JANGADA DE NÁUFRAGOS

 

(Segundo os apontamentos de Santos Gouveia)

Após a descolonizarão dita exemplar, neste pe­queno País a que estamos irreversivelmente reduzidos, neste rosto da Europa como o sonhou o génio de Fernando Pessoa, e que efectivamente alongou seus olhos por toda a redondeza do mundo mas agora já mal avista a Madeira e os Açores —, vagueiam cen­tenas de milhares de portugueses regressados do Ultramar.

Vagueiam como fantasmas ainda bem capazes de assustar algumas crianças grandes que jogaram ao berlinde as terras e as gentes que foram o Ultramar Português. Eles são as figuras ainda vivas das últimas páginas da nossa História Trágico-Marítima. São a con­denação inapelável dos que deitaram pela janela fora, sem olhar como nem a quem, a herança de muitas gerações. E porque entre eles há brancos, pretos e mestiços, ao aceitá-los a todos como portugueses que todos são, a si próprios se contradizem aqueles que impugnaram, como utópica e mentirosa, a formosa ideia da Nação multirracial.

Com a sua miséria, a sua raiva e o seu desespero, tudo somado ao contínuo vociferar de comícios e ple­nários, greves e reivindicações, já este pequeno rec­tângulo europeu parece transformado numa jangada de náufragos.

Esta é a explicação do título geral escolhido para as singelas narrativas em que tentarei contar episódios que vi com os meus próprios olhos ou ouvi da boca dos seus principais protagonistas.

 

 

12.1 —Mãe e Filha

No comboio da linha de Cascais, que acabava de partir do Cais do Sodré, sentou-se à minha frente uma senhora de meia idade, preta retinta, com uma garota que lhe copiava o essencial das feições, com pele bastante mais clara, quase de uma algarvia morena.

A mulher tinha esse ar de esmerado asseio, que é frequente nos pretos civilizados. Mas a pobreza gritava em cada centímetro do vestido passajado e nos seus olhos havia uma dor profunda, misturada a uma humilde resignação.

*

De vez em quando mirava a filha (era certamente sua filha) e esboçava uma tentativa de sorriso mal conseguido. A seguir a um desses olhares, jogou uma pergunta escusada:

— Estás com fome, Nelinha?

— Não — balbuciou a criança.

Mas a mãe não acreditou (nem era de acreditar, porque os olhos da menina contradiziam a envergonhada negativa). Tirou da carteira de plástico um saquinho de amendoim e passou-o às mãos da filha.

— Toma! Mas não deites as cascas para o chão: guarda-as no saco.

A mocinha aceitou e começou logo a comer, ainda com certo jeito envergonhado, que depressa foi vencido pela euforia do apetite satisfeito. E agora a mãe chegou mesmo a sorrir, com aquele enternecido sorriso de todas as mães pobres, quando podem acalmar a fome dos filhos.

Exilado nesta grande Lisboa, com uma enorme saudade da terra em que vivi o melhor tempo da minha vida, não pude resistir à tentação de confirmar a minha suspeita:

— Vieram de Angola?

— Viemos, sim senhor — respondeu a mulher depois de alguma surpresa e segundos de hesitação. — Viemos de Luanda.

— Vivi e trabalhei lá durante quarenta anos.

— Ah! — fez ela mais confiada — Também teve de fugir?

— Vim de férias. Mas, agora, aconselham-me a não voltar, ao menos por enquanto...

— Há muita confusão — recordou ela com uma luz de medo nos olhos tristes. — Eu tive de fugir só com a roupa que trazia vestida. E não sei do marido nem do meu filho mais velho...

— Mas sabe que estão vivos?

— Não sei nada. Um dia, ao voltar do Liceu Salvador Correia, encon­trei a casa roubada de quanto tínhamos e os vizinhos disseram-me que fugisse, porque tinham levado o meu marido e talvez me quisessem levar também a mim. Meu marido era 2.° oficial de Fazenda...

— E o seu filho?

— Esse já tinha desaparecido uns dias antes, mas eu ainda esperava que voltasse. Coitado do meu Pedro! Teimou em inscrever-se na FNLA e as FAPLAS sabiam...

Caiu entre nós um silêncio incómodo. No meu íntimo, admirei a perfeição com que aquela pobre negra de Angola falava a língua de Camões. O comboio tinha parado em Algés. E só depois que arrancou de novo, lancei eu uma nova pergunta:

— E agora?

— Agora estou à espera...

— À espera de quê?

— De que o futuro se me torne mais claro. Já me inscrevi no IARN. Dão-me casa e comida...

— Já não é mau.

— É pelo menos triste. Para quem sabe trabalhar, custa muito viver de esmolas. E custa ainda mais nada saber do marido, nem do filho, nem do que será o futuro...

Com a boa intenção de a afastar daquelas ideias amargas, pergun­tei o que fazia ela no Liceu Salvador Correia, em Luanda.

— Ensinava — disse. E, timidamente, descendo um olhar envergo­nhado para o seu vestido de outro corpo e para a sua velha carteira de fecho estragado, acrescentou:

Sou  licenciada  em Germânicas pela Universidade de

Coimbra.

Lisboa, Outubro de 1975

12.2 — O  Senhor Desepero

Era um homem culto, dinâmico e entusiasta.

Deram-lhe,  para   governar,   um   dos   mais   atrasados

 distritos  de Angola, prejudicado pelo seu afastamento de Luanda, ainda vazio de estra­das asfaltadas, despovoado pelo êxodo de 1961.

Saudoso da filha única, que estudava na Universidade de Coimbra, mas beneficiado com a presença e ajuda duma esposa exemplar, lançou--se ao trabalho com a coragem e determinação de um pioneiro do antiga­mente. Daquele distrito fronteiriço — ele só maior que todo o Portugal europeu mas reduzido a uma população de quarenta mil habitantes — fez a grande obra e a grande razão da sua vida.

Abriu escolas, reparou caminhos, criou milícias de auto-defesa. Na antiga povoação, em que avultavam as ruínas de igrejas e conventos, construiu uma cidade nova, progressiva, acolhedora e confortável.

Espalhou fontenárïos por todos os aldeamentos e tinha uma jus­tificada vaidade nos seus «blocos de água», pequenas construções de 6x16 metros que incluíam o lavadouro de roupa, balneários de chuveiro e instalações sanitárias, segundo um critério de concentração comuni­tária que seria excelente solução para muitas aldeias da Metrópole Portuguesa.

No plano escolar, fervorosamente apoiado pelo dr. Pinheiro da Silva, então secretário provincial da Educação, conseguiu também uma admirável colaboração das populações, ávidas de progresso. As primeiras escolas foram construídas pelos pais dos futuros alunos, apenas com a ajuda de uns sacos de cimento, algumas caixilharias e o zinco para a cobertura. E as crianças levavam de casa os banquitos de fabrico gentí­lico em que se sentavam.

