GUERRA CIVIL
8.1—Aquilo é um regabofe, meus filhos!
Bem contra a sua vontade, por exigência de Holden Roberto e Jonas Savimbi, que não podiam tolerar a descarada parcialidade do Almirante Vermelho a favor do MPLA, o general Costa Gomes substituiu o seu amigo e correligionário pelo general de Aviação, Silva Cardoso, que muitos angolanos consideraram um Homem honesto e um Militar corajoso.
Mas o Baldaque, cada vez mais azedo, protestou imediatamente contra tal opinião, que era também a minha.
— Deixa-te de ilusões, menino! Para ser melhor que o Rosa Coutinho não é preciso muito. Mas -este também obedece aos traidores de Lisboa e mantém a nossa tropa na triste figura de assistir friamente às maiores infâmias e crueldades. É ou não é verdade?
E o seu olhar era tão furioso que nem sequer tentei defender o novo alto comissário. Fosse como fosse, o mal estava feito. E apagara-se definitivamente a última faúlha de esperança, acesa pelas primeiras declarações do Governo de Transição.
O processo da imensa tragédia de Angola estava já na sua linha irreversível.
O Rosa Amaral, que voltava de uma rápida visita à Metrópole, vinha profundamente desanimado.
— Aquilo é um regabofe, meus filhos! — anunciou, sintético e decisivo. — Depois do 12 de Março, que foi uma inventona da extrema-esquerda, os comunistas de Álvaro Cunhal apoderaram-se de quase todos os postos-chave. O general Vasco Gonçalves é um pau-mandado nas mãos deles. E o Portugal dos portugueses vai alegremente para o fundo, gritando por mais dinheiro e menos trabalho, já!
— É o habitual fenómeno da descompressão — comentou o Sousa Quevedo, que não mudava facilmente de ideias.
— É a descompressão do raio que os parta a todos! — vociferou o Baldaque, agora quase sempre em maré de mau humor. — Em poucos meses, rebentaram com uma nação de oito séculos de independência. Enquanto durar o dinheiro deixado pelo regime deposto, brincam às cigarras cantadeiras. Quando a «pesada herança» acabar, o povo acorda para a miséria a que o arrastaram e é capaz de pedir a conta dos festejos...
— Cala-te para aí, coruja de mau agouro! — increpou o Santos Gouveia.
— Bem... — fez o Rosa Amaral, na função de apaziguador — E como vai isto por cá?
— Malíssimo! — uivou o Baldaque. — No caminho rectilínio para a guerra civil. Os Movimentos, que se guerrearam nas matas, não se desabituam assim tão depressa. E agora vai ser muito pior.
A vaga de pessimismo ia engrossando e alastrando. Também havia os que ainda teimavam em acreditar numa independência real e decente, para todos os homens decentes. E eu era um desses. Mas o vendaval dos factos tornava-se demasiado violento para que lhe pudesse resistir por muito mais tempo essa mimosa flor da esperança que é, na alma do homem, uma saudade de Deus.
Um dos brutos pontapés da nova realidade angolana, recebi-o eu em pleno peito quando, num desses dias, fui abraçar o nosso director, que regressava depois de saber que o Almirante Vermelho fora substituído.
Sem lisonjas, que as não sei usar, sempre admirei esse rapaz, novo e dinâmico, que alguns dos meus colegas tratam por tu, porque andaram com ele no Liceu Salvador Correia. Herdou o jornal do grande jornalista e grande português, que foi António Correia de Freitas, e tinha sabido honrar a tradição do mais prestigiado órgão da imprensa angolana, mantendo-o na mesma linha de rumo e melhorando-o substancialmente no apetrechamento técnico, no aspecto gráfico e na rentabilidade económica.
Foi por isso com muita e muito sincera alegria que o abracei efusivamente. O espanto veio depois, quando ele me apresentou um preto, que estava sentado num dos maples do gabinete, fardado de camuflado e com uma pistola metralhadora em cima dos joelhos.
— Este é o comandante Cabango — disse com a maior serenidade. Apertei a mão do guerrilheiro mas, logo que pude falar a sós com o director, perguntei-lhe o que significava aquilo.
— Logo, explicarei a todos. Vou convocar
uma reunião para esta tarde.
E na reunião explicou:
— Meus amigos — disse ele com certa emoção —, julgo que não duvidam da minha amizade nem do meu respeito pela vossa opinião. Nisto, como em tudo o mais, tenho procurado seguir o exemplo do meu tio. Mas agora tomei uma decisão sem vos consultar, porque era urgente e vital. Durante o meu breve exílio na África do Sul, obtive informações seguras sobre o que se trama contra esta nossa terra. E coloquei o nosso jornal sob a protecção da FNLA.
