NA GUERRA DE INFORMAÇÕES

Deixei-me ficar mergulhado na banheira. Com alguns milhares de dólares, na Europa, sem ninguém tentando me dar um tiro... deveras repousante, para o corpo e para a mente.

Mas trazia a revolução portuguesa atravessada na garganta e não iria me acomodar tão cedo. Contemplando os despidos galhos das árvores através das embaçadas janelas, telefonei para o Coronel.

Atendeu o capitão Barata, que estava atuando como uma espécie de ajudante de ordens de Santos e Castro. O coronel não estava, mas sabia da minha vinda e queria falar comigo.

- Amanhã vou a Lisboa, Barata!

- Esqueça, você agora está por conta do coronel, precisamos de ti!

Adiei minha viagem “quase turística'' com prazer, afinal logo estaria operacional de novo e não podia perder oportunidades, principalmente junto a um homem da estirpe de Santos e Castro, que devolvera sua farda e condecorações ao Exército Português após a famigerada revolução que enodoou as Forças Armadas.

Na manhã seguinte instalei-me no confortável hotel Flórida Norte, a uns 300 metros da Plaza de Espana e da Gran Via, no coração de Madrid. No bar do Flórida, sentei-me com o capitão Barata e Lopes, o velho companheiro de luta que, encarregado do recrutamento de novos elementos em Portugal, acabara ficando na Europa, com o fim abrupto dos combates.

            Esperava minha vez para falar com o coronel, mas este, ao me ver, interrompeu sua conversa, vindo ao meu encontro. Apesar de ser um militar de linha dura, dava valor aos seus subordinados, respeitando-os da mesma forma que o era por todos. Queria que eu  ficasse em seu "staff"; eu e Lopes seríamos seus homens operacionais, preparados para qualquer eventualidade.

Como piloto, pára-quedista, chefe de carro de combate e comando, me transformara num oficial polivalente, podendo ocupar o mesmo lugar que vários outros de uma só especialidade. Era veterano, passara por guerrilhas e por uma guerra convencional; saltara pêlos postos hierárquicos e tinha plena confiança em minha capacidade militar. Eu era, finalmente, o que me propusera ser. O aprendiz de guerreiro já não existia.

Adiei indefinidamente meu período de recuperação em Portugal, permanecendo na Espanha "patrocinado" pelo coronel, que por sua vez tinha seus patrocinadores. Que não eram os propalados ELP (Exército de Libertação de Portugal) nem muito menos o MDLP (Movimento Democrático para a Libertação de Portugal), as duas organizações contra-revolucionárias que nasceram devido ao entreguismo do novo governo.

Aos contatos destes, ansiosos para poderem usar a força de seu nome, Santos e Castro respondia com trocas de ideias, conselhos, mas mantendo distância. Ainda estavam "verdes" demais, teriam que crescer e organizar-se melhor se quisessem sobreviver e produzir algo de concreto.

A primeira semana foi deixada para minha climatização. Nas Galerias Preciados e no El Corte Inglês renovei meu surrado guarda roupa, adaptando-o ao ainda inverno europeu. Em Puerto Cerrado, a poucos quilómetros de Madrid, divertia-me na neve, com tobogãs e esquis que me faziam permanecer mais tempo na horizontal do que na vertical... Passeava longamente pelo grande zoológico, pelo Parque de Atraciones e vendo as crianças brincando despreocupadamente, os adultos alegres, pisando o tapete de folhas douradas que caiam secas das árvores, fui aos poucos entrando em forma, ganhando tranquilidade e peso...

Numa pizzaria italiana na calle de Los Libreros, onde sempre jantava, reunia-me com os membros da Ordine Nueva, com Walter, ex-capitão dos Panzer de Wehrmacht na II Grande Guerra, que muito tinha de interessante para contar e outros espanhóis e sul americanos.

         Cantavam-se hinos e degustavam-se boas pizzas e lasanhas num ambiente militarizado.

O coronel, que não se fiava em boatos, queria saber a verdade sobre a situação do povo português, principalmente acerca das infiltrações de técnicos e agitadores profissionais. Partindo em dias diferentes para pontos diferentes, Lopes e eu deveríamos, separadamente, vasculhar Portugal de cima abaixo, colhendo informações.

Embarquei no aeroporto de Barrajas, para Lisboa. Teria também, agora, a chance de rever os ex-comandos do ELNA e fazer um mapa de suas posições atuais e ocupação, o que poderia ser-me útil. Pensava, já, em organizar as Brigadas Lusíadas, que haveriam de reconquistar pela força, a independência de Portugal.