Mas, com tão humildes princípios, ao abrir de 1974, aquele era o primeiro distrito angolano a atingir a escolaridade de cem por cento. Todas as crianças daquela vasta área tinham a sua escola. E, agora, em belos edifícios de alvenaria, com várias salas de aula, boas instalações sanitárias, posto de enfermagem e casa para os professores.

Em todas as aldeias havia os famosos «blocos de água» e algumas casas do tipo europeu, construidas pelos nativos, com boas condições de habitabilidade. Também começava a surgir, entre os naturais da terra, a classe média com alfaiates, pedreiros, marceneiros e comerciantes, alguns deles donos e gerentes de bons estabelecimentos comerciais onde não faltavam o balcão frigorífico, a máquina registadora, o quintalão para os batuques de fim de semana e a instalação sonora para a música de discos a chamar a freguesia.

Dominado pela sua grande ânsia de realizar, o governador percorria incessantemente as terras da sua administração. De avião, de jipe ou a pé. Com um entusiasmo que não deixava de crescer. Com uma perseverança que não cedia ao cansaço. Com a íntima alegria de ser útil a todos, realizando-se a si próprio, enquanto lá longe, na saudosa Coimbra dos seus tempos de rapaz, a filha única se preparava para continuar a tradição laboriosa de seus pais.

Foi saneado logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. E não tardou muito que fosse expulso do exército, sob a acusação de fascista e reaccionário.

— Que será de nós, agora? — perguntou-lhe a mulher.

— Temos de sobreviver, por causa da nossa filha.

— E como vamos mandar-lhe a mesada?

— Ainda temos algum dinheiro...

Mas o dinheiro era pouco e acabou-se depressa.

Velhos amigos conseguiram-lhe então um emprego numa grande companhia. Isso deu-lhe um certo alento, que não durou muito. E não durou muito porque o emprego era quase nada para a sua enorme capa­cidade de trabalho. Como todas as actividades em Angola, depois do 25 de Abril, também as daquela empresa esmoreciam e se degradavam. E ele passava a maior parte do tempo a ler os jornais da Metrópole, que raivosamente, numa espécie de fúria destruidora, atacavam todos os por­tugueses do Ultramar, acusando-os de explorar os pretos, classificando--os de colonialistas e ladrões, cumulando-os de insultos e calúnias.

Depois veio a declaração do general Spínola, reconhecendo o direito de Angola à autodeterminação e à independência.

O ex-governador tornou-se amargo e taciturno. Não compreendia os novos tempos. Todo o seu mundo se desmoronava. Os seus melhores amigos tinham sido saneados, presos ou escorraçados. Não encontrava qualquer estímulo no ridículo trabalho do seu novo emprego, que lhe sabia a esmola. Havia dias em que não fazia nada. Isolava-se num mutismo obstinado. Mal respondia à mulher que, adivinhando o seu drama interior, tentava despertá-lo com perguntas, com referências à filha, com suges­tões para o futuro.

— Não dizes nada, querido?

— Que hei-de eu dizer?

— Precisamos de  ganhar  coragem — e o  silêncio é  depressivo.

— Tudo é depressivo nesta hora de abdicação.

— Porque usas tão feia palavra? Lembra-te de que temos uma filha!

— Se lembro...

E voltava ao silêncio, cada vez mais sucumbido.

Quando Rosa Coutinho chegou a Luanda, como presidente da Junta Governativa, a que alguns chamaram o «Quinteto de Cordas», o ex-governador não quis almoçar.

— Não comes?! — admirou-se a mulher.

— Não tenho apetite.

— Precisas de te alimentar...

— Já não preciso de nada.

— Conheces esse almirante?

— Conheço: foi bem escolhido para coveiro de Angola.

— Porque és tão pessimista?

— Há alguma razão para optimismos?!...

Os dias foram passando. Soube-se que os guerrilheiros da FNLA estavam a ocupar todo o Norte de Angola, que as nossas tropas abando­navam por ordem do almirante vermelho.

— Malvado! — rugia o ex-coronel do exército português com uma raiva concentrada.

Passava agora dias sem comer. Apenas fumava cigarros, acesos uns nos outros. Era cada vez mais difícil arrancar-lhe uma palavra.

— Estás doente? — quis saber a mulher, preocupada e compa­decida.

— Não.

— Porque não vais à Companhia?

— Não vale a pena.

— Não gosto de te ouvir falar assim — disse a mulher, tentando animá-lo. — Já passámos coisas piores... Lembras-te daquela emboscada no caminho para Noqui, entre a pista de aviação e a vila, quando tivemos de nos atirar para a valeta?

— Lembro.

— E escapámos vivos!

— Era aí que eu devia ter morrido... para não assistir a toda esta desgraça...

— Ouve...

Mas ele fugiu para o seu pequeno escritório e fechou a porta por dentro.

Uma hora mais tarde, ouviram-se dois tiros seguidos. Aos gritos da mulher apavorada acudiram os vizinhos, arrombaram a porta e foram encontrar o ex-governador com a cabeça esfacelada pelas balas da sua pistola de oficial do exército português.

            A cabeça tombara direita, de queixo  apoiado contra o tampo da secretária. E os seus olhos, que ainda ninguém fechara, pareciam fitar o retraio da filha, colocado à sua frente, ao lado da flâmula do seu distrito...

Lisboa, Junho de 1975 12.3

 Bilhete de Identidade

Naquele sábado de Fevereiro de 1974, o calor tórrido que asfixiava a cidade moçambicana da Beira não lograva entrada no bonito living da moradia dos Vouzelas, situada bem perto da catedral erguida há meio século pelo missionário franciscano, padre Rafael, que mais tarde, já bispo, projectou também a nova Catedral de Lourenço Marques, deixando a alegria da inauguração ao seu sucessor, cardeal Teodósio Gouveia. Uma boa instalação de ar condicionado, bem afinado pelo dono da casa que era engenheiro electrotécnico, assegurava um clima deliciosamente primaveril: 22 graus.

No entardecer, negras e pesadas nuvens acastelavam-se para os lados do farol, a anunciar uma dessas trovoadas da -estação das chuvas, que desabam sobre a cidade com a raiva feroz dum bombardeamento de artilharia pesada. E havia, naquela vivenda de meio luxo, uma visita: o padre Anselmo, que pertencia a uma congregação espanhola e, dias antes, tinha provocado um certo escândalo, impedindo que um grupo de escuteiros entrasse na sua igreja com a Bandeira Portuguesa. Era mesmo disso que se falava.

— A igreja não deve servir para manifestações políticas — afir­mava o missionário.

— Desculpe, senhor padre — interveio a senhora D. Guilhermïna Vouzela —, mas não se tratava de nenhuma manifestação política. É um velho costume dos escuteiros levarem a Bandeira Nacional, quando assis­tem à missa em grupo fardado.

— Os maus costumes corrigem-se — sentenciou severamente o padre Anselmo.