— Da FNLA?! — gritou o Sousa Quevedo, com o sobressalto de quem pisa uma cobra cascavel.
— Exactamente. Falei com Holden Roberto e verifiquei que é bem diferente da imagem que todos nós fazíamos dele.
— Mas tu — interveio o Rosa Amaral —, tu que tanta vez arriscaste a vida no teu avião de brinquedo, para evacuar portugueses feridos pela UPA, alinhas agora com esse movimento?!
— Não quero o comunismo na minha terra — disse ele com profunda amargura.
— Chama-se a isto «anticomunismo primário» — lançou o Sousa Quevedo do seu canto.
— Chama-lhe o que quiseres. Para mim, o comunismo é o contrário de democracia. E nós já estamos vendidos a Moscovo. Eu não aceito isso!
— Tu não podes estar de acordo com Holden Roberto — insinuou o Baldaque.
— Estou de acordo com ele num ponto essencial: somos ambos anticomunistas. Mas admito que já nos encontramos perante opções de emergência. O que todos deveríamos ter feito era cortar com o Governo de Lisboa logo após o 25 de Abril. Simplesmente, deixámo-nos enganar miseravelmente por um pequeno grupo de traidores. E agora, é tarde! Pela minha parte, já que não posso fazer mais nada, quero ao menos lutar contra a instalação de uma ditadura nesta bela terra. E é tudo, meus amigos.
Levou-nos depois ao Gabinete da Direcção, onde nos apresentou o comandante Cabango, como responsável pela nossa segurança.
O guerrilheiro, sempre sem largar a sua pistola-metralhadora, assumiu um ar simpático para nos dizer que tinha quatro homens sob as suas ordens, que vestiam à paisana e só ele sabia quem eram.
— Onde estão? — quis saber o Santos Gouveia.
— Desculpa, mas não pode dizer— respondeu ele.— Este serviço é assim mesmo... Mas toda a gente pode trabalhar na confiança, que nós vai guardar tudo muito bem, faz favor de acreditar...
Voltámos para a sala da Redacção, num silêncio consternado, que o Sousa Quevedo quebrou de forma imprevista:
— Tenho de pensar noutro emprego...
— Porquê? — fiz eu.
— Todos aqui conhecem as minhas ideias...
— E alguma vez, neste jornal, se perseguiu alguém por causa das suas ideias?
— Bem sei que não. Mas agora, com esses «fenelas» cá dentro, quem é que manda no jornal?
E não encontrei resposta para lhe dar...
Na verdade, -não houve qualquer espécie de pressão pana o despedimento daquele conhecido e reconhecido adepto do Partido Comunista Português e, por isso mesmo, naturalmente simpatizante com o MPLA. Mas foi ele mesmo que se despediu, e por um estranho motivo: porque foi dispensada a colaboração dum velho jornalista, que há cerca de quarenta anos mandava ao nosso jornal dois ou três artigos por semana. Isto sem nunca falhar, mesmo quando estava de férias na Metrópole.
— Porque fecham assim a porta a um dos nossos mais antigos colaboradores? — perguntou o Sousa Quevedo.
— Certamente imaginas quanto isso me custa — confessou o director. — A decisão não foi minha.
— Bem sei. E, para te poupar novo desgosto, vou-me embora, antes que o Holden Roberto te mande um bilhetinho a meu respeito.
As ideias do velho colaborador saneado eram inteiramente contrárias às de Sousa Quevedo, pelo que a sua atitude foi considerada paradoxal por alguns colegas. Mas não havia paradoxo nenhum: havia apenas dois homens igualmente sinceros nas suas convicções e que, por isso mesmo, se respeitavam e estimavam.
E acontecia também que chegara a hora de pensar e agir na dimensão da enorme tragédia que já pairava sobre Angola e sobre as suas gentes...
8.2 — Guerra dos Movimentos
Já disse que, ainda com o Almirante Vermelho a executar as ordens de Moscovo em Angola, o MPLA atacou o quartel da tropa de Daniel Chipenda no Bairro da Caop. Os brancos residentes naquela zona viram como alguns «pioneiros» das FAPLAS caíam por terra, logo aos primeiros tiros. E condoeram-se dessas «pobres crianças», ceifadas pela morte antes de atingirem a plenitude da vida. Soube-se depois que, na maioria dos casos, as «pobres crianças» nem sequer estavam feridas. Ao primeiro contacto com os horrores da guerra civil, tinham muito naturalmente desmaiado de medo.
