DESENCONTRO, OU FRAUDE?

A renúncia de Spínola foi o golpe de misericórdia no futuro da democracia em Angola.

No mesmo dia, a FRA espalhou, por Luanda, mais de vinte mil exemplares do discurso do Presidente.

As repercussões entre a população foram de agudo pessimismo, confirmado pelas prisões de civis e militares que se seguiram. Rosa Coutinho deu largas à sua malvadez em ordem e atitudes próprias da sua desequilibrade menta­lidade. Não se explica, por exemplo, o motivo que o deter­minou a assinar a detenção dos dirigentes da PDCA. Al­guns não conseguiram escapar, como o dr. Figueira e o Nóbrega. Este, após ter sido convidado pelo almirante Alva Rosa para uma cortez e informal conversa no palácio, foi preso à saída do edifício, sem uma palavra de justificação. Outros, no entanto o dr. Ferronha, secretário-geral do Partido e Rui Correia de Freitas, proprietário e director de "A Província de Angola" , puderam alcançar Mocâmedes pelo mar e, dali, voarem para a África do Sul.

         Cândidos e crédulos, os líderes do PDCA e da FUÁ — permita-se a vulgaridade da expressão eram "anjinhos" que ainda jogavam na via democrática para a solução do problema político de Angola. Os da FUÁ nem se apercebe­ram de que o "soba" Falcão (isto é, Falsão] nos traía a todos. Já no Governo provisório, acabou de se desmasca­rar, no modo como se comportou, perante as projectadas greves dos camionistas, dos industriais e comerciantes, marcadas para 30 de Novembro de 1974. As suas artimanhas, as suas promessas, os ardis com que enganou as classes hu­mildes que se lhe confiavam, causou o colapso de uma for­ma de luta que tinha, como objectivo primordial, o derru­be da Junta Governativa. O "Falsão" não descobriu quem tivesse a coragem de "pôr os guizos aos gatos". E tudo so­çobrou.

          Quanto a mi m, em Sá da Bandeira, o cerco aperta­va-se. Rosa Coutinho tinha a sua polícia particular, os seus espiões, de que se destacava Aristides Duarte, o "Gabão". Chegara à PSP local um mandado de captura contra mim. Com a minuciosa descrição da minha pessoa, a indumentá­ria completa, fato, camisa, gravata e chapéu. Pormenores que só uma pessoa conhecia, porque me vira sair de casa às três da tarde (e a hora era indicada no mandado): o capi­tão Figueiredo. Daí me convencer e por outras informa­ções que me vieram ao conhecimento de que ele fora o denunciante e de que a sua traição arrastava incalculáveis prejuízos para a F R A.

O hotel cada vez era menos seguro como refúgio. Na terceira noite, o Nuno Cardoso da Silva e o Penha Rodri­gues foram visitar-me. Tinham chegado de África do Sul e, finalmente, contactado com Santos e Castro.

Discutimos problemas relacionados com a F RA e, no final, comunicaram-me que iam "raptar-me" nessa noite, porque era a última oportunidade de me livrar das garras do Rosa Coutinho.

Dois ex-comandos, o Manuel Tigre e o Caciano, me­tralhadoras em punho, me levaram, deitado no bando da rectaguarda de um automóvel, em voltas e reviravoltas para a Umpata. Outro grupo da FRA transferiu-me para casa de pessoas amigas. Ali se me juntou minha filha e ali vivemos sozinhos, durante oito dias, sem nos atrevermos a espreitar a rua, pelas gelosias fechadas. Devo acrescentar que o pro­prietário do prédio era o Jorge Luciano Couto, pai do noi­vo da minha filha. Em Agosto, o rapaz, estudante de Medicina, fora morto, durante a manifestação que as tropas negras, sem armas, fizeram defronte do Quartel-General, pedindo providências ao comandante-chefe. As sentinelas abriram fogo, alguns soldados tombaram e o noivo de mi­nha filha, ao pretender socorrê-los, foi atingido na cabeça e nas costas. Teve morte instantânea.

No fim dos oito dias, amigos da FRA vieram bus­car-nos, porque me moviam uma perseguição sem tréguas. Em Vila Luso, fora preso, um funcionário da Junta Autó­noma das Estradas, só porque era engenheiro e tinha os ca­belos brancos, como eu.

Partimos com as maiores precauções. Deixara crescer a barba e o bigode, e pusera, na emergência, óculos escu­ros. Omitindo as vicissitudes da viagem, o certo é que atra­vessei a fronteira e fiquei hospedado, na qualidade de exi­lado político, em casa de Pinto Ferreira, agente da Polícia da África do Sul, que, por acaso, tinha um nome portu­guês.

Não descurei a direcção da FRA, quer através de li­gações directas, quer por telefone. Em Joanesburgo, Rui Correia de Freitas procurou adquirir uma viatura com pos­to emissor, para actuar, com regularidade, na acção psico­lógica das populações, evitando a sua desmobilização e ob­viando o corte de ligações provocado pela prisão de filia­dos da Frente. Lembro que Correia de Freitas estava de cabeça perdida. Só pensava em matar. Queria ir de avião, bombardear o seu jornal...

Saraiva de Oliveira, ex-dirigente da MOPUA e ade­rente da FRA em Sá da Bandeira, assegurava a linha que mantínhamos com Joanesburgo e, por instruções que lhe dera, procurava Santos e Castro.

Neste interregno, apareceu-me um italiano, Mário Gino, que se intitulava lugar-tenente de Mike Hoare, a pro­por-me a venda de armamento. Não passava de um burlão, como depois verificámos.

Sem falsa modéstia, era eu quem manejava os "cordelinhos" da FRA. Não podia, pois, manter-me indefinida­mente na África do Sul. Apesar da oposição que me fize­ram, pêlos perigos que iria correr, atravessei a fronteira, de regresso a Angola.

