, logo após o 25 de Abril, em 12 de Maio,
salvo erro, declarou que, se a Frelimo quisesse continuar a guerrilha, o papel
das Forças Armadas portuguesas era bem claro: «prosseguir no combate,
defendendo o povo irmão, agredido no sagrado direito de decidir em paz os seus
próprios destinos.»
— Tá bem! —
disse, da mesa próxima, um branco de idade, já com os cabelos todos
brancos, que ostentava na lapela do casaco o emblema do Colégio Militar. — Mas
os senhores sabem qual era a alcunha do Costa Gomes no Colégio Militar?
?!
— Judas.
Ninguém
comentou e o ancião também não disse mais nada...
Durante a
tarde, já havia quem sugerisse o envio de telegramas de apoio aos ocupantes do
Rádio Clube de Moçambique.
Mas aí, os
mais prudentes reclamavam calma. Enquanto a situação se não clarificasse, a
ninguém interessava criar pretextos para uma repressão brutal da Junta
Governativa.
Claro que também não faltava
quem classificasse tudo aquilo de manobra
de fascistas, apoiados pela África do Sul. Mas, pelo menos em Luanda, o
sentimento mais generalizado era de grande euforia e de uma enorme esperança.
Nessa noite,
ao regressar a casa, encontrei meu pai, sentado ao pé do nosso grande aparelho
de telefonia, ouvindo sofregamente a emissão do Rádio Clube de Moçambique.
Mas não trocámos uma única palavra sobre o assunto.
3.4 — A
desistência do general Spínola
Inesperadamente
surgiu a notícia do encontro dos generais António de Spínola e Mobutu Sese Seku
na ilha do Sal. Fui eu que a mostrei no telex da Reuter ao Santos Gouveia que
me veio render no turno da noite.
— Que raio
de fita é esta?! — explodiu o repórter, que é um adepto furioso do MPLA, rival
da FNLA sediada em Kinshasa.
— Parece-te
episódio de cinema? — piquei eu, que admiro a espontaneidade deste moço, sem dúvida
sincero, embora faccioso.
— Cinema, uma gaita! O que me parece é uma refinada malandrice.
— Vê como falas de dois Chefes de Estado...
— Não se trata de quem esteve
na ilha do Sal — declarou o Gouveia, que nem é de birras contra pessoas. —
Anota lá montes de respeito pêlos dois generais, sem distinção de branco e
preto. A refinada malandrice vem deste mundo em que vivemos...
Fitei o
colega com os olhos cândidos dum menino totalmente ignorante das manhas da política
mundial...
— Não topas a manobra? — investiu ele.
— Eu, não...
— Pois é fácil de compreender...
E,
apontando-me aos olhos um dedo minaz, sentenciou, em berros curtos, raivosos,
definitivos:
— Os
americanos, meu filho! A CIA! A fraude de uma independência apenas teórica! A
transferência de poderes para outros que não os angolanos! Neo-colonialismo, entendes?
E começou às
voltas pela sala, batendo patadas no chão, irrequieto e furioso como um tigre
encurralado.
— ...Porque a verdade
é esta — retomou,
estacando na minha frente —: quem
está por trás de Kinshasa é Washington. E há um cunhado de Mobutu que se chama
Holden Roberto. Estás a ver a jogada capitalista?
— Espera aí,
pá! — interrompi deliberadamente. — Pode ser que tenhas razão. Mas é cedo para
essa fúria toda. Nem sequer sabemos o que foi tratado na ilha do Sal...
— Péssimo
sintoma, menino! Mais que péssimo. Quem me dera poder deslindar toda esta
merda!
— Há liberdade de imprensa — lembrei, já no acto de sair.
— Pois há...
— fez ele, arreganhando para mim um risinho feroz. — E a multazinha por agressão
ideológica?...
Seguidamente
sentou-se à secretária e sacou bruscamente da esferográfica, com o brio
alucinado de um Dom Quixote a arrancar da espada...
*
Os
acontecimentos dos últimos dias de Setembro fizeram-me esquecer os maus agouros
do Santos Gouveia, muita vez excessivo mas sempre sagaz e bem intencionado. A
ida de várias pessoas a Lisboa, a convite do Chefe do Estado, e a expectativa
criada pelas notícias sobre a manifestação da maioria silenciosa foram temas de
todas as conversas. Depois, o discurso do general Spínola, a renunciar à chefia
do Estado, surgiu em grande estilo de final de acto, com todos os seus temperos
de emoção e drama.