Mas também houve bastantes mortos de verdade. Os guerrilheiros do antigo futebolista da Académica de Coimbra foram desalojados e o MPLA inchou com a grande vitória.
A guerra civil já era um facto em Angola, quando o general Silva Cardoso entrou no abandalhado Palácio dos governadores gerais; e o mais que pôde fazer foi confinar-se numa estrita imparcialidade entre os Movimentos que reciprocamente se odiavam e hostilizavam, tornando completamente inoperante o Governo de Transição.
Entretanto, a parcialidade dos novos governantes de Lisboa a favor do MPLA era manifesta e escandalosa, traduzindo-se em toda a espécie de ajudas e incentivos. As Forças Armadas Portuguesas, completamente «desmotivadas», como descaradamente afirmavam os seus oficiais mais progressistas, tinham perdido toda a coesão, toda a disciplina, todo o prestígio e todo o respeito da parte de brancos e pretos.
Foi nesta vergonhosa situação dos últimos meses da administração portuguesa em Angola, que as FAPLAS, secretamente instigadas e ajudadas por oficiais comunistas do exército português, decidiram expulsar da capital as forças da FNLA e da UNITA. Com o êxito dos primeiros assaltos, tornaram-se de uma arrogância insuportável. E todos os dias aconteciam horrores em diversas zonas da cidade.
Num desses dias, o Baldaque apareceu na redacção a espumar de fúria.
— Que te aconteceu, homem? — perguntei, levantando os olhos duma prosa tirada a ferros.
— Não aturo mais isto — bradou ele com uma voz de alucinado. — Vou-me embora!
— Mas que foi?
— Esta manhã, um piquete da UNTA decidiu impedir o pessoal da Petrangol de entrar na Refinaria.
— É lamentável! — atalhei eu. — Se a Refinaria pára, vai faltar-nos a gasolina...
— Espera lá, comodista! Para mim o mais lamentável não foi isso. Que a Refinaria suspenda a laboração por exigência de meia dúzia de desordeiros já nem me surpreende. Se no porto não descarregam os navios; na Textang estão em greve; na Cuca não trabalham; na Siga não trabalham; nas escolas não ensinam; no Governo não governam — porque é que os homens do petróleo hão-de fugir a esta bela regra? Até era um escândalo! O que me aborreceu deveras foi outra coisa. Vê lá se adivinhas...
— Não sou feiticeiro...
— Pois foi só isto: no caminho para o Alto da Mulemba, aonde ia em busca de notícias, dois soldados das FAPLAS plantaram-se à frente do meu carro e mandaram-me parar.
Obedeci e perguntei o motivo da intimação.
— Atão o camarada não vê que estamos a içar a bandeira do MPLA. Sai já do carro e fica aí quieto, até tocar o sinal.
E eu saí. E fiquei quieto e perfilado, como ordenavam aqueles dois garotos armados. Mas já não fui à Refinaria. Que se lixe toda -esta merda! Vou-me embora!
Mas não foi embora, não. Uma patrulha das FAPLAS prendeu-o nessa mesma tarde e levou-o para o campo de prisioneiros instalado na Praça de Touros...
*
Ao sair do jornal, encontrei a Mariluz, que mais uma vez me vinha falar do pai.
— O trabalho da construção -parou completamente e meu pai parece abúlico. Quase não come. Quase não fala. Minha mãe anda a chorar pêlos cantos. Que hei-de eu fazer? Isto vai de mal a pior...
— É uma fase que há-de passar — declarei sem grande convicção.
— Portugal já não manda nada nesta terra. E esses ministros inventados à pressa não sabem ou não querem governar. Anda tudo à toa. O pessoal das obras não trabalha mas quer continuar a receber e pede aumento de salário. E o nosso dinheiro sai-se derretendo. Tudo isto está a matar meu pai. Talvez fosse bom que aparecesses lá por casa para ver se o animas...
8.3 — Um pai aflito
Fui a casa do sr. Calabriz nessa mesma tarde.
Encontrei-o sentado à secretária, a fumar de uma maneira esquisita, já com o cinzeiro a transbordar de pontas de cigarro.
Correspondeu molemente ao meu aperto de mão e disparou, sem mais preâmbulos:
— Está satisfeito?
— Não. Mas ainda me não deixei arrastar para os abismos do desespero.
— E eu até compreendo. Você continua a trabalhar. O trabalho distrai... O diabo é que eu já não faço nada...
