AS BOAS PALAVRAS
4.1 — A chegada das delegações
A chegada a Luanda da delegação da Frente de Libertação de Angola (FNLA) passou quase despercebida da grande massa da população. Veio, instalou-se e o seu chefe, Heidrich Vaal Neto, começou a falar num tom de moderação e maturidade política, surpreendeu muita gente, lembrada da dureza deste Movimento, durante a segunda quinzena de Março de 1961.
Na redacção do meu jornal, o Sousa Quevedo pareceu-me logo conquistado.
— Fala muito bem, este homem! — declarou sem hesitações.
— É um político — sentenciou o Santos Gouveia, reticente. — E, se é inteligente, um político sabe levar a água ao seu moinho.
— Já é saber alguma coisa — disse o Quevedo. — E eu, dos políticos da última colheita estou farto de ouvir disparates, quando não são baforadas de ódio. Este procede doutra maneira.
— Fala de outra maneira — corrigiu o Santos Gouveia sem disfarçar a sua hostilidade. — Espera pelas obras.
— Claro que todos devemos esperar pelas obras — concordou o outro. — Mas até essa esperança morre para os que desconfiam de toda a gente.
— Eu não desconfio de toda a gente — afirmou o Quevedo.
— Confias no MPLA — insinuei eu do meu lado.
— E tens alguma coisa com isso?! — refilou o Santos Gouveia, pronto para a contestação.
— Nada, menino. Absolutamente nada — declarei com ênfase. — Sempre fui respeitador das opiniões alheias. Mas, se não te importas de ouvir, também gostei das palavras do dr. Vaal Neto. Não há ódio nelas, e o ódio pode estragar completamente a independência de Angola.
— Já te esqueceste dos ataques da UPA em 1961? — perguntou ele de rompante.
— Todos temos muito que esquecer. E se
queremos a paz, é tolice
continuar a lembrar coisas da guerra.
— Há muitas maneiras de guerrear...
— Bem sei. Mas nunca a guerra deixa de ser aquele monstro de que falava o padre António Vieira. Se estás em maré de recordações trágicas, podes lembrar as atrocidades da última conflagração mundial, cometidas por alguns dos mais civilizados povos do mundo... E há ainda outra coisa que tu deves saber: é que os homens mais duros na guerra são, por vezes, os mais compreensivos na paz. Não é verdade?
Vieram depois as delegações do MPLA e da UNITA. E aí, as massas populares manifestaram-se em pleno.
A recepção aos representantes do MPLA foi um autêntico delírio. E, embora sem tanta gente, os filiados, aderentes e simpatizantes da UNITA, dois dias mais tarde, manifestaram um entusiasmo igual.
Em ambos os casos, logo que o avião tocou a pista, a multidão venceu todas as barreiras, invadiu a placa de estacionamento e transformou a escada de acesso ao transporte aéreo num incrível e barulhento cacho humano.
Encarregado da reportagem, vi-me inteiramente naufragado naquele mar de gente, perdi-me do meu fotógrafo e senti-me em riscos de sufocar na terrível compressa daquela vaga humana, que irresistivelmente rolava ao encontro dos recém-chegados.
A delegação do MPLA esperou mais de uma hora pela possibilidade de desