II

MOÇAMBIQUE

Após uma entrevista num programa de rádio e uma reportagem numa revista católica, já como cidadão português, embarco num voo noturno na TAP com destino a Beira (Moçambique), via Luanda. A guerra já se faz presente: o Boeing 707 português não tem permissão para sobrevoar países africanos e sua rota é uma longa curva em torno do continente negro. O mesmo acontece com os aviões sul-africanos.

A noite passa tranquila e ao amanhecer estamos aterrissando em Luanda, capital de Angola. Piso em solo africano pela primeira vez, sinto-me bem. A escala é apenas para abastecimento e em seguida estamos no ar. Sobrevoamos Salisbury, capital rhodesiana, última cidade importante antes de chegarmos à Beira, centro urbano da costa do Oceano Índico e o porto que alimenta Rhodésia, isolada do mundo por um bloqueio económico imposto pela Inglaterra.

Uma Kombi me leva para o Hotel Moçambique, moderno e confortável. As conversas, em dialeto local, são totalmente incompreensíveis para mim, mas todo nativo fala também português. Noto o movimento contínuo de tropas, principalmente os GEP, Grupos Especiais pára-quedistas, cujo quartel é em Dondo, nas proximidades.

Durmo no hotel seguindo de manhã para Nampula, num Boeing 737 da DETA, a companhia aérea que realiza voos domésticos. A maior parte dos passageiros é militar; estamos nos aproximando da zona de guerrilha.

        Cruzamos o rio Zambeze e Quelimane, cidade situada em sua foz. No meu destino final sou esperado pelo enorme e patriarcal padre Patrício, chefe da sociedade Missionária na Região. No aeroporto alinham-se dois Fiat G-91 com "colmeias" de rockets sob as asas, helicópteros Alloete III, C-47s e os transportes de pára-quedistas, apelidados pêlos nativos de barriga de ginguba (amendoim). O número de viaturas militares é enorme, predominando os pequenos Unimogs, chamados de "burros do mato" pela sua versatilidade e resistência e as gigantes Berlietz, caminhões de transporte geral.

Por todo lado se vêem os comandos com seus camuflados e lenços coloridos no pescoço, empunhando as G-3 alemãs ou pequenas Uzi, israelenses. E estes homens de elite, em sua maior parte, eram negros moçambicanos, que não queriam que o caos se apoderasse de sua terra.

A cidade, que percorro no VW do padre Patrício, é um grande quartel; nitidamente ela vive às custas dos militares. Mas não tenho tempo para observações, pois sou levado para Marrere, distante 15 Km de Nampula, um complexo constituído de hospital, escola primária, oficinas, plantações de algodão e Escola de Professores de Posto Escolar; nesta última é que darei instrução de Educação Física.

Sou bem recebido, acabo me tornando também professor de Ciências Naturais e Trabalho Manuais-Desenho, pois a falta de docentes é crítica. Este período é de vital importância, pois assimilo a realidade das colónias africanas, tomo conhecimento da política ali realizada e me entroso com os militares de todos os níveis.

Com o Diretor da Escola, padre Alexandre, passo a conhecer melhor Portugal e suas tradições bem como os Macuas, a tribo da região, sobre os quais o dedicado padre havia escrito vários contos e preparava agora um dicionário. Foi realmente a melhor maneira de entrar em África. Como professor de Educação Física mantenho minha forma ao mesmo tempo em que aperfeiçoo meu método de comando, aplicando-os aos nativos. Comandar em África não é o mesmo que em países da Europa ou América.

Com o professor Quina, o português que irei substituir no Marrere, fazemos uma viagem de uns vinte dias pelo distrito de Nampula, Zambézia e sul do Niassa, na fronteira com o Malawi, onde entramos em companhia do chefe da DGS local.

         Por aquela fronteira costumam cruzar secretamente os recrutas da Frelimo, a Frente da Libertação de Moçambique, que farão instrução na Tanzânia voltando depois com seu terrorismo covarde. Lidera o grupo um ex-auxiliar de enfermagem de Lourenço Marques, Samora Machel. O verdadeiro líder, Mondlane, morrera na explosão de uma bomba que Samora imputara à DGS. Nunca ficou provado...

No sul do Niassa encontro as Milícias de Intervenção; está aí algo que não conhecia e que poderei ingressar. São profissionais, não pertencem ao Exército e tem a função de patrulhar estradas, defender aldeamentos, proteger os trens de carga/passageiros dos ataques e das minas. Enfim, no Niassa, zona de combate, existia todo o esquema de recrutamento que em Portugal seria impossível encontrar devido à burocracia.

Depois que Quina parte para o sul, fico com sua motocicleta, uma Zundapp 200, com o qual percorro as trilhas e aldeias próximas do Marrere, conversando com os nativos, principalmente com os régulos, autoridades tribais tradicionais reconhecidas pêlos portugueses, mas que a Frelimo procura derrubar. São nossos aliados e têm grande influência na consciencização do povo, contra a propaganda marxista e racista dos guerrilheiros.

Em Nampula existe, a exemplo de toda a colónia, a OPVDC, Organização Provincial de Voluntários para a Defesa Civil, que abrange todos os voluntários e lhes proporciona treinamento militar e armas. É uma forma de manter uma reserva de efetivos pronta para intervir caso necessário, sem que se tenha de deslocar tropas da Metrópole. Pretendo me inscrever, mas os acontecimentos viriam apressar meu processo de entrosamento com o mundo militar africano.