Os brancos de Angola sentiram-se ainda mais abandonados.
Até o
general Spínola, que sempre os tentara tranquilizar, e que ultimamente lhes
criara uma derradeira esperança declarando que assumia pessoalmente a direcção da descolonização de Angola — até
esse acabava de abandonar o seu posto, deixando o campo livre aos que apenas desejavam
entregar à Rússia o Ultramar Português, a qualquer preço e o mais depressa possível.
3.5 — Bombas
e tiros de morteiro
Na noite de
2 de Outubro, o estourar de uma primeira bomba alvoroçou a plateia do Cinema
Tivoli. Ao segundo rebentamento, ocorrido a pequena distância do ecrã, toda a
assistência debandou em pânico.
No dia seguinte, houve disparos de
morteiro para a Feira Popular, instalada ao lado da Avenida Lisboa, e foguetes
lançados contra um Jumbo carregado de passageiros, na placa de
estacionamento do aeroporto de Luanda. O gigantesco Boeing 747 escapou por uma
unha negra porque, logo ao primeiro
foguete, o comandante apagou todas as luzes e safou-se da placa segundos antes
de ser atingida uma das escadas de acesso, que lhe estavam encostadas.
— Estamos a
chegar ao fim — declarava o Baldaque
na redacção do jornal, comentando a notícia da prisão de gente grada, acusada
de ligações com os acontecimentos de 29 de Setembro em Lisboa. — Não te parece?
Encolhi os
ombros, sem resposta para dar-lhe. E, como sempre que me sinto enervado e perplexo,
procurei a companhia apaziguante da Mariluz. Mas também ela cedia ao nervosismo envolvente.
— Parecia tudo tão simples! — lamentou numa voz desiludida.
— Estás doente? — perguntei, notando-lhe os olhos febris.
— Não. Mas
passei uma noite abominável. De minha casa ouvia-se perfeitamente o tiroteio,
para os lados do Rangel. E, em certos momentos, parecia uma autêntica batalha.
Minha mãe já fala em partir para Lisboa.
Mas meu pai, coitado...
Passei-lhe
um braço carinhoso à volta dos ombros, com receio
de que rompesse a chorar.
— ...Teu pai tem
mais fé em Angola, não é verdade?
— Talvez.
Mas quase não fala connosco. E com certeza lhe custará muito ficar só... Porque
ele terá de ficar, amarrado ao seu trabalho. Não temos nada em Portugal. Não
conhecemos lá ninguém...
— Começaste
por dizer que tudo parecia simples... — lembrei eu, mais comovido do que
desejava parecer.
— E parecia,
a julgar pelos dados da questão.
Angola quer ser independente. O novo Governo de Lisboa concorda que sim senhor
e diz aos movimentos emancipalistas que se juntem
numa frente comum, para receber os poderes soberanos. Parece-te complicado? Mas
o que acontece é que, em vez de uma
festa de confraternização, arma-se uma barafunda em
que ninguém se entende. Com a garantia da independência, a capital de Angola em
vez de lançar foguetes dispara tiros, em vez de cantar a vitória, enche-se de
luto e de sangue. Entendes alguma coisa disto?!...
— Procuro
aceitar a realidade tal como ela é. O 25 de Abril não é natural de Luanda:
nasceu em Lisboa...
Num dos três
dias seguintes, à hora do almoço, chamaram meu pai ao telefone.
— O próprio —
declarou ele, ao atender.
— Sou a
pessoa menos indicada para depor neste momento...
— É verdade:
trabalho em Angola há quarenta anos. Mas não nasci cá. E a independência é para
os naturais da terra...
— Bem: se põe a questão em termos de eu colaborar ou não no esclarecimento
do público, decida o senhor. Mas, nesta emergência preferia não comparecer a essa tal mesa redonda. Se insiste em nome
dos direitos da informação, irei.
— Está bem. Aparecerei no Restinga às 14h30m. Até logo!
— Que é? —perguntei, logo que ele
desligou o telefone.
— Uma
brigada da Televisão Portuguesa teima que eu vá a uma mesa redonda sobre a
comunicação presidencial de 27 de Julho. Uma chatice!...
— Não sei porquê. Vai lá, diz o que pensa e acabou-se!
— Se eu disser tudo o que penso, prendem-me! Vou falar o mínimo possível. Queres ir comigo?
— Com muito gosto! Embora o pai não precise de companhia.
— Sabe-se lá...
Ando com os nervos tão arrasados, que já tenho medo de guiar. Prefiro que tu me
leves, se puderes...