Já pela parte sentimental gostaria de reencontrar pessoas que me trataram com amizade, quando dos meus primeiros passos em território africano: os padres de Nampula e outros, que agora se encontravam no norte de Portugal. Iria visitá-los, se tudo saísse bem.

Corria o ano de 1976, apenas quatro da minha primeira estada em Portugal. Mas a revolução fizera sua obra, fiquei desolado com o país que agora encontrava.

Que diferença dos bons tempos, severos sim, mas seguros, de Marcelo Caetano. Onde estava a ordem, a limpeza exemplar que vira em anos atrás? O que era aquela imundície nas paredes, nas ruas, no metro? Por quê aquela multidão de mendigos? Por quê aquela garota bonita, que estudava no Liceu em Moçambique, engraxando sapatos na praça do Rossio para ter que ganhar a vida? Por quê não houve controle na alfândega do aeroporto, por acaso a ninguém interessava se eu trazia uma mala com drogas para semear vícios e destruir jovens? Ou armas? Onde estava a lei e a ordem?

Onde estava, sobretudo, o orgulho de uma nação que mantinha suas colónias em África, firmemente decidida a não deixá-las nas mãos de oportunistas de Leste e aos poucos, com sacrifícios, ia dando-lhes autonomia e progresso, ganhando uma batalha que as grandes potências haviam perdido por falta de garra, deixando suas posições entregues às lutas tribais e à escravidão marxista...

             Contemplei um Portugal doente.

Um povo que se dividia ostensivamente em ex-colonos, sofridos, que tudo haveriam perdido, chamados de "retornados" e os que não deixaram o solo europeu e egoístas, se sentiam prejudicados pêlos irmãos que voltavam precisando de casa, comida e trabalho.

Quem vinha da praça dos Restauradores e entrava no Rossio, à direita, na primeira calçada iria encontrar os retornados de Moçambique às centenas, tomando todo o espaço, em torno de um café ou em grupos, comentando os tempos passados e os magros dias do presente. Mais à frente, no segundo calçadão, os retornados de Angola. Do outro lado da praça, em frente à Confeitaria Suíça, misturavam-se timorenses e outros. Em todos os grupos, a mesma conversa. E a mesma vontade de se rebelar contra aquela situação estúpida. Faltavam líderes e organização suficiente, para terem condições de luta contra os maquiavélicos esquerdistas e suas revoluções pré-fabricadas, modelo padrão, made in URSS.

Faltavam as "Brigadas Lusíadas", para receber estes homens e criar uma nova Pátria.

Comecei minha missão pelo sul, por Faro, passando por Beja e Évora, nas quais demorei-me bastante. Estava por ali o cancro que fazia Portugal adoecer... Ao mesmo tempo ia contatando ex-comandos das localidades, cujo endereço trazia comigo desde Kinshasa. Preciosa e segura fonte de informações, deixava com eles o número de minha caixa postal em Madrid, que comprara unicamente com este fim.

Animava-os e pedia que permanecessem alertas. O fato de me verem chegando às suas casas, demonstrava que havia algo em marcha, nem tudo estava perdido. Se por um lado cumpria minha missão colhendo informações, por outro ia solidificando meus planos da Brigada. Nunca gostara de sonhar acordado, haveria de conseguir.

Em um carro alugado pesquisei, juntamente com Azevedo, (do grupo blindado), zonas do campo onde se localizavam "fazendas coletivas", comunas que eram verdadeiros ninhos de víboras. Havia armas de guerra, principalmente G-3, espalhadas pelo sul de Portugal e notadamente um sem número de granadas.

Se bem que infiltrações cubanas fossem difíceis de detectar devido ao seu tipo físico semelhante ao português, o que se via e recebia  informações era sobre a presença de um grande contingente de portugueses praticamente criados em países socialistas de Leste, aluando de forma aberta na mentalização do povo mais humilde, sustentando-se sem trabalhar, o que constituía um mistério bem fácil de ser elucidado.

À medida que caminhava para o norte o vermelho se transformava em rosa e acabava desaparecendo já nas proximidades do Porto, berço de grandes tradições de amor à Pátria.

Hospedado no Grande Hotel da Batalha após contatos valiosíssimos, resolvi visitar meus amigos padres que viviam nas cercanias da velha cidade.

Qual não foi meu espanto e desilusão, quando em meio a evasivas apressadas, os representantes do Senhor na terra fugiam esbaforidos diante da minha presença, visto no mínimo como embaixador plenipotenciário de Satanás em Portugal! Haviam perdido todo aquele entusiasmo por Marcelo Caetano e o Império Português, que de sobra extravasavam. Pensavam em sua própria sobrevivência, entocando-se de medo ao menor sinal de alguém que não estava nas graças do revolucionário governo. Voltei para o Porto a fim de que saíssem finalmente debaixo de suas camas. Era a hora do terço, pois!