— Não vejo onde está o mau costume — teimou a dona da casa. — A Bandeira é um símbolo do nosso povo; e ao incliná-la no momento da elevação da Sagrada Hóstia, os escuteiros apenas exprimem o preito cristão de Portugal.

— Não é com gestos desses que se presta culto ao Deus de todos os homens — argumentou o padre. — Neste momento, há que respeitar os legítimos melindres do povo moçambicano...

— Moçambique é Portugal — declarou o engenheiro Vousela com certa energia.

— Nem todos assim pensam — lembrou o padre Anselmo. — E um missionário católico tem de atender a todos.

— Mesmo aos terroristas? — lançou o engenheiro com intenção.

— A que chama o senhor de terroristas? — contra-atacou o missio­nário. — Todos os povos têm direito à autodeterminação. E, perante o espanto do casal, acrescentou:

— Eu sei que já me consideram um adepto da Frelimo. Sei ao que me arrisco, quando afirmo que os portugueses estão a fazer uma guerra injusta. Mas o meu lugar é ao lado dos humildes e oprimidos...

Pouco depois da independência de Moçambique, Samora M achei começou a atacar a igreja católica, acusando-a de ter sido o suporte do colonialismo português. O padre Anselmo reagiu corajosamente numa das suas homilias. E recebeu uma intimação para abandonar o país no prazo de quarenta e oito horas.

Meses mais tarde, em fins de Outubro de 1975, foi ao aeroporto de Lisboa esperar um colega, que também regressava após muitos sofri­mentos e perseguições.

Mas o avião vinha atrasado e o padre Anselmo foi caminhando ao longo daquele parque de sucata humana, que então era o salão onde os refugiados do Ultramar Português aguardavam que lhes dessem destino.

Viu as crianças emagrecidas pela fome, famílias inteiras de guarda aos miseráveis salvados das economias de muitos anos de trabalho, mulheres dormitando abraçadas aos filhos pequeninos, homens de barba crescida olhando no vago, como que perdidos de si e do mundo — apenas uma pequena amostra da chamada descolonização exemplar. E nem se atrevia a tentar palavras de consolação naquela caverna de desespero quando, de repente, parou diante duma pobre mulher que tiritava no seu vestido de tobralco leve. Estava sozinha, silenciosa, com o rosto pálido apoiado nas mãos calejadas e de unhas sujas. Encontrou os seus olhos em que brilhava um lume de loucura. E avançou para ela, de mãos estendidas:

— Que grande surpresa, minha senhora! Mas ela recuou,

como perante um inimigo...

— O senhor padre está enganado: eu já não sou quem julga...

— Mas não é a esposa do sr. eng.° Vousela, a senhora Dona Guilhermina Vousela?!

— Não senhor.

— Quem é, então?

A interpelada fitou-o durante longos segundos; pareceu decidida a não dar qualquer resposta; mas, finalmente, tirou do seio um cartão manchado de suor e, oferecendo-o na mão estendida, intimou bruscamente:

— Leia!

           O missionário aceitou  o  documento  e leu-o. Era  um  bilhete de identidade passado pela Frelimo e dizia: «Guilhermïna Vousela — prostituta»

— Não é verdade! — balbuciou o missionário, estarrecido.

— É verdade, senhor padre; é inteiramente verdade, porque também me obrigaram a exercer a profissão. Não só com um ou dois homens, mas com todos os soldados dum quartel da Beira...

E como o sacerdote parecia interdito, com os lábios entreabertos sem lograr proferir palavra, aquela pobre mulher teve para ele uma espécie de sorriso de compaixão e perguntou-lhe:

— O senhor padre sempre era mesmo filiado na Frelimo?

— Para que o deseja saber?...

            — Para lhe agradecer a sua boa colaboração nisto a que cheguei...

— Ó minha senhora!...

— Já lhe disse que deixei de ser uma senhora! — gritou ela com raiva. E logo, dominando a voz até um sussurro trágico e terrível, continuou:

— Eu agora sou prostituta, senhor padre. Pros-ti-tu-ta! Mas deixe-me em paz, porque hoje não estou de serviço...

Atingido em pleno rosto pela tremenda chicotada, sentindo-se alvo dois olhares acusadores dos refugiados que assistiam à cena incrível, o padre Anselmo começou a afastar-se lentamente, cheio de pena, de arrependimento, de amargura e de remorso...

12.4 — Desempregado

Saiu, de olhos em brasa,

fugiu!

Fugiu de casa

e dos olhos famintos de seus filhos,

tão tristes, maltrapilhos...

Fugiu!

 À soleira da porta,

a mulher assistiu,

calada,

resignada,

como gelada e morta.

Não gritou.

Não chorou.

Não disse nada.

Assistiu

e ficou.

Era a hora febril do movimento,

quando abrem as lojas e os operários

desfilam, prisioneiros dos horários,

que os mandam trabalhar...

Triste como um suspiro

nas vagas do tormento,

aquele homem pensou:

«Já nada valho!

Nem o pão do meu lar,

nem o dom do trabalho,

nem o ar que respiro!

Grande inútil que eu sou!...»

Aos bordos pela rua,

caminhava de insólita maneira,

como um tonto...

E as mocinhas airosas, sorridentes,

e  os  marçanos passando, diligentes,

olhavam-no, sorriam e diziam:

«Vai na lua!

Que grande bebedeira!»

E pronto!

 

Vinha ao longe um Packard,

um Packard de alto preço,

enorme, niquelado, rebrilhante...

E, então, o homem murmurou baixinho:

«Eis o progresso!

Eis a vida que passa e eu não mereço!

Grande imbecil que eu sou!

Então, porque caminho?»

e parou.

O progresso passou. Um grito alucinante ...e para sempre o honrem se calou.

À soleira da porta,

a mulher daquele homem que morreu,

calada, resignada

como um triste animal

a quem já nada importa,

sentiu-se de repente muito mal...

• E dentro do seu ventre estremeceu o derradeiro filho do casal...

Escrevi estes versos há 24 anos, numa fase cruel de desemprego.

Volto a senti-los com redobrada amargura; porque mais uma vez ando à procura de emprego, agora mais velho, mais cansado, mais desiludido.

Respondi a alguns anúncios e ninguém me chamou, neste pequeno Portugal, onde há mais de meio milhão de desempregados e eu não tenho diploma de antifascista.

Escrevi a amigos do Brasil. Esse grande coração, que é o deputado Cunha Bueno, respondeu-me que fosse, que estaria à minha espera, mas emprego imediato não podia garantir. Considerei que não devia arriscar os meus últimos escudos na viagem, deixando a família às portas da fome, e não embarquei.

Por isso, neste frio Outono de 1976, continuo agarrado às apodreci­das tábuas desta jangada de náufragos. E venho agora de Algés, enchar­cado até aos ossos pela maior carga de água, que ainda vi cair em Por­tugal após o meu regresso de Angola.