— Claro que posso. Talvez até arranje uma «caixa» para o jornal.
Acabámos de
almoçar e, na hora
aprazada, comparecemos no Restinga da ilha.
A equipa da
W integrava três homens: o chefe, sério e de poucas palavras; o operador,
gorducho de cara reinadia, e um sujeito comprido e magro,
com um bigode à tártara que lhe dava um ar feroz.
Com eles
estava um moço negro, que meu pai conhecia, porque logo o abraçou efusivamente.
— Há que tempos
que o não vejo! — disse. — Por onde tem você andado?
— No Campo de S. Nicolau...
—Você esteve
preso?!
— Durante três anos.
— Palavra
que não sabia... — garantiu meu pai, no tom de quem sinceramente lamenta.
Mas quando o
meu bom velho me pareceu perder algo daquela sua serenidade caldeada em muitas
dores, foi já sentado à mesa redonda, numa luxuosa vivenda do Futungo de Belas,
ao ouvir a identificação dos presentes. Só então verificou o seu completo
isolamento ideológico, visto que ia depor com dois elementos do MPLA, ambos recém-libertados
dos Campos do Tarrafal e de S. Nicolau, e mais dois dirigentes de um partido
surgido após o 25 de Abril mas solidário com o mesmo movimento emancipalista.
Ele, que sempre tinha defendido a presença de Portugal em Angola...
Notei a rápida
crispação que lhe vincou as rugas do rosto. E, no meu íntimo, perguntei se ele
se não julgaria apanhado numa espécie de emboscada.
No entanto,
a sua voz pareceu-me calma quando, no fim de todos, declinou o seu nome, sem
mais recomendação que a de residir em Angola há quarenta anos «de maneira tão
colonialista que se agora tivesse dei regressar à Metrópole teria de pedir
emprestado o dinheiro para a passagem».
— Quer
dizer-nos a sua opinião sobre o reconhecimento, pelo Chefe do Estado (português,
do direito à independência -para Angola, Guiné e Moçambique? — perguntou-lhe o
chefe da equipa da TV.
— Desejo
primeiro esclarecer que estou aqui depois de repetidamente me ter confessado a
pessoa menos indicada para depor sobre o assunto.
— É verdade — confirmou o homem da TV.
— Já aqui
ouvi opiniões que respeito, mas de que profundamente discordo...
— A nossa
intenção — declarou o chefe da equipa — é precisamente levar aos
telespectadores de Portugal todo um amplo leque de opiniões.
— O sr. general Spínola — lembrou meu pai — aludiu no seu discurso
de 27 de Julho findo «àqueles que honestamente sonharam uma África lusa». Eu sonhei mais do que isso:
sonhei e preconizei um Portugal do Minho a Timor, com absoluta igualdade para
todos os portugueses, em que um negro da nossa África pudesse chegar até à
Presidência da República e Luanda viesse um dia a ser a capital de Portugal.
Esse meu sonho não morreu — foi assassinado! Considero-me politicamente vencido
e acato, de coração aberto e leal, uma Angola independente, que o pode ser em
paz e prosperidade, desde que mantenha a sua fisionomia multirracial. Fora da
multirracialidade, receio que até o próprio nome de Angola venha a desaparecer
do mapa deste continente. E é tudo.
Após os
longos segundos de silêncio que se seguiram à fala do velho
teimoso, o chefe da equipa perguntou-me se também queria falar.
— Não senhor
— respondi com certo orgulho. — Só meu pai foi convidado.
— Pensa como ele?
— Isso não é
preciso para o grande respeito e consideração
que lhe consagro.
Despedimo-nos de todos os
presentes e regressámos
à cidade.
Pelo
caminho, perguntei a meu pai se estava arrependido de ter comparecido à mesa
redonda.
— Bem... —
disse ele com uma certa ironia — consegui resistir à tentação de os tratar por «senhores turras». E, ao fim e ao cabo, também
eles me não chamaram reaccionário, fascista
explorador, como todos os dias faz certa gente de Lisboa. Não reparaste?
— Reparei,
pai. E nunca admiti que assim não acontecesse. Em todos os sectores da política
se pode ser honesto e sincero.
Ele levantou
os óculos para a testa, esfregou os olhos cansados
e pareceu-me concordante com as minhas palavras...
3.6 — «Já
agora, mate-me, C...!»
Quando
lembrei que o 25 de Abril não é natural de Angola, porque nasceu em Lisboa, a
Mariluz arregalou para mim uns olhos interrogativos, mas não pediu explicações.
E ainda bem, porque, ao dizer tais palavras, obedeci apenas a uma nebulosa
intuição, nada fácil de esclarecer em termos concretos de encadeamento lógico.
Repensando-as
agora, até me parece que acertei numa verdade capaz de explicar muita coisa. No
binómio geo-humano Portugal-Angola, o 25 de Abril só tem um aspecto comum:
constitui, para ambos os povos, um marco histórico. Mas a partir dele, até pela
própria força das ideias que o animaram, os caminhos podem divergir até ao ângulo
raso.
O 1.° de Maio de 1974, tão eufórico
na capital de Portugal, foi um dia como outro qualquer nas praias luandenses.
E, mesmo para aqueles portugueses aqui radicados, que sempre se manifestaram
genuinamente democráticos e contrários ao regime deposto, a alegria da
recobrada liberdade não tardou a ensombrar-se com as preocupações fundamentais da
sobrevivência nesta terra, de uma etnia continuamente insultada, caluniada e
aviltada pela imprensa, a rádio e a televisão
de Lisboa e Porto, na sua quase totalidade.
Já disse que não é preciso ser
branco, para compreender a amargura dos brancos perante este comportamento estúpido
e injusto dos homens que agora mandam na sua Pátria. E ainda esta tarde, ao
regressar da redacção do meu jornal, pude ver bem uma imagem bem dramática desta
situação.
Na Bolacha
da Alameda Dom João II, ao esbarrar com o sinal vermelho, travei já demasiado à
frente, para continuar a ver as luzes do semáforo e aguardei calmamente o aviso
do carro que me seguia. Esse aviso soou, anunciando a luz verde, e arranquei.
Mas logo estaquei bruscamente, quase a tocar num branco de meia
idade que, de olhos alucinados, barba crescida e os braços abertos como
os de Cristo a oferecer-se à cruz, berrou numa voz tremendamente amargurada:
— Já agora, mate-me, C...!!!
E o palavrão
mais obsceno do vocabulário português atingiu-me em pleno rosto, como um vómito
de sangue e fel.
— Desculpe! —
balbuciei impressionadíssimo com aquela máscara de tragédia. E, abrindo-lhe a
porta do carro, pedi-lhe que entrasse, para eu o levar aonde quisesse ir.
Ele entrou,
reconheceu-me e curvou a cabeça, na vergonha do seu procedimento.
— Sabe?... —
explicou quando já subíamos a Avenida dos Combatentes — Um homem chega a
pontos que já não tem mão nas palavras...
— Nem eu
reparei que você ia a passar. Andamos todos avariados... Onde quer que o deixe?
— No primeiro bar que veja. Preciso
de me embebedar...
— Para quê, homem?
— Para
esquecer... Eu tinha aí uma pequena oficina no Cazenga. Queimaram-na...
— E não lhe ofereceram passagem para Lisboa?
— Para
morrer lá de fome?! Eu nasci em Angola, de pais que também já aqui nasceram e
estão agora no Cemitério do Alto das Cruzes... Desço aqui, se faz favor...
Encostei ao
passeio, junto da esplanada Punia dei Este e aconselhei-o a espairecer,
falar com os amigos, reconstruir a sua vida. Embebedar-se era disparate.
— Talvez nem
consiga embebedar-me — confessou ele com um riso triste. — Só me restam 50
paus...
E estendeu-me a mão calejada
no duro trabalho de muitos anos.
Com emoção
inexprimível, meti-lhe discretamente nela uma nota de 100, num gesto impulsivo
e apenas obediente ao desejo de ajudar aquele pobre português a afogar a sua
dor, ainda que fosse em vinho...
Conto esta
ocorrência, como exemplo das tragédias vivas com que hoje se depara nas ruas de
Luanda.
É por estas
e outras coisas do mesmo género que o 25 de Abril tem, em Angola, um sentido
diferente do que lhe dão em Lisboa. Lá, foi apenas uma viragem política. Aqui,
iniciou um processo de marcha para honrosas mas pesadas responsabilidades. O
que parecia tão simples — assumir uma independência que já ninguém nega —
fermentou no veneno de velhos ódios, causando a morte de muitos milhares de
inocentes. E ninguém sabe quanto sangue ainda será derramado num caminho que devia
ser juncado de flores, já que representa o nascimento de uma nova nação, com
todas as condições para ser grande e próspera.