— Melhores tempos virão...
— Ou piores. Desde o 25 de Abril que nada vai para melhor. Já anda outra vez tudo aos tiros.
— Bem sei. Mas tudo depende do Movimento que vencer.
— Não acredito em nenhum deles.
— É preciso acreditar em alguma coisa...
— Eu preciso é de morrer. Já não faço nada neste mundo. A dona da casa veio da cozinha, cumprimentou-me amavelmente e perguntou-me se bebia um uísque.
— Bebe-mos um uísque — declarei, com um gesto associativo para o sr. Calabriz.
— Acha que me devo embebedar? — fez ele com amargura.
— Acho que deve reagir contra esse desalento, que não remedeia nada. E deixe lá de fumar dessa maneira suicida! — acrescentei ao ver que ele acendia mais um cigarro.
Vieram os dois uísques e o pai Calabriz bebeu o dele de um só trago. Depois perguntou:
— Sabe o que disse hoje o garoto que me traz o seu jornal todas as manhãs? Vem sempre à hora do almoço, porque sabe que lhe damos de almoçar... Mas sabe o que me disse?
— ?!
— Que, depois da independência, a miinha casa vai ser para ele...
— E não lhe deu duas bofetadas no focinho?
— Não. Levei-o ali ao quintal, apontei-lhe a terra do jardim e declarei-lhe que, sim senhor, que ele ia ficar ali, na minha casa, mas com sete palmos de terra a fazer-lhe sombra.
«—E põe-te já a milhas, meu pequeno sacana!...»
Fugiu desabaladamente e nunca mais apareceu...
Ficámos ambos num silêncio meditativo, até que ele abanou a cabeça, como quem afasta uma visão de pesadelo, e fez nova pergunta:
— E sabe que a Mariluz tem passado um mau bocado na Universidade?
— Não me falou em nada — respondi, sem ocultar a minha preocupação.
— Isso é bem próprio dela. Eu também o soube por portas travessas. E ela ainda ignora que eu sei...
— Mas que se passa exactamente?
- Passa-se que os estudantes negros se matem
com ela. Dizem-lhe por exemplo, que vai ser uma boa sobremesa na festa da
Independência...
E, num grito de cólera terrível:
— Mas eu queimo os miolos de quem se atrever a tocar-lhe! Outro
silêncio, tão medonho, que logo o tentei afugentar.
— Como soube?
— Pelo dr. Sílvio Miranda, que era professor dela e veio despedir-se de mim, antes de embarcar para a Metrópole.
— Foi de férias?
— Foi-se embora definitivamente. Disse-me que já não podia aturar a Comissão Administrativa da Universidade, constituída quase exclusivamente por estudantes do MPLA. E, a propósito, contou-me vexames que estão a sofrer os universitários brancos, sobretudo as raparigas. A Mariluz, coitada, não me diz nada porque me não quer aborrecer ainda mais. Mas eu bem vejo que também ela anda muito triste. Pediu-me autorização para tomar lições de Judo e eu dei-lha logo. Mas soubemos depois que os professores dessa escola também já partiram... Você continua a pensar que não há perigo para minha mulher e minha filha?...
— Começa a haver perigo para todos nós... — respondi evasivamente.
— Para uma rapariga como a Mariluz, o maior perigo não é a morte...
— Compreendo. Mas também o sr. Calabriz deve compreender quanto me custa separar-me agora da Mariluz...
— E a mim, não custa? O que tem de ser tem muita força!
— Está bem: eu tratarei do embarque, desde que autorize que, primeiro, se realize o nosso casamento.
— O vosso casamento?! — fez ele, colhido de surpresa.
— Sim. Antes disso, não consigo encarar a ideia de a deixar partir.
— Já lhe falou no assunto?
— Vou falar-lhe hoje mesmo e tenho a certeza de que vai concordar.
— Também concordará em partir para a Metrópole, só com a mãe, depois de casada consigo?
— Saberei convencê-la. Talvez até eu embarque também...
Pela primeira vez aflorou um sorriso ao rosto torturado daquele homem. Não era alegria, com certeza, mas era o sinal exterior de um grande alívio na sua profunda ansiedade.
Pediu à mulher mais dois uísques.
— Para celebrar... — explicou.
— Para celebrar, o quê? — perguntou ela.
— Parece que vai haver um casamento...
A dona da casa compreendeu imediatamente e brindou-me com um sorriso, que já vinha eivado de carinho maternal.