O "Gabão" e os seus cães de fila tinham montado uma completíssima rede de espionagem na África do Sul, para benefício de Rosa Coutinho. Nos pontos em que resi­diam portugueses, infiltrava agentes. Expoentes desprezí­veis de um Governo degradante, dois ou três faziam jogo duplo, vendendo-se por tostões. Cito um tal Duarte, Stuart de Vasconcelos, e Xisto da Fonseca, dos principais.

Durante a madrugada de 17 de Novembro, tomadas todas as precauções, alojaram-me na casa de uma quinta abandonada, que se estendia faldas da Serra da Cheia. Não havia vidros nas janelas, as portas desconjuntavam-se, não existia nem água, nem luz. Pomares lindíssimos apodre­ciam, porque há muito não eram tratados.

Ali ficámos, eu e minha filha, isolados, sujeitos a ir-regularidades de abastecimentos, dependentes dos amigos que tinham de percorrer cerca de quarenta quilómetros, a distância que nos separava de Sá da Bandeira. No entanto, se as patrulhas militares andavam na estrada, eles não vi­nham. E, assim, alguns dias, não almoçámos, nem jantá­mos.

Até que Saraiva de Oliveira me apareceu com notí­cias animadoras. Falara com Gilberto Santos e Castro, que pedia informações e assegurava a confiança dos emissários com um cartão de visita, rasgado em duas metades: ele fi­cara com uma e enviava-me a outra.

Cumpre-me esclarecer que a primeira ligação com Santos e Castro foi feita, em Joanesburgo, por Bernardo de Figueiredo, o único a saber do seu paradeiro e que conhe­cia Saraiva de Oliveira, Após a primeira entrevista, qual­quer emissário que não fosse o Saraiva de Oliveira, teria de exibir a metade do cartão.

Mais premente se fez a necessidade de fundos para comprar o material que o italiano Gino nos prometera, e sustentar os homens da FR A que andavam fugidos. Mário Gino pedia 600 contos pelas armas e pela viatura-rádio. Amealhámos metade dessa importância, sendo 150 contos produto de dádivas de comerciantes médios da região e o restante com letras avalisadas pelo Gusmão, gerente da Sorel, e pelo Moreira, da Huíla.

Alcançámos a fronteira, em Santa Clara, e esperámos toda a noite pelo Gino, que não apareceu, porque tivera um desastre de automóvel.

Ao alvorecer, retornámos à "Fortaleza". Nesse dia, fa­lei com o Xisto da Fonseca, que nos propôs auxílio, nas ligações com a África do Sul. Fingi aceitar. Não convinha espantar os "gaviões", designação por que eram conhecidos os espiões de Rosa Coutinho. E tratei de reunir as infor­mações solicitadas por Santos e Castro, entregando-as ao Saraiva de Oliveira que, mais uma vez, se deslocou a Joanesburgo.

Santos e Castro garantiu que viria o mais depressa possível juntar-se a nós, para assumir o comando militar da F R A. Não se importava de viver nas grutas da serra da Leba. Alegrámo-nos, porque a disposição de abdicar das pró­prias comodidades constituía uma certeza do seu entusias­mo pela nossa causa. Estudámos e indicámos-lhe as formas de cruzar a fronteira sem perigos, por terra, por mar, ou por via aérea. Gilberto Santos e Castro estaria em Angola dentro de quinze dias, na posse plena das informações que solicitara, excepto no que respeitava aos contactos de que encarregara Nuno Cardoso da Silva e que nós ignorávamos. Estranhamente.

Mário Gino foi a Sá da Bandeira, onde lhe entregá­mos os primeiros 150 contos. Da segunda importância, que totalizava os 300 contos em moeda angolana, foi portador Saraiva de Oliveira. Tivemos a confirmação de que o di­nheiro tinha sido entregue, porque uma parte foi cambiada em rands, pelo coronel Santos e Castro ao Mário Gino. O que é facto é que nunca apareceram nem o coronel Santos e Castro, nem o Mário Gino, nem o armamento, nem a viatura-rádio. Nem o dinheiro.

Surpreendeu-me a contradição da conduta de Santos e Castro, depois de planos tão adiantados (mau grado de­moras e perturbações nascidas do acaso e das cautelas a que viagens e encontros obrigavam), que fomos ao porme­nor de admitir o desaparecimento da F RA como organiza­ção política que ele queria substituir por uma operação de grande envergadura que denominaria de "Massangano" ou "Quanza".

Cardoso da Silva julgava indispensável que Santos e Castro procurasse Holden Roberto em Kinshasa. Não me agradavam ligações com outros movimentos. Desde o princí­pio que a FRA pretendia ser independente e dispor de uma força capaz de obrigar a negociações. Não aceitei, por­tanto, em princípio, a sugestão. Nuno Cardoso da Silva re­bateu as minhas reticências e, por seu turno, apresentou a irrefutável razão do armamento que não tínhamos e que Santos e Castro não obtivera. Uma entrega de material, que Santos e Castro aconselhara ser feita em Walvis Bay, causara-nos trabalhos e despesas inúteis, porque tivéramos de fretar traineiras com suficiente autonomia para navegar da África do Sul até à costa angolana e não recebêramos nem uma bala.

Em plenário da FRA, realizado no restaurante "Arima", aquiesci a que Santos e Castro diligenciasse, junto de Holden Roberto, pela concessão da ajuda que procuráva­mos desesperadamente.

Cardoso da Silva e Penha Rodrigues abalaram e as­sentou-se que a ligação comigo seria feita pelo secretário do último ministro do Ultramar, o Amaral, que, nascido em Angola, fixara residência em Luanda, após o 25 de Abril.

 

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