Não consigo
pensar nestas coisas com a cabeça fria, como tantos aconselham, principalmente
quando já têm garantido o embarque para Lisboa. Ninguém vive com o coração
frio. Nem sei quem possa pensar com os miolos congelados. Todo o homem vivo é
nervos, calor e vibração.
Se há tiros
no silêncio das noites luandenses e o sangue derramado torna mais vermelhas as
areias dos muceques, e são aos milhares os habitantes em êxodo e as famílias
sem futuro, como posso eu, que sou apenas um homem dedicado a esta terra e a
este povo, como posso eu contar friamente
os que fogem e os que morrem?!
Por Deus,
irmãos! Reparem que até os circuitos integrados dum computador aquecem no
trabalho de tais contagens.
E lá me
perdi de novo, nesta baldada tentativa de explicar como o 25 de Abril não é,
para os luandenses, o que representa para os lisboetas. Há nesta afirmação um
conteúdo real em que eu sinto o sabor da verdade. Mas se pretendo
evidenciar-lhe o sentido concreto, logo me enredo numa complicada teia de
ideias, sentimentos e circunstâncias, que me deixam perplexo e confuso, como na
perdição dum nevoeiro...
Talvez, no
entanto, os leitores possam reter, de toda esta baralhada verbal, a ideia certa
de que Luanda não é Lisboa e que o 25 de Abril, longe de lhes apagar as diferenças,
só veio torná-las maiores e mais evidentes.
A
pluralidade dos partidos, em regime democrático, possível nas velhas Nações do
Ocidente Europeu, talvez seja irrealizável numa nascente nação da África tropical. As querelas políticas,
perfeitamente naturais e importantes no hemiciclo do Palácio de S. Bento,
parecem por enquanto vazias de sentido para pretos e brancos de Luanda, que
acordam agora com o crepitar das metralhadoras, ou são forçados a abandonar os seus
empregos, ou ignoram se o dia da independência será uma festa de confraternização
ou um banho de sangue.
Perante este
acervo de interrogações e problemas essenciais, o leque das ideologias políticas
é um objecto de luxo, bem dispensável pela grande massa dos que vivem do seu
trabalho e nada mais pretendem do que a independência no progresso e na paz. E
os cravos vermelhos do 25 de Abril, que nunca foram aborígenes de Angola (nem
mesmo de Portugal) até podem ser acusados de uma transplantação colonialista e
contrária à genuína autenticidade da terra angolana.
3.7 — O João Sujo
Moro num
bairro sossegado, onde a regra de vida é uma decente mediania, mas também há
gente pobre e um ou outro rico em figuras de excepção.
Em dias do
meu descanso semanal, que são variáveis na rotação dos turnos do meu serviço,
costumo sair, num pequeno passeio a pé, depois do pequeno almoço.
Como
parceiro certo, segue-me um cão grande, não sei de que dono nem de que raça,
com o pêlo encarapinhado dum caniche malfeitão e uns olhos leais e camaradas.
Diz meu pai
que os donos lhe dão banho com normal regularidade, mas o bicho corre logo para uns barrocais próximos e ali
se rebola consoladamente, até ficar
mais enlameado do que um suíno ao
sair do espojadouro. De positivo, eu nunca o vi limpo e, por isso, lhe chamo João
Sujo, nome que ele aceita, arreganhando os dentes, numa espécie de riso compreensivo e bom.
Ora, não sei
por que silenciosa e discreta amizade
(que gostosamente declaro recíproca), o João Sujo alinha sempre comigo nesses
passeios matinais, em dias limpos do meu trabalho de jornalista.
Não se
encosta às minhas pernas, porque bem sabe como está
enlameado, nem estende a língua para a lambidela da sabujice, porque
é um bicho rude, franco e alérgico a lisonjas políticas e artes correlativas.
Ele
acompanha-me para outra espécie de demonstração. A duas centenas de passos de
minha casa, ao lado direito de uma rua a subir, dentro do quintal de uma
vivenda de luxo, há três canzarrões dálmatas, sempre muito limpos e asseados,
no seu pêlo branco salpicado de bolinhas pretas. E é com a mira neles que o João
Sujo me segue, para mostrar a este seu amigo, em particular, e a todo o bairro
em geral, o seu infinito desprezo de plebeu por
aqueles três impertigados fidalgos.
Lança-lhes, ainda de longe, o
seu desafio, bem claro e três vezes repetido, como valente cavaleiro que
desfralda a sua bandeira de guerra, ao avistar o castelo do inimigo fanfarrão.