Prometi esperar ali, na paragem dos autocarros, em frente do super­mercado «Expresso», - um amigo que me falou na eventual idade de algumas aulas num colégio particular.

Tenho alvará para todas as disciplinas do antigo Curso Comple­mentar de Letras. Ensinei-as em Angola, durante muitos anos, a brancos, pretos e mestiços, incluindo a alguns dos actuais governantes de Luanda.

Saía do meu modesto emprego na Câmara Municipal, onde comecei com o salário mensal de 1200SOO, e dava aulas, das 17.30 às 19.30 horas, no Colégio-Liceu D. João II. Depois ia jantar a casa (ao cirno da Rua Mouzinho de Albuquerque, já perto do Cemitério do Alto das Cruzes) e voltava ao mesmo colégio, para outras duas aulas, das 21 às 23 horas. Nestas andanças o meu percurso diário (sempre a pé) nunca -era inferior a dez quilómetros.

Da Câmara Municipal transitei para a Junta de Exportação e, mais tarde, para a Companhia de Petróleos de Angola. Mas sempre, ao horário da minha actividade principal acrescentei o ensino e uma assídua cola­boração para o jornal A Província de Angola. E ainda consegui arranjar tempo para publicar duas dúzias de livros, quase todos de temática ango­lana. Posso afirmar sem receio de exagero, que, ao longo de 38 anos vividos no que então era a maior província de Portugal, trabalhei sempre à cadência de 12 horas por dia.

Agora, nisto que resta de Portugal, com todo o tempo livre e tanta comédia e tragédia à minha volta, vivo numa tensão angustiada que me não deixa escrever mais do que lamúrias de homem findo. Tenho o espírito ressequido como as vides cortadas da cepa e abandonadas às neves do Inverno.

Sei que esta terrível inibição só me passará, quando puder contar com algum salário certo ao fim do mês, que afaste da porta de minha casa a raivosa cadela da fome. Por isso aguentei a pé firme a bruta chu­vada desta tarde, junto à paragem dos autocarros, em Algés.

Uma ou duas vezes, quando as cordas da água tocadas pelo vento me vergastavam com mais fúria, ainda corri a abrigar-me no alpendre do supermercado. Mas logo voltava à paragem, não fosse o meu amigo passar sem me ver.

Nesta cisma, acabei por não mais sair do combinado local de encon­tro, numa espécie de raivoso desafio à chuva, que já me não podia molhar mais do que estava. O que estava era mais fria, a malvada! Vinha oblí­qua contra mim, em bátegas geladas e fustigantes como um duche para loucos.

Louco, eu ainda não estava. Estava só profundamente infeliz. Refor­mado sem reforma (que também a pensão de reforma me detiveram em Luanda pelo crime de não ser comunista), preciso aflitivamente de tra­balhar. Para ganhar o pão de cada dia, meu e da família, e para recuperar a confiança em mim próprio.

E ali me via perdido nos arredores da grande Lisboa, abandonado e gelado no meio duma chuva de temporal, já convencido de que o meu amigo se esquecera do combinado.

Afinal, o meu amigo chegou, mas para me dizer que a vaga de filo­sofia, em que pensara, já estava preenchida.

— Porque não vai você ao FRAUL? — acrescentou, ao ler-me nos olhos o reflexo inconfundível das grandes amarguras. — Não conhece o dr. Joaquim Mendes?

— Pertencemos ambos à Assembleia Legislativa e trabalhámos juntos na Comissão de Redacção e Legislação...

— Pois, então, procure-o. Ele está a lutar bravamente pelos que vieram do Ultramar.

Talvez vá falar com esse colega nos trabalhos dum pequeno par­lamento angolano, onde ambos nos batemos pela resolução dos problemas de uma Angola em progresso espectacular.

Talvez vá e talvez não vá...

Vivo numa hora de grande depressão e profunda angústia. Sinto-me sem iniciativa e sem coragem. Sinto, acima de tudo, que os responsáveis pela desgraça que atingiu doze milhões de brancos, pretos e mestiços do Ultramar português, e condenou à fome as populações deste pequeno rectângulo europeu, e destruiu completamente esta Pátria quase milenar — esses ignóbeis traidores não podem ficar impunes.

           Pela minha parte, estou velho e cansado. Apetece-me desistir desta luta e mandar tudo e todos para o inferno. Trabalhei em Angola durante cerca de quarenta anos, à cadência de 12 horas por dia. Utilizei as minhas horas de descanso a ensinar angolanos de todas as cores. Publiquei duas dúzias de livros, quase todos sobre temas de Angola. Defendi essa terra o melhor que soube e pude, porque sempre previ que a independência de Angola sob o signo da ONU daria o resultado que hoje está à vista de todos. Investi em Luanda tudo o que lá ganhei, mais o produto de uma pequena herança e até algum dinheiro dos meus vencimentos de férias.

E aqui ando agora, nesta bonita e preguiçosa Lisboa, à procura de um emprego em que ganhe que bonde para o pão de cada dia, meu e da minha família.

Mas não há nesta terra, um emprego para mim. E os que entregaram a russos e cubanos, entre biliões de contos de valores portugueses de Angola, todas as minhas economias de quarenta anos de trabalho, dizem que fui um «explorador».

É-me muito bem feito!

Lisboa, Novembro de 1976.

12.5 — O começo e o fim

Era a mais nova de uma família de oito filhos: três rapazes e cinco raparigas, sem contar com os dois rapazes que não vingaram nos três primeiros meses de vida.

Já não conheceu o pai, que morreu quarenta e sete dias antes de ela nascer. Por isso mesmo, a tia Adélia, bem casada e apenas com duas meninas, uma delas já crescidota, teve pena da irmã viúva e ofe­receu-se para tomar conta da sobrinha caçula, logo que estivesse des­mamada.

Aos dezassete anos, contra a vontade de toda a família, casou com o Chico Monteiro e nenhum deles descansou enquanto não embarcaram para Luanda, onde ela tinha um irmão bem colocado, embora honesto demais para estar rico, e do género complicadinho nisto de abrir caminho à família. Mas a verdade é que os recebeu em sua casa e os ajudou a demarcar 500 hectares de boa terra de café, nas margens do rio Luége, a poucos quilómetros da vila do Quitexe.

Para lá partiu o marido, logo que pôde, com o desígnio de erguer uma casita, onde o casal se pudesse juntar a breve prazo, com o filho mais novo e a primeira filha, que já andava na escola infantil.

Talvez porque fosse fácil de contentar com tudo, menos com a prolongada ausência da mulher, o Chico Monteiro não tardou muito a escrever que já tinham casa e que ela podia partir.

— Eu, por mim, vou no primeiro transporte que me leve para aque­las bandas — disse ela ao irmão. — Mas, antes de levar os filhos, gostava de ver primeiro como é...