8.4 — A evidência dos factos
Comecei imediatamente a tratar da papelada. Mas, agora, nos departamentos oficiais ninguém trabalha, ninguém atende, ninguém informa, ninguém sabe nada. Tudo se complica. A grande tragédia chega, explosiva, sangrenta, incontrolável...
Em novo assalto aos quartéis dos outros dois Movimentos, as FA-PLAS, descaradamente ajudadas pela facção comunista das Forças Armadas Portuguesas, obtêm sucessivos êxitos. Após a tomada do grande quartel da FNLA, na Avenida Salazar, o MPLA monta ali um quadro macabro: vísceras humanas em balcões frigoríficos: corações, fígados, rins, tudo num mostruário de horror.
A propaganda do MPLA afirma que tudo aquilo constituía reserva alimentar dos guerrilheiros do ELNA (a).
Fui ver e logo me convenci de que se tratava duma farsa muito mal montada. As paredes da sala onde se exibia a hedionda exposição estavam crivadas de buracos de balas, aqui e além entremeados de grandes rombos produzidos pelas granadas e foguetões. Só os balcões frigoríficos, com as vísceras humanas que as FAPLAS afirmavam ter lá encontrado, permaneciam intactos. Uma coisa totalmente inacreditável!
Correu depois que o MPLA tinha trazido as vísceras da sala de anatomia do Hospital Universitário, obrigando a médica branca a entregá-las.
No desígnio de apurar a verdade, procurei essa médica, mas não a encontrei. Alguém me assegurou que a tinham levado para o Campo de Prisioneiros da Praça de Touros...
Entra o mês de Junho. Bombardearam o Hospital de S. Paulo.
— Chegamos aos dias do fim — comenta meu
pai, quando uma amiga da tia Isaura, que é enfermeira
no Hospital Universitário, vem contar que também o atingiram com fogo de
morteiros.
— Há três dias que aquele hospital é um verdadeiro inferno — declara a senhora dona Leonor da Silva, que é a informadora. — Eu trabalho num dos blocos cirúrgicos e ando tão repassada de horror que, apesar de exausta, já não consigo dormir. Esta noite foram novamente buscar-me, porque havia montes de feridos. Mas, perto do Cinema de S. Paulo, a ambulância que me levava foi alvejada com rajadas de metralhadora -e voltámos para trás. Depois, deu-se o tiroteio que todos ouvimos. E à hora do almoço, a enfermeira-chefe foi a minha casa comunicar que o Hospital Universitário está debaixo de fogo de morteiros.
— Há feridos? — quis saber a tia Isaura.
— Muitos. E alguns mortos. Estão agora a tentar transferir os doentes para o Hospital Maria Pia — respondeu a enfermeira Leonor da Silva. E acrescentou que a enfermeira-chefe a tinha ido convidar a dar uma ajuda, mas que tivera de recusar porque já não podia mais.
— O pessoal serventuário, quase todo da UNTA (União Nacional dos Trabalhadores de Angola) nega-se a trabalhar e somos nós que temos de fazer tudo.
— E o moral dos brancos é bom? — perguntei eu.
— Temos um certo brio profissional — declarou a enfermeira. — Mas há coisas que custam muito. Quando, há dias, eu falei em abalar para a Metrópole, um negro disse-me que, se fosse para o Puto, tinha de levar um mulatinho dele na barriga. Até os médicos são insultados...
— Todos os brancos estão a ser insultados, agredidos e caluniados — reforçou meu pai com ar sombrio. — E nem sequer é de admirar. Há meses que na Metrópole nos chamam fascistas, reaccionários, exploradores e ladrões. Os pretos de Angola apenas copiam as palavras e atitudes da escumalha que usurpou o Poder na nossa desgraçada Pátria. E, para lhes facilitar o trabalho, até nos mandaram, para a imprensa e a rádio daqui, alguns elementos do Partido Comunista Português. Que dizes a isto, filho?
— Digo que, sob este aspecto, o pai está cheio de razão. Lisboa prometeu a independência a Angola, mas pretende impôr-lhe um determinado regime. O que é mau...
— É péssimo! — declarou meu pai com veemência. — O comunismo é tudo quanto há de mais contrário ao temperamento dos povos angolanos. E eles querem implantá-lo aqui.
— Querer nem sempre é poder — objectei.
— Por eles pouco poderão, inclusive porque já demonstraram a sua vergonhosa cobardia. Mas a Rússia é uma grande potência. Com um regime implacável...
Receio que estejamos todos perdidos, meu filho. E oxalá que isto seja apenas pessimismo de um velho que vê todo o seu mundo desmantelado...
