O CERCO DE LUANDA
10.1 —«Espera pela tua vez, branco de tuge»!
Sabe-se que o triste espectáculo do Aeroporto de Luanda se repete no Aeroporto de Nova Lisboa, para onde convergem os portugueses de toda a zona de influência do Caminho de Ferro de Benguela.
Das áreas mais ao sul, entre Sá da Bandeira e Moçâmedes, os fugitivos viajam de automóvel, em direcção à África do Sul, ou arriscam-se em frágeis traineiras de pesca, na longa viagem marítima para Lisboa ou para o Brasil.
Há carros avariados que seguem a reboque durante muitas centenas de quilómetros. Quem já viajou nestas condições sabe como é. Acontece que, por vezes, o reboque é para a sepultura. E o velho mar--oceano traga mais alguns barcos lusíadas e ganha mais sal com novas lágrimas de Portugal...
Junto à fronteira com o Sudoeste Africano acumulam-se milhares de portugueses de todas as cores, aguardando as equipas sul-africanas de auxílio. E, na tensão da angustiada espera, também há oportunistas que fazem bons negócios, traficando em tudo, nomeadamente em automóveis, que compram por truta e meia, para ir vender do lado de lá com lucros fabulosos. Nunca falta quem saiba explorar a desgraça alheia em proveito próprio...
Mas a aflição maior continua a ser em Luanda, cujo cerco se aperta de dia para dia.
As tropas da FNLA descem pelo Morro da Cal para a ponte sobre a lagoa de Panguila, agora sob o comando de um valoroso coronel dos «comandos», que pediu a demissão do Exército Português, convencido de que já se não pode contar com Lisboa para nada de bom.
Eu ando meio louco, na luta com este problema de arranjar passagens. Por agora, desisti de conseguir os documentos para o casamento, confiado no padre Freitas, que prometeu casar-nos quando quisermos, com a boa compreensão desse exemplo de missionários católicos, que é o arcebispo D. Manuel Nunes Gabriel. As passagens constituem agora o objectivo de máxima prioridade. E nunca pensei que chegaria a sofrer tantas humilhações!
Nas agências de viagens, já não encontro ninguém conhecido. Quem me tratava destes assuntos — um bom amigo que acumulava as funções de vice-cônsul da Suíça — foi-se embora para a sua bela terra dos relógios e do turismo. E à secretária onde ele resolvia tudo depressa e bem, sempre com um dinamismo afável e eficiente, encontrei um negro fanfarrão, que me insultou soezmente:
— Espera pela tua vez, branco da tuge (a)! Se não sabes esperar que eu tenha avião para ti, vai a pé!
Não parti a cara daquele selvagem. Saí resignadamente e continuo a procurar quem me valha nesta aflição.
Já não sei o que hei-de dizer ao meu futuro sogro, que ontem surpreendi a limpar cuidadosamente a sua Walter 7,5. Mas não posso pensar em ver a minha gente naquela balbúrdia do Aeroporto. Hoje mesmo, encontrei lá o Carlos Sanches, que era sempre tão aprimorado no vestir. Trazia uma camisa bastante suja e exibia o ar sucumbido de quem anda a pensar no suicídio.
— Quando embarcas? — perguntei-lhe para o despertar daquele seu estranho alheamento.
— Sei lá! Quando Deus quiser e o diabo deixar. Mas daqui só saio para Lisboa ou para o cemitério... Tens um cigarro que me dês?
Estendi-lhe um AC, acendi-lho com deferência e ele pôs-se a fumar com sofreguidão.
— Estás assim tão abatido, Carlos?
— Como queres que esteja?
— Ainda continuamos vivos...
— Vivos para quê?! — disparou ele, cheio de raiva. — Nós /podíamos ter tomado conta de Angola. E seria bem melhor para brancos e negros. Mas deixámo-nos enganar estupidamente por uma corja de patifes. Agora, é aguentar!...