— Claro que não deves levar os filhos por enquanto — aconselhou ele. — Nem tu precisas de ir, enquanto lá não tiveres aceitáveis condi­ções de vida. Ou não te sentes bem nesta casa?...

— Bem sabes que me sinto bem em tua casa — declarou ela em tom de ofendida com a insinuação. — Mas o meu lugar é junto de meu marido, principalmente agora que nos vamos meter na aventura do café. Quanto aos miúdos, vou deixar-tos ainda algum tempo, se não te importas. Mais tarde, venho buscá-los...

— Mais tarde poderás levar o pequenito — rectificou o irmão. — Não te esqueças de que a menina já anda na escola. E, que me conste, não há disso perto da tua chitaca...

— É verdade! — murmurou ela — Há a questão da escola...

— Não há questão nenhuma — decidiu o dono da casa. — Tu vais quando quiseres, porque teu marido tem todo o direito de te querer junto dele. Quando te sentires verdadeiramente instalada, vens buscar o Carlitos. E a Ló vive connosco durante as aulas e vai passar as férias com os pais. Certo?

— Tem de ser... — disse ela no seu modo resignado.

Partiu para a chitaca ao amanhecer de um dia de meados de Janeiro, na carrinha do sr. Anacleto, que também tinha uma demarcação à beira do Luége. E dois meses mais tarde, voltou, para levar com ela o filho mais novo.

— Então, que tal a casa? — perguntou-lhe a cunhada.

— É uma cubatita — respondeu ela, passando logo a falar de outra coisa.

Mas a cunhada não ligou importância à definição. Na Luanda de 1955, até os ricos moradores do Bairro do Café gostavam de chamar cubatas às suas luxuosas vivendas...

Decorreram outros meses. E, numa tarde morrinhenta de cacimbo, a Ló veio da Escola Infantil no grande automóvel dum médico que também lá trazia uma das filhas. Ao entregar a menina, perguntou ao tio dela se sabia como estava a viver a irmã naqueles sertões do Uíge.

— Sei que teimaram em embarcar na aventura de começar uma plantação de café, a uns vinte quilómetros do Quitexe, sem um pataco de economias. O Chico partiu primeiro, para construir uma casita...

— Sabe como é essa casita?

— ?!

            — É uma cubata, meu amigo, uma cubata tão miserável    como a do  preto mais matumbo! — informou o médico, quase a gritar. — Sua irmã está a viver em condições incríveis. Cose pão e cria galinhas para os pretos. Faz costura para os pretos. Trabalha mais do que o preto mais trabalhador daquela área. Ela e o marido agarram-se a tudo para sobre­viver, enquanto não colhem os primeiros sacos de café. E eu compreen­do-os... Mas olhe que sua irmã e o menino... enfim: o meu amigo lá sabe...

— Eu não sabia nada do que me está a contar. Meu cunhado escre­veu a dizer que já tinham casa. Pensei que fosse coisa capaz. Vivi sempre em Luanda, mas dizem-me que lá para o Uíge, com a alta do café, já se não vive mal...

          — Vá ver! — recomendou o médico, quase zangado. E ele foi. E,  depois  de observar toda aquela  miséria, desatou  a berrar com o cunhado:

— Então, é a isto que você chama casa?!

— Foi o que pude construir com as minhas próprias mãos, traba­lhando de dia e de noite.

— Porque não contratou um pedreiro?

— Porque não tinha com que lhe pagar.

— Pedia um empréstimo...

— A quem?! Eu sei que a você também lhe não sobra...

— Minha irmã e o pequenito estavam debaixo de telha. Deixava-os estar onde estavam, enquanto não tivesse aqui melhores condições de vida.

— E eu?! — fez o homem com um riso amargo — Acha que se pode viver muito tempo nestes ermos, sem a companhia da mulher com quem casámos?!...

O visitante ficou de olhos arregalados, sem resposta a dar.

E, precisamente nesse momento, a irmã chamava para o almoço, que era no chamado «salão nobre»: uma rica sombra debaixo de uma frondosa mulemba que era o principal apoio da cubata.

No meio de toda aquela pobreza, a caldeirada de cabrito estava de gritos. E o Paulo (assim se chamava o cunhado do Chico Monteiro) reparou que a irmã acudia pelo marido e não tinha perdido o seu feitio alegre.

— Deixa lá, que já foi pior! — disse ela para o irmão. — Nas últimas chuvas, esta palhota metia água por todos os lados. Fazia frio de gelar. E um dia, ao levantar-me, apanhei um susto danado: ao pé da cama do menino, encontrei uma cobra enrolada dentro das botas do pai. Nem quero que me lembre!...

— Voltas comigo para minha casa — decidiu o Paulo.

— Não volto nada. O meu lugar é aqui.

— Nesse caso, levo ao menos o menino.

— O menino ainda precisa dos cuidados da mãe. E, como disse, o pior já passou. Pena foi que não trouxesses a Ló, para a vermos...

— Não cabia no carro do Machado, em que vim. E, com toda a franqueza, também não quis que se afligisse com a miséria em que vivem os pais.

— É assim que têm começado quase todos os pequenos agricultores em Angola — disse o Chico Monteiro, saindo do seu mutismo. — Daqui a dois anos já colheremos os nossos primeiros sacos de café.

E essa primeira colheita chegou. E outras lhe sucederam, cada vez maiores. A cubata de pau-a-pique e cobertura de capim foi substituída por uma casa de alvenaria, ampla e confortável.

Já viviam bem quando, em Março de 1961, fugiram a tempo para Luanda, antes que os turras lhe ocupassem a fazenda, já com uma produ­ção de mais de cem sacos de café por ano.

O Chico Monteiro voltou ao que era seu, logo que a tropa completou a reocupação daquela área. Mas sua mulher passou então a viver em Luanda, para que os filhos pudessem estudar.

Alguns anos mais tarde, o Chico Monteiro morreu. Mas a família continuou sem dificuldades, porque a fazenda, mesmo arrendada, dava amplamente para todos viverem bem. Toda a Angola estava num pro­gresso espectacular, que naturalmente se reflectia nos seus habitantes.

E veio o que ninguém podia imaginar, nem admitir, nem conceber: — veio a traição de alguns portugueses, que sabiam que a vitória estava à vista e receberam de estrangeiros a infame tarefa de a evitar...

Aquela mulher, ainda nova e já com netos, teve de regressar a Lisboa, só com a roupa que trazia vestida.

Desta vez, a sua estupenda alegria não resistiu ao vendaval terrí­vel da maior tragédia de toda a história de Portugal.

E vive agora por aí, sabe Deus como, triste e apagada como a lareira de uma casa que ruiu.

Quase não come. Quase não fala. Quando tentam acalmá-la ou simplesmente lhe perguntam como tem passado, fica de olhos no longe, a olhar para ontem, talvez a pensar na sua fazenda de café afogada pelo capim...  E,  misturando português e  quimbundo,  como  outrora na sua chitaca de à-beira-Luége, murmura em voz sumida, sibilada, raivosa: — Capitãezinhos da tuge!...