*
Infelizmente, não se tratava de pessimismo de velho: era a evidência dos factos.
Por todo o mês de Julho, a guerra continuou furiosa em Luanda. Centenas de cadáveres apinhavam-se nas mesas e no chão da Casa Mortuária. No Hospital Maria Pia, único que ainda funcionava, era incessante a entrada dos feridos. O fogo de armas ligeiras e pesadas ouvia-se em toda a cidade e, nas zonas já conquistadas pelo MPLA, o Poder Popular, armado com a conivência de Rosa Coutinho, lançava-se na caça aos filiados ou simpatizantes dos outros movimentos, espancando, violando, roubando e matando.
Vi como, a pequena distância da Alameda Dom João II, uma Panhard dos Dragões ainda afugentou os larápios que pilhavam as casas dos brancos. Mas também vi como eles voltaram depois, para completar o saque.
Os moradores das torres do Prenda puderam observar como os soldados de Agostinho Neto encostavam os adeptos da FNLA às paredes das casas abandonadas, fuzilando-os sem mais formalidades. Na Avenida dos Combatentes, dois pretos foram abatidos como cães raivosos, só porque usavam botas como os soldados do ELNA.
Por entre o tiroteio, as sirenes das ambulâncias lançam continuadamente o seu uivo sinistro de angústia e de morte. Em toda a cidade paira o cheiro acre do sangue derramado, enquanto não é superado pelo fedor nauseabundo dos cadáveres em putrefacção.
Os brancos fugidos de Malange afirmam que a cidade foi quase toda destruída. Sabe-se que Dalatando (a que já não chamam Cidade Salazar...) está a sofrer a mesma sorte. E correm os mais diversos boatos. Afirma-se que Daniel Chipenda vem aí, para vingar a derrota dos seus guerrilheiros no quartel do Bairro da CAOP. Diz-se que há em Luanda soldados do COPCON, vindos expressamente, com homens armados da LUAR, para ajudar o MPLA. O Rosa Amaral assegura-me que o Almirante Vermelho (que usurpou o título de almirante, porque é apenas capitão de fragata...) está secretamente no Lobito, a planear com elementos da Marinha de Guerra Portuguesa a expulsão da UNITA e da FNLA de todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.
Ao abrir da segunda quinzena de Julho de 1975, a FNLA mantém-se apenas no seu último reduto: a Fortaleza de S. Pedro da Barra. E os sitiados declararam que, se forem atacados, bombardearão a Refinaria de Petróleo, que lhes fica a cerca de 1500 metros de distância...
8.5 — Alguns casos confrangedores
O comandante Cabango e os seus quatro vigilantes desapareceram sem deixar rasto. Também o Rosa Amaral não aparece na Redacção desde há dois dias. E não foi encontrado no seu quarto de solteiro, na Avenida do Brasil. Ninguém sabe dele...
Vêm ao meu jornal contar-nos casos confrangedores.
Um carpinteiro da Companhia Teatral de Angola (CTA), com 55 anos de idade, informa que embarca nessa mesma noite, porque uns pretos embriagados quiseram violar-lhe a filha de 13 anos.
— Consegui afugentar os patifes e fui depois pedir a protecção da polícia portuguesa. Responderam-me que não podiam fazer nada. Vou--me embora.
Um antigo soldado, que veio para Angola em 1962 e cá ficou, depois de terminada a sua comissão militar, conta a sua má sina:
É casado e pai de um bonito par de crianças. Trabalhou no Quicolongo durante os últimos dez anos. Agora que também lá começaram aos tiros, conseguiu fugir, com a mulher e os filhos, para Malange. Como também naquela cidade tivesse começado a confusão, fugiu mais uma vez e andou perdido no mato durante vinte e três dias. Passou em Henrique de Carvalho — e havia confusão. Atingiu o Luso — e havia confusão. Desceu a Nova Lisboa e verificou que, também ali, a tropa portuguesa estava inoperante e apática, como se fosse constituída por soldados de chumbo. Meteu-se, então, a caminho de Luanda, aproveitando uma escolta de Forças Integradas, composta por soldados portugueses e guerrilheiros da UNITA. Para cá de Quibala, os guerrilheiros da UNITA foram atacados pela tropa do MPLA e dizimados sob os olhos dos soldados portugueses, que nada fizeram para os proteger.