Voltei à Espanha com meu relatório, encontrando Lopes, que me havia precedido por dois dias. Também trouxera informações interessantes.

Mas a exemplo do acontecido com a contra revolução moçambicana, o ELP e o MDLP se debatiam em intrigas e rivalidades internas, perdendo pouco a pouco suas forças e diluindo outras que por ventura houvesse. Ainda voltei a Portugal para assistir e fotografar certo comício e como ponta de lança, segui para o sul da Espanha, tratando da segurança de um encontro sigiloso perto da fronteira. Foi meu último serviço.

Depois de uma conversa com o coronel, que para mim teve o valor de um curso pós-graduação, dissolvemo-nos. Despedi do "velho" e fui tratar de meu futuro, pois muito pretendia ainda fazer. E se Angola fora a escola prática, Espanha e Portugal, com os longos monólogos de Santos e Castro, fora a teoria que me faltava.

         Entre dois goles de Águia Real resolvi dar um salto ao Brasil, de onde estava ausente há quatro anos. Foi uma decisão repentina, mas acreditei que me faria bem. Comprei uma passagem para o Rio e pela primeira vez, em dezenas de viagens aéreas, resolvi num ímpeto de xenofobia vir pela companhia brasileira. Mal o voo começou e eu já me arrependera. O péssimo atendimento, a comida em nível de restaurante de 3a categoria, as comissárias arrogantes. Pisei no Brasil irritado, mas logo voltei ao normal a caminho de São Paulo. Em quatro anos o valor do dinheiro mudara bastante e ficava estupefato ao ver os preços, pois não seguira seu paulatino aumento. A solução foi indo transformando-os mentalmente em dólares ou pesetas, para ter o valor real de cada coisa.

Em São Paulo encontrei E.C., de quem não tinha notícias há muito, já veterano num curso de Direito e com uma filha ao colo. Adaptara-se bem, o guerreiro part-time!

Em minha pequena cidade natal, a 190 quilómetros da capital do Estado, a tranquilidade de estar com a família e outras pequenas grandes coisas.

E lá mesmo a surpresa de encontrar, enriquecendo o Corpo Docente da Faculdade de Direito com uma colaboração semanal, o grande Ministro do Ultramar e ex-governador de Moçambique, Doutor Baltazar Rebelo de Souza, com quem tive a honra de conversar e passei a manter correspondência, para dar-lhe notícias de Moçambique, que realmente amava e sofria com a atual situação da antiga província que governara.

Mas a roda do carro de Marte, Deus da Guerra, não pára.

Recebo cartas de vários pontos por onde se espalham ex-comandos. Como se escutassem a um apelo pensam em voltar para a Rhodésia, não estão se adaptando à vida que agora levam e ainda não se conformaram com a escravidão que sofrem seus países adotivos, Angola e Moçambique. E Rhodésia, que sempre nos acolhera bem, está ali, encostada no bosque enfeitiçado de Samora Machel...

Mal passaram dois meses de minha chegada e já pensava em voltar à atividade. Alguém tinha que ajudar a libertar aqueles países; por que não nós, outra vez, atuando como catalisadores da legítima revolta de um povo oprimido?

Desta, porém, eu queria dar as cartas. Ao meu modo. Queria africanizar minha ideia das "Brigadas Lusíadas".

Há meses os portugueses refugiados em Rhodésia tentavam criar com os experientes ex-comandos especiais, grupos de guerrilha que servissem de bola de neve, na avalanche que soterraria Machel e seus lacaios. Faltava um chefe que fosse aceito por todos eles, um tanto rebeldes após os sofrimentos de Angola. Cogitaram meu nome e não houve opiniões contra. Sofrera com eles, do princípio até o último dia da guerra civil e nunca me acomodara na retaguarda.

Daí foi um passo para me ver sentado diante da simpática funcionária da South África Airways, adquirindo meu bilhete para Salisbury. Voltaria à África, desta vez plenamente consciente do que me esperava e com know-how para enfrentar as circunstâncias.

Após cruzar o Atlântico pela quarta vez, desta feita pelo sul e escalar em Joahnesburg, cheguei a Salisbury. No rígido controle alfandegário os turistas que não portassem passagem de volta nem comprovassem possuir suficiente dinheiro para a estadia que se propunham, eram "devolvidos" no mesmo avião. Apesar da minha passagem ser apenas de ida, um telefonema do Special Branch, o serviço secreto rhodesiano, bastou para que fosse liberado com votos de boa estadia...