Lisboa, Abril de 1976 12.6 — O grande «espada»

Foi uma espantação, quando entrei na Rua de S. Luís, pilotando um grande «espada» que não tem igual na Metrópole.

É um Corvette-Stingway dos mais Luxuosos e egoístas, porque só tem dois lugares. Com os inconvenientes da sua legenda de rico para um homem repentinamente esbulhado de todas as economias de longos anos de trabalho, tem uma vantagem muito apreciável nestes tempos de olho vê, pé vai e mão pilha: não é fácil de roubar.

E não só porque a chave de ignição bloqueia o volante, como acon­tece em muitos outros carros: é principalmente porque a sua aparelha­gem electrónica inclui vários dispositivos de segurança que só os inicia­dos sabem manobrar. Quem os não conheça não consegue nada deste automóvel.

De que me serve agora, que não tenho dinheiro para a gasolina?

Pois serve para demonstrar a mim próprio que não tenho culpa da miséria que me acontece. E por isso é agora que mais gosto dele. Quando o comprei podia comprá-lo. E paguei-o a pronto.

Embarquei para Angola com umas centenas de escudos na carteira. Mas encontrei aquela terra na fase do após-guerra, quando o governador Silva Carvalho ali iniciava uma época de grande progresso.

Comecei como caixeiro viajante da firma Cirilo & Irmão. Era solteiro e recatado; vivia com o mínimo possível e economizei quanto pude. Percorri Angola inteira, dormi muita vez na estrada dentro de viaturas atoladas na lama, andei muitos quilómetros a pé, de noite e através do capim, com milhares de mosquitos a fartarem-se do meu sangue.

Quando o meu depósito no Banco de Angola atingiu os cinquenta contos, arranjei umas representações, despedi-me da firma e passei a trabalhar ainda mais. Durante o dia, fazia o giro dos clientes, quase sem­pre a butes e às vezes de machibombo, porque ainda não podia pensar nem mesmo num desses feios Volkswagens que então começavam a aparecer em Luanda e se vendiam a 30 contos, se a memória me não falha.

Aos trinta anos casei com uma boa moça, que me saiu companheira fiel e dona de casa como já se não fabricam. Dois anos mais tarde montei a minha primeira lojeca de acessórios de automóvel. Acertei no negócio porque, logo a seguir, começou a crescer rapidamente o parque automó­vel da província. E eu não tinha mãos a medir...

Em pagamento de uma dívida, recebi uns terrenos, à razão de 4$00 por metro quadrado. Vendi-os cinco anos mais tarde, a 200SOO, quando ali se começaram a construir as primeiras vivendas do Bairro de Alvalade. E comprei o meu primeiro carrito: um Cônsul com 25 mil quilómetros que era o carro de serviço do gerente da Robert Hudson. E também se começou a beber vinho em minha casa.

Daí para a frente eu estava lançado e tudo passou a correr sobre esferas. Sempre fui sério nos meus negócios, mas ganhei muito dinheiro. Construí uma boa moradia no Bairro de Alvalade, junto da piscina e fiz outra compra de terrenos, também muito feliz.

Ao abrir de 1974, a compra do Corvette já foi para mim uma coisa trivial. Tinha um negócio próspero, pessoal bom a quem pagava muito bem e um confortável depósito bancário. Bebia uísque Whíte Horse, adorava as gambas grelhadas do Clube Naval e julgava-me com um futuro completamente assegurado.

Enganava-me redondamente, porque os salteadores da descolonização exemplar já estavam ao virar da esquina...

Deu-se a catástrofe, fartei-me de jurar que não saía de Angola, mas os factos são mais fortes do que as palavras e tive de fugir, como tantos outros. De tudo o que era meu e já valia para cima de cem mil contos, salvei o Corvette.

A primeira vez que o encostei ao passeio, ali na Rua de S. Luís, em Oeiras, quando aqui cheguei e andava à procura de qualquer buraco onde me meter com a família, logo ouvi um tipo de barbas, que rosnava:

— Fascista!...

— Isso é comigo? — perguntei.

— Com quem há-de ser?

— Então vá bardamerda. Já!

E ele foi, porque logo se esgueirou por um carreiro de emergência, que vai dar à sub-estação de energia eléctrica.

Fui sempre um homem paciente mas, talvez por isso mesmo, acabou-se-me a reserva de paciência. Coragem para a vida, ainda tenho, porque não aceito morrer de fome. Mas já não consigo tolerar certas gracinhas de quem nos pretende julgar, a nós, refugiados, sem conhecer patavina do que foi a nossa vida em Angola. Nem sequer sabem que estão a caminho da fome, agora que já não existe o Ultramar para ires acudir com ajudas de toda a espécie. Mas não tardará muito que o apren­dam à sua custa...

Quem me conheceu nos últimos tempos de Angola, pasma de me ver servir à mesa, neste pequeno snack-bar em que me aventurei com alguns amigos. Pasmam, porque me conheceram já no tempo das vacas gordas. Ao princípio, também nessa vasta terra cumpri tarefas ainda mais duras.

O trabalho nunca é vergonha. E nesta fileira de estabelecimentos, os homens que ajudaram a construir a Angola moderna e lá deixaram tanta coisa feita, não podem envergonhar-se dos calos nas mãos.

Mas não gostamos que nos humilhem. Não aceitamos lições de gente que se gasta em comícios, greves e plenários. Ainda hoje, um destes calcinhas, presumidos de espertalhões, me ia fazendo perder a calma.

Sentou-se a uma das mesas a pedir um copo de cerveja com um prego no pão.

Servi-o como podia, enquanto ele circundava os olhos pelo estabele­cimento, com ares de apreciador.

— Isto é novo, não é? — perguntou ao cabo da inspecção.

— Abrimos há três dias.

— Não está mau — sentenciou com superioridade. — Sabe de quem é aquele estupendo «espada» estacionado ali na S. Luís?

— É meu.

— É seu?! — gritou de puro espanto.

— Foi a única coisa que trouxe de Angola e está à venda...

— Quanto custa?

— O que me custou: 750 contos.

— A prestações, dou-lhe 75.

— E eu dou-lhe dois murros no focinho, se continua a escarnecer da desgraça!

Os meus olhos deviam chispar lume, porque o malandrote recuou, ergueu-se e tentou fugir. Mas eu deitei-lhe mão rija ao braço franzino.

— Calma, meu filho! Tem de pagar primeiro... E o homem  pagou, tão trémulo  de  medo,  que acabei por  sentir pena dele.

Porque ando assim tão irritadiço?!...

Junho de 1975.

 

 

12.7 — Cícero e a velha Senhora

Qualquer pessoa de média cultura conhece aquela famosa impreca­ção do Cícero: «quousque tandem, Catilirta, abuteris patientia nostra?» — até quando Catilina, abusarás da nossa paciência?