Tinha chegado finalmente a Luanda, há dez dias, e tratou imediatamente do embarque para a Metrópole, porque os brancos já não podem viver nesta terra em que tanto trabalharam. A família já está no aeroporto, à espera do avião que os levará para Lisboa. Ele veio ao Banco de Angola tentar cambiar algum dinheiro. Não conseguiu nada. Os 10 contos que ainda tinha, trocou-os na Portugália por três notas de conto do Banco de Portugal. E é com isso que vai regressar à sua Pátria...
Outro conta que trabalhava nas Mabubas, desde há 17 anos. Lá tinha casado e assistido ao nascimento dos seus três filhos. No princípio da semana, soube que a tropa do ELNA tinha abandonado aquela zona e, logo a seguir, chegaram as FAPLAS, que levaram tudo a ferro e fogo, chacinando os brancos e roubando tudo quanto encontravam.
— Quando atacaram a minha casa — conta o desgraçado —, minha mulher fugiu para a varanda das traseiras, com o filho mais pequeno ao colo. Mas os bandidos perseguiram-na e cortaram-nos literalmente ao meio, ao filhinho e a ela, com sucessivas rajadas de metralhadora. Fizeram isto em pura crueldade, porque a primeira rajada chegou para os matar... Arremeti contra os brutos mas, não sei porquê, não me mataram. Limitaram-se a dar-me uma coronhada na cabeça, que me fez perder os sentidos... Voltei a mim na carrinha dum comerciante preto do Caxito, meu antigo colega de trabalho, que nos trouxe para Luanda, a mim e aos dois filhos que me restam. Chego aqui — e é o que se vê... Que posso eu fazer, sem emprego, sem a minha querida mulher, e com dois filhos a sustentar? Era bem melhor que me tivessem matado...
— Saído do Bairro da Cuca — continuou — onde o Poder Popular estava a matar e a roubar, vim para casa dum amigo que vive no Bairro da Vila Alice. Fugi dum inferno para cair noutro. O Bairro da Vila Alice parece uma roda de fogo preso. É um contínuo ribombar de morteiros, por entre as gargalhadas das metralhadoras. Há constantes matanças em plena rua. Apesar de estar mais próximo do centro da cidade, os roubos não são menos e os mortos ainda são mais. Nas ruas desertas, zumbe continuadamente um vespeiro de balas...
— Eu fui soldado na Guiné Portuguesa, que é um inferno de calor. Depois de lá cumprir o serviço militar (e aquilo — podem acreditar — era mil vezes pior do que em Angola onde, nos últimos tempos, já ninguém sentia o terrorismo), vim para esta grande terra, a conselho dum primo. Tenho mulher e quatro filhos, o mais velho com 12 anos e o mais novo com 3. Maldito conselho daquele maldito primo! Estamos no aeroporto, à espera de que um avião estrangeiro nos salve desta tragédia nacional...
Estes são apenas alguns dos muitos dramas cujas narrativas pungentes chegam até à redacção do meu jornal.
A ameaça de bombardeamento da Refinaria da Petrangol, situada no alto da Mulemba, bem perto dos sitiados da Fortaleza de S. Pedro da Barra, constitui agora um novo facto de pânico. Os luandenses vivem num clima de terror.
Na verdade, os homens de Holden Roberto são como tigres encurralados e podem provocar uma desgraça de consequências imprevisíveis. Possuem armamento pesado e, na Refinaria, há muitos milhares de toneladas de produtos altamente inflamáveis que podem atingir com toda a facilidade. Diz-se que só a explosão dos seis depósitos de gás butano pode arrasar uma grande parte da cidade.
A ameaça é muito séria e tem travado o ímpeto do MPLA e de todos aqueles que o ajudam. Finalmente, obedecendo a instruções de Holden Roberto, os sitiados de S. Pedro da Barra saem do seu refúgio e, pela calada da noite, tentam alcançar a tropa do ELNA, que desce do Caxito.
O MPLA torna-se senhor exclusivo da capital de Angola.
8.6 — FAPLAS e Comandos
— Dizem que rebentou uma bomba no nosso jornal — veio anunciar o Santos Gouveia, com olhos de alucinado. — Tu não ouviste um grande estrondo?
— Ouvi muitos. Estrondos é o que mais se ouve agora nesta cidade enlouquecida.
— Aquele foi diferente — teimou ele. — Eu também não liguei; mas agora que me falaram da bomba, compreendo. Anda daí comigo!
Fomos. Rompemos por entre a multidão acumulada junto ao velho edifício do jornal e verificámos que as instalações da redacção estavam transformadas num monte de escombros.