E logo os três lordes comparecem ao portão, alinhados como soldados em parada,
solenes como ministros em despacho, arrogantes e pimpões como um triunvirato
de ditadores. E dignam-se mirar o intruso, respondendo com três latidos
serenos e compassados ao ladrar viril daquele enxovalhado proletário. Este
acelera o ritmo da ladração, investe com o focinho contra a fronteira de ferro que
o separa dos inimigos, mostra-lhes a dentuça afiada. Os três dálmatas perdem a
sua compostura de bichos-de-bem, eriçam o pêlo fino,
revelam os seus genuínos dentes de cão. E é, durante minutos, uma terrível
batalha de insultos, entre o podengo vilão e os três grão-duques da Dalmácia,
agora iguais nas dentuças ferozes, encharcadas pela baba do ódio.
O João Sujo
aguenta-se lindamente, não cede um milímetro da sua posição, tem mesmo o
focinho para além da raia definida pêlos varões de ferro do portão e algumas
vezes consegue tocar, com os seus dentes vorazes de cão da rua, as orelhas bem
lavadas dos enfurecidos dálmatas. E são eles que vão cedendo terreno, recuando
ora um ora outro, nuns ganidos que me soam a pedidos de socorro.
Será com
medo dos dentes arreganhados do João Sujo? Será para não conspurcar os seus
finos pijamas às bolinhas no contacto com aquele mísero rafeiro enlameado?
Não sei. Mas
são eles que fogem, refugiando-se no seu luxuoso canil, todo em ferro esmaltado a branco.
O João Sujo
tem então, para mim, um olhar de esguelha, como quem me pisca o olho, e retira
com dignidade, não sem primeiro alçar a perna contra a ombreira do portão, para
regar o local da vitória.
Nesta cena,
tantas vezes repetida, abstenho-me de tomar partido com gesto de apreço ou
palavra de estímulo. Assumo a atitude neutra dum observador imparcial. Mas não
sou. Cá no meu íntimo, sinto que ficaria danado se o João Sujo se deixasse
vencer e escorraçar. Os três limpíssimos dálmatas nunca me ladraram nem
morderam. Mas, instintivamente, não gosto do seu ar altivo, autoritário e mandão.
Sempre as
minhas simpatias foram para os mais humildes, sobretudo quando são corajosos.
E nesta birra do João Sujo contra os três empertigados guardas da vivenda de
luxo, não há um miligrama de inveja — é tudo vontade de se afirmar, de mostrar
que também existe, de provar que não tem medo.
Coisas que
eu gosto de ver...
Nessa manhã, ainda sorria da cena do João Sujo, no seu último acto de vingança contra
a prosápia dos três dálmatas, quando encontrei o eng.°
Balanta, que vinha de comprar o jornal.
— Quais são
as últimas? — fiz eu, na pergunta habitual dos dias que correm.
— Chega
amanhã a delegação da FNLA — informou ele com voz de caso.
— É uma
consequência do acordo de cessar-fogo, há dias celebrado em Kinshasa —
insinuei.
— E os outros movimentos? — lembrou ele.
— Agora só falta o MPLA...
— Acreditas na possibilidade da frente comum?
— Desde que
os três movimentos se juntem em Luanda, acabarão por se entender. Por vezes é só
uma questão de palavras...
— Neste
caso, não é. Tenho amigos nos dois movimentos e sei que os seus ideários são
muito divergentes, quase antagónicos.
— Mas
combateram pelo mesmo objectivo fundamental: a independência. Não me parece
complicado que todos concordem em pegar na bandeja que o Governo de Lisboa
agora lhes oferece.
— Não
parece, mas é — teimou o engenheiro.
— A FNLA e a
UNITA já deram o exemplo.
— É fácil um
entendimento com o dr. Jonas Savimbi, que me parece o espírito de conciliação em pessoa e não está sujeito a pressões do exterior. No MPLA há outros problemas.
— Continuas
pessimista...
— Talvez,
mas com sobejas razões. E só desejo que o futuro desminta tudo quanto hoje
receio. Pelo menos, não imitarei esse desgraçado que ontem varou o coração com
uma bala, no momento em que devia embarcar para Lisboa.
— Não sabia
disso. Quem foi?
Ele disse-me
o nome: exactamente o nome daquele branco que há dias, na Alameda Dom João II,
quando se viu à frente do meu carro que arrancava, pediu que o matasse,
sublinhando o pedido com o palavrão mais obsceno do vocabulário português.
Senhor Deus!
Tanta tragédia que hoje caminha pelas
ruas desta minha bela e querida cidade!...