Mas não é essa a passagem mais impressionante dessa espantosa intervenção no Senado Romano. Depois de enfrentar assim um dos ho­mens mais poderosos de Roma, o grande orador desmascarou toda a manobra conspiratória e, ao terminar o seu tremendo libelo acusatório, apontou para o conspirador um dedo minaz e, virando-se para os sena­dores, com a face irada e a voz trovejante, bradou:

«E esse homem teve o atrevimento de entrar nesta Casa dos Defensores do Povo Romano. Está no meio de nós, como o lobo entre cordeiros. Nas cavernas do seu cérebro criminoso, já congemina os pormenores da sua negra traição? Por debaixo da toga, aperta o punhal ávido do nosso sangue.

«Esse homem está neste Senado. E está vivo!»

Isto passou-se mais de dois mil anos, no ambiente austero do Senado Romano.

Há duas semanas, um amigo recebeu de Maputo (ex-Lourenço Marques) um apelo aflitivo de certa senhora, sua conhecida: «Que fosse esperá-la ao Aeroporto de Lisboa, no dia tantos de tal, à hora da chegada do avião dos TAP, pois viajava sem um tostão».

O meu amigo foi ao Aeroporto no seu grande carro Ford, esperou duas horas pelo avião, que chegava atrasado, conseguiu encontrar a sua conhecida de Lourenço Marques e deu-lhe alimentação e alojamento em casa de sua família, na formosa vila de Oeïras.

Dias mais tarde, passava eu, a pé e debaixo de chuva, para apanhar o comboio, quando esse meu bom vizinho me ofereceu boleia no seu automóvel.

Entrei e deparei com uma velhinha, magra e pequena, de fino rosto apergaminhado, que deveria ter sido muito belo na juventude.

— A senhora Dona X..., de quem lhe falei há dias — apresentou o vizinho, com simplicidade.

— Como estão as coisas em Moçambique? — perguntei depois, já com o Ford a rodar nas proximidades do Estádio do Jamor.

— Muito mal! — disse ela. — Eu consegui fugir...

— A senhora fugiu?

— Exactamente. E tive muita sorte. Uma sorte que a maior parte não consegue.

— Conte!

— Desculpe, mas não gosto de falar nisso. É tudo um horror!

— Deixou lá família?

— Deixei, infelizmente. Um filho, recentemente casado, que me ajudou nesta aventura, mas ainda quer ver se pode salvar alguma coisa do que lá tem... Sabe? Eu vim com passagem Beira-Lisboa-Beira.

— Quer dizer que vai regressar a Moçambique?

— Quero dizer que os enganei, àqueles patifes! O Samora Machel quer segurar lá os brancos, para os humilhar e torturar...

— Não será tanto assim... Ele precisa dos brancos.

— Pote não é tanto assim, não: é muito mais do que eu lhe posso dizer, porque há cenas que uma senhora não conta. O presidente da Frelimo, para ele, tem tudo quanto quer e pouco se importa da miséria do povo. A sua grande distracção é humilhar os portugueses que lá fica­ram. Sabe o que ele fez a um médico com quem trabalhou, como ajudante de enfermeiro, antes de -entrar no terrorismo?

— A senhora contará...

— Foi ao hospital e assistiu a toda a operação que esse médico estava a fazer. No fim, depois de levarem o doente, o operador tirou as luvas, desinfectou as mãos e encaminhou-se para o presidente, para o cumprimentar.

— Tu ainda não acabaste o teu serviço! — observou arrogante­mente Samora Machel, conservando as mãos nos bolsos.

  não  tenho hoje  mais operações —  esclareceu o cirurgião.

— Mas ainda não limpaste a sala. Toca a limpar, anda!

«E, enquanto o médico cumpria, esmerando-se naquela tarefa de limpeza como se fosse a mais melindrosa das operações, o Samora malandro ria consoladamente, saboreando o uisque que lhe tinham tra­zido, com rodinhas de lagosta. Mas não riu por muito tempo. O médico, que era então o melhor cirurgião do Hospital Central de Lourenço Marques...»

— De Maputo — emendei eu.

— ...Eu digo lá essa porcaria! Para mim, a capital de Moçambique continua a chamar-se Lourenço Marques... Pois, como ia dizendo, ao acabar o tal serviço da limpeza, o cirurgião guardou o balde e o esfregão, voltou-se para o presidente da República Popular de Moçambique e disse-Ihe com toda a calma:

— Repara neste trabalhinho, Machel. E confessa que ficou muito melhor do que no tempo em que tu o fazias!...

           O presidente engasgou-se com a sua golada de uísque, tossiu aflitivamente durante alguns segundos, espirrou moncos e lagosta pelo nariz e só daí a um grande bocado é que desatou a berrar esganicadamente:

— Estás despedido! Ficas já expulso de Moçambique! Tens 24 horas para ir embora!

— Não é preciso tanto tempo — respondeu-lhe o branco com um riso escarninho. — Já tenho a mala feita.

«E o bandido amouchou — concluiu a velha senhora, com ar de grande satisfação».

— Mas isso aconteceu mesmo? — perguntei, só para a continuar a ouvir.

— Claro que sim — confirmou quase ofendida. — Contou-mo quem assistiu. E acontece muito pior. O senhor sabe que as mulheres brancas são obrigadas a trabalhar, de seios nus, nas «machambas» do povo? O senhor sabe quantas foram arroladas como prostitutas, apesar de casa­das e irrepreensíveis? O senhor sabe...

— Deixe lá, minha senhora!aconselhei, notando a sua crescente irritação. — Compreendo o seu ressentimento contra essa gente...

— Pois compreende mal — disse ela, aind'3 nervosa. — O meu res­sentimento não é contra os pretos: é contra certos brancos portugueses. Os grandes responsáveis estão aqui, em Portugal!

Caiu entre nós um doloroso silêncio. E já entrávamos em Lisboa, quando ela retomou a palavra:

— Sabe o senhor que nunca fui capaz de matar uma galinha? Não posso ver sangue. Não quero mal a ninguém. Mas agora... Quando penso nesses cobardes, nesses traidores...

— Compreendo — intercalei, tentando acalmá-la. Mas talvez nem me tenha ouvido. Continuou, de olhos perdidos na lonjura de outros horizontes, com uma voz que parecia molhada em fel:

— Estragaram tudo... Bandearam-se com os nossos piores inimi­gos... Ajudaram a matar os seus irmãos e os seus camaradas de armas... Desgraçaram milhões de portugueses brancos, pretos e mulatos... Des­truíram uma grande e nobre nação...

E continuam vivos!...

Assim se repetiu, a dois mil anos de distância no tempo, pela boca de uma velhinha que nunca leu Cícero, a frase mais pungente, proferida pelo maior orador de Roma, antes do nascimento de Cristo.

Lisboa, Fevereiro de 1976.