Senti-me invadido por uma íntima tristeza. Quem trabalha afeiçoa--se ao seu local de trabalho. E o nosso director, que está novamente na África do Sul, tinha melhorado todas as instalações, incluindo a redacção, que já beneficiava de ar condicionado.
A bruta carga de plástico destruiu quase todo o primeiro andar, mas poupou as oficinas do rés-do-chão. As máquinas funcionam e o jornal pode continuar a sair.
Não temos secretárias, falta o telex, não há máquinas de escrever. Mas ainda não nos cortaram a cabeça. E um repórter, desde que tenha ideias, uma esferográfica e uns pedaços de papel, pode exercer a profissão.
Foi o que disse aos meus colegas, que acorreram imediatamente, como eu e o Santos Gouveia, e concordaram em pleno. O jornal vai sair amanhã, à hora do costume.
Já estamos muito desfalcados. Além do director, mais uma vez longe de Luanda para salvar a vida, o Baldaque -está preso, o Rosa Amaral desapareceu sem deixar rasto e o Sousa Quevedo foi tentar vida no Brasil. De maneira que, neste amanhecer trágico, somos apenas o Santos Gouveia, o Maia Campita, o Carlos Pontes, o Gama Ribeiro e eu.
— Isto é tudo uma grande chatice — resumiu o Gama Ribeiro, cofiando o seu bigode farfalhado.
— Ainda podia ser pior— declara o Maia Campita que, agora sim, já conseguiu emagrecer uns quilos. — Vocês sabem que, por mero acaso, faltei ao meu turno da noite?
— É verdade! — concordou o Carlos Pontes. — Alguém acendeu por ti uma velinha a Nossa Senhora de Fátima.
— Sabe-se lá... Só sei que o meu despertador entrou em greve sem aviso prévio e eu dormi desabaladamente até há bocadinho... Bem: vamos lá trabalhar.
Durante todo o dia, o nosso trabalho esteve bastante prejudicado pela contínua romaria dos mirones, que vinham ver os estragos, e até por bons amigos, que tentavam insuflar-nos uma coragem que eles próprios já não sentiam.
A Mariluz foi das primeiras a aparecer. Mas, quando me viu, ainda vivo e são, abraçou-se a mim a chorar e partiu de novo, sem dizer uma palavra, sem mesmo me informar de que o pai estava de cama, com 39 graus de febre.
No dia seguinte, às 8 da manhã, o jornal já andava na rua, com uma extensa reportagem dos últimos acontecimentos e um editorial da minha lavra, que era, todo ele, um apelo à conciliação e ao trabalho ordeiro, coisas ambas elas indispensáveis à construção de uma real independência e condições de progresso e bem-estar para a população de Angola.
Mas as nossas bem intencionadas palavras, já tocadas dum crescente nervosismo, perdiam-se ingloriamente no tumulto das ruas e na vertigem dos acontecimentos.
Foi por esses dias que uma patrulha portuguesa sofreu uma cobarde agressão das FAPLAS, que lhe ocasionaram algumas baixas. Travando a custo a fúria dos «comandos», que pretendiam vingar imediatamente os seus camaradas mortos, o general Silva Cardoso intimou o MPLA a castigar os agressores e a apresentar desculpas até às 8 horas do dia seguinte.
Ao expirar o prazo concedido, uma força dos «comandos» tomou posições junto do principal quartel das FAPLAS e aguardou durante mais noventa minutos qualquer atitude conciliatória dos soldados de Agostinho Neto.
Atacados novamente com rajadas de metralhadora, os «comandos» investiram irresistivelmente contra o quartel e infligiram um duro castigo aos fanfarrões.
O MPLA rompeu num grande berreiro para Lisboa e o general Costa Gomes chamou à capital portuguesa o general Silva Cardoso, que ainda inspirava alguma confiança à esmagadora maioria das populações de Angola.
Logo a seguir, apareceu de novo em Luanda, acompanhado por alguns dos seus capangas, a figura sinistra do almirante Rosa Coutinho. Sob a sua orientação e certamente na execução de planos urdidos em Cuba, quando lá foi com o major Otelo Saraiva de Carvalho, promoveu que a Marinha de Guerra portuguesa conquistasse sucessivamente, para o MPLA, todos os portos angolanos situados ao sul de Luanda.
Em Lisboa, o general Silva Cardoso, na Radiotelevisão Portuguesa, declarava-se enfaticamente farto de ódio e de sangue. E, em Angola, intensificava-se a debandada dos portugueses, já completamente desiludidos, já em transe de desespero…
(a) Exército da Libertação Nacional de Angola.