Calou-se a olhar para mim, sem que eu encontrasse uma palavra de ânimo para lhe dizer. Depois, baixou os olhos, acrescentando:
— Há seis dias que não posso tomar banho nem mudar de roupa. Devo cheirar bastante mal...
E afastou-se de mim,
virando a cara, talvez para que eu lhe não visse as lágrimas...
10.2 — Gama Ribeiro é preso
Chegou agora a vez do Gama Ribeiro ser preso.
Com aquele bigode farfalhudo de traga-mouros, é um coração onde cabe toda a gente. E escondeu, na sua bela casa da Rua Luís de Camões, entre o Hotel Trópico e o Hotel Tivoli, dois militantes da FNLA, fugidos à feroz perseguição do Movimento vencedor.
A mulher dele — uma bonita moça da Gabela — foi esta manhã ao jornal contar-nos que dois agentes da DISA (b) o levaram, horas antes do nascer do sol.
Disse à pobre senhora que tentaria averiguar o que se passava e vi-a partir com os olhos rasos de lágrimas. Anda grávida do primeiro filho do casal...
Logo que ela saiu, fui ter com o delegado do MPLA, que ocupa agora o gabinete do director, onde ainda se pode ver o belo retrato de António Correia de Freitas, pintado a óleo por Rui Preto Pacheco.
— Que há? — rosnou o importante personagem, que nos trata a todos como se fôssemos cães sarnentos.
— Prenderam o Gama Ribeiro...
— Quem é esse gajo?
— É aquele de grande bigode, que faz a secção económica...
— Bem... e depois?
— É um homem casado e um bom redactor deste jornal. Nunca fez mal a ninguém...
— O MPLA não prende quem nunca fez mal a ninguém — atalhou bruscamente o delegado. — É melhor teres cuidado com a língua, camarada!
— Eu não disse...
— Ouvi perfeitamente o que tu disseste!
— Mas...
— Acabou-se a conversa, camarada! Ou queres que te mande prender também a ti?...
E foi tudo o que obtive na minha tentativa de intervenção a favor de um bom companheiro de trabalho.
10.3 — Os sul-afrícanos
atacam
De repente, rebentou a notícia de que os sul-africanos atravessaram a fronteira-sul e já estão às portas de Moçâmedes. Com carros de combate e sofisticados meios bélicos, avançam irresistivelmente em duas colunas, uma ao longo do litoral e a outra em direcção ao planalto da Huíla.
Ao fim da tarde, o Santos Gouveia acompanhou-me a casa. E só depois de fechados no pequeno living, na presença de meu pai, enquanto a tia Isaura lidava na cozinha, é que eu soube o motivo por que me acompanhou.
— Tenho notícias do nosso director — anunciou com cara de quem espera alvíssaras.
— Despeja o saco! — pedi, interessadíssimo.
— Vieram por um construtor civil, agora residente em Joanesburgo, que passou esta manhã pelo Aeroporto, num avião da VARIG. O nosso director aconselha-nos coragem, porque as coisas vão sofrer uma grande mudança...
— Como? — quis saber meu pai.
— A entrada dos sul-africanos é combinada com a UN1TA e com a FIMLA. Esperam reconquistar rapidamente todos os portos do Sul e avançar até Luanda, antes da independência, para fechar o cerco à cidade, pela estrada da Barra do Quanza.
— Esperam... — repisei com cepticismo. — Também nós temos esperado muita coisa e acontece exactamente o contrário.
— Os sul-africanos não têm traidores nas suas Forças Armadas
— lembrou o Santos Gouveia, aceitando o uísque que meu pai lhe oferecia.
— Enviaram uma força militar muito convincente e há mesmo quem diga que já entraram em Moçâmedes...
— E a reacção internacional? — insinuou meu pai. — Na ONU e em todo o grupo afro-asiático, vai erguer-se um berreiro tremendo contra a «agressão sul-africana».
— As palavras não param as balas — sentenciou o nosso visitante.
—E, segundo o mesmo informador, esta operação tem o apoio secreto dos Estados Unidos.