 

12.8 — Na Rua de Belém, em Oeiras

Ao findar do ano louco de 1975 — tempo português, quase todo dominado pela perigosa demência de Vasco Gonçalves e da sua «muralha de aço», — começaram a aparecer estranhas criaturas ©m Oeiras, nesta Rua de Belém, que mais parece um pequeno largo.

Agasalhadas em velhas gabardines ou sobretudos antiquados, tossicando sob as agulhas geladas do Inverno que há longos anos desconhe­ciam, caminhavam ao longo do passeio fronteiro às lojas por arrendar. Passeavam num passo curto, rápido e febril, bem batido no chão de para­lelepípedos, não para encurtar distâncias mas somente para aquecer os pés enregelados.

Com o ar inconfundível dos exilados, o rosto amarelento dos impaludados crónicos, os olhos amargos de quem viu o ódio e a morte, pare­ciam possuídos de uma estranha timidez, mantendo-se arredios dos naturais da terra, como elefantes velhos, que se afastam da manada quando sentem a morte próxima.

Mas, com o correr dos dias, começaram a acontecer imprevistos reencontros.

— Você não é o Viegas, de Santa Comba?

— Até ver...

— Ó alma do diabo, então já me não conhece?! Eu sou o Moreira, da Petrangol!

Apertaram-se num abraço à antiga portuguesa, desses que incluem palmadinhas nas costas e repetidas doses de mútua contemplação, com os olhos nos olhos e o rosto iluminado por uma grande satisfação interior.

— Grande sacana, que já nem conheces os amigos! — disse o mais antigo na rua, em benigna reprimenda.

— Já nem a mim me reconheço — ponderou o Viegas, retomando o ar sério.

— Pois é... — concordou o outro, vagamente.— Lixaram-nos ávida... Quando chegaste?

— Anteontem, de manhã.

— E onde estás agora?

— Em casa duns parentes, ali em Porto Salvo. Hoje, meti-me no machibombo...

— Aqui não se diz machibombo — emendou o Moreira.

— Sei lá como se diz! — refilou o recém-chegado. — Meti-me nessa carrinhola e vim cheirar estes sítios, que tenho de pensar no futuro.

— Lixaram-nos a vida — repetiu o Moreira, baixando os olhos para o chão.

— Lixaram toda a gente — ampliou o Viegas — Rebentaram com Portugal!

E, enquanto o>s dois caíam num silêncio confrangido, da loja de pronto a vestir saiu um homem alto e forte, de gabardine quase nova, muito bem engravatado, com o guarda-chuva pendurado no braço esquerdo, como um senhor do antigamente. Avançou resoluto para os dois e, com a mão estendida para os cumprimentos da praxe, afectando grande cerimónia, como um diplomata que exibe as suas credenciais, apresen­tou-se:

— Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal...

— O meu primo José Meires corrigiu serenamente o Moreira. — Este ainda consegue brincar...

— É o melhor que se pode fazer nas presentes circunstâncias — desculpou-se o adventício. — E, muito a sério, bem falta nos faz o mar­quês de Pombal, agora que o terramoto foi muito maior que o de 1755.

— Já não há marquês que nos possa valer. Estamos lançados aos bichos — reforçou o Moreira, compenetradamente. Depois apresentou o parceiro:

— Não conheces o Viegas? Chegou anteontem de Luanda.

— Muito prazer! — fez o Meires, correspondendo ao cumprimento. — Também deu à costa?

— Não tive outro remédio. Angola acabou para os portugueses. Que vão agora para lá os que a venderam aos russos!

— Esses não largam daqui, enquanto se não acabar o ouro da «pesada herança» — afirmou o Meires.

— Bandalhos! — definiu rudemente o Moreira, disparando a palavra como se fosse uma bala.

— «Bandalhos» ainda representa um elogio para os autores de tan­tos crimes — declarou um sujeito de meia idade, que entretanto se aproximara, com uma barbicha rala no queixo magro e o pescoço aba­fado no cachecol de fabrico doméstico. — Venderam-nos como a rezes de talho. Desgraçaram-nos a todos... E eu não aguento este frio!

— Temos de aguentar! — berrou o Viegas com uma bruta patada no empedrado do passeio. — Olhem para estas lojas com escritos!

— Pois olhamos... — disse o que brincava a marquês de Pombal. — Olhamos todos, a pensar no mesmo: arrendar um pedaço de chão coberto, tentar qualquer negócio, recomeçar a vida. Mas  onde está o dinheiro?

— Eu consegui trazer parte do recheio da minha oficina — infor­mou o Viegas.

— E dizem que o IARN concede empréstimos — acrescentou outro.

— Dizem...      arremedou   o   Meires,   terrivelmente   escarninho.

— Bem! — declarou o Viegas com certo desabrimento — Se desis­tem de viver, aconselho a ponte Salazar...

— Cautela, desgraçado! — uivou o Meires. — Agora chama-se ponte 25 de Abril...

— Ou isso... concordou calmamente o invectivado. — Mas seja qual for o seu nome, um saltinho dali para o Tejo resolve tudo em defini­tivo. De acordo?...

Ninguém lhe respondeu.

O grupo foi engrossando com novos «retornados», que acudiam a saber notícias pela boca do último que chegara: um desses bravos camionistas que sabiam de cor todas as estradas de Angola; o guarda--livros de uma grande empresa de Luanda, que magicava na possibilidade de abrir um pequeno restaurante; um agente de viagens de Lourenço Marques, que andava a instalar as estantes para uma papelaria; um casal ainda jovem, que vinha do IARN, onde estivera durante cinco horas, numa bicha de quilómetros, à espera das senhas de alimentação.

E a conversa generalizou-se. Histórias de arrepiar sobre o êxodo de Angola. Ansiosas interrogações sobre o futuro. Palavras de incontível raiva contra os responsáveis pela grande catástrofe...

Decorreu quase um ano. Naquela esquina que era um dos pontos de reunião dos «retornados» da zona, o guarda-livros sempre abriu o seu sonhado restaurante. O dono da papelaria, trabalhando no duro com a mulher e as filhas, revelou-se um mestre na conquista da clientela e já não diz que o negócio não dá para pagar a renda do estabelecimento. O Viegas começou por pequenas reparações nas viaturas dos residentes mais próximos, conseguiu algumas ferramentas a crédito, readquiriu o seu -ar jovial e afirma «que ainda havemos de ensinar a estes calaceirões de Lisboa como é que se trabalha». Na Casa das Ferragens trabalham agora três gerações de brancos nascidos em Moçambique. O Meires está para os lados de Santarém, a tomar conta duma quintarola onde cria coelhos e galinhas. E há também uns chineses vindos de Moçambique que cozinham bons pitéus, e a casa dos churrascos, e o homem da barbicha rala, que era um ricaço em Luanda e agora serve à mesa no seu snack-bar com salão de bilhares anexo.

Na Rua de Belém, à Figueirinha, em Oeiras, já não há nenhuma loja com escritos...

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