— Fico ainda mais desconfiado — declarei eu. — Os norte-americanos quase sempre têm falhado nas ajudas que prometem. E os russos também não vão ficar quietos.
— Começam os grandes corvos a pairar sobre esta desgraçada terra — anunciou gravemente meu pai.
Mas o Santos Gouveia insurgiu-se contra o nosso pessimismo:
— Não é preciso dramatizar até esse ponto, caramba! Desde há muito que se esperava uma atitude da África do Sul, que já a devia ter tomado em 7 de Setembro, em relação a Moçambique. Agora decidiram-se e não são bebés que brinquem aos soldadinhos de chumbo. O MPLA não terá outro remédio senão render-se!
— A ver vamos... — fez meu pai, reticente.
O tempo vai decorrendo com uma lentidão exasperante, para esta pobre população, ansiosa por sair da tensão insuportável dos dias que precedem a independência, em que os boatos são a única coisa que abunda na capital de Angola.
A ponte aérea ganha um ritmo que ainda há um mês ninguém podia prever. Ë mais uma debandada, na história triste das independências africanas, pré-fabricadas na ONU.
Entretanto, o avanço dos sul-africanos é fulminante e parece imparável. Retomaram sucessivamente Moçâmedes, Sá da Bandeira, Lobito e Benguela; e marcham sobre Novo Redondo e Porto Amboim. Não repousam. Entregam à UN1TA as áreas limpas de FAPLAS e prosseguem para o Norte.
Os bisonhos soldados de Agostinho Neto, alguns com menos de quinze anos, fogem espavoridos desses grandes soldados brancos, que trazem armas terríveis.
Entretanto, começam a chegar a Luanda grandes carregamentos de material de guerra, enviado pêlos russos.
Que vai acontecer a esta bela cidade?...
10.4 — Luanda está cercada
Nas vésperas da independência, Luanda está cercada.
Com os sul-africanos bem perto da Barra do Cuanza, a UNITA nas vizinhanças de Cambambe e a FNLA no Cacuaco, o MPLA vê-se confinado na área da capital de Angola, prolongada por uma estreita faixa ao longo do Caminho de Ferro de Malange.
Totalmente dominado pêlos comunistas que fazem o jogo de Moscovo, o Governo de Lisboa suspendeu os Acordos do Alvor. Mas, por mais que assim o deseje, não pode entregar a maior província de Portugal a um movimento que não controla mais que uma ínfima parte do vasto território.
Para o dia da independência espera-se o pior. Diz-se que as Forças Militares Portuguesas embarcarão antes da meia noite de 11 de Novembro e que Holden Roberto só -espera por isso para iniciar o bombardeamento da cidade.
Surgem nas ruas os primeiros tanques russos e os primeiros soldados cubanos. Toda a gente os vê... menos o comandante Leonel Cardoso, a quem ainda compete o exercício da soberania de Portugal em Angola.
Entretanto, as milícias do Poder Popular, a quem prometeram as casas, os automóveis e as mulheres dos brancos, intensificam a violência, a pilhagem e o massacre. Há, sobretudo, uma tremenda vaga de luxúria em toda a parte. Praticam-se diariamente, à luz do dia, em plena rua ou dentro das moradias, centenas de estupros e desfloramentos, que não poupam ninguém, desde as crianças de poucos anos até às velhas septuagenárias.
Mataram a minha esperança de uma independência concreta para esta Angola a que tanto quero. Estão a estrangular o meu belo ideal de um País próspero para todos os bons angolanos, sem discriminação de raça ou condição social. Morre, antes de nascer, esta nova Pátria que tinha todas as condições para ser um dos mais ricos e progressivos estados soberanos do Continente Africano. Salazar e Marcelo Caetano tinham razão...
Em poucas semanas, passei da esperança ao desespero. Toda a minha coragem se esvaiu como o ar de um balão rebentado. Já não tenho outra ambição senão fugir desta caverna de ódio, com todos os que me são queridos, o mais depressa possível.
(a)
Merda, em Quimbundo.
(b) A polícia política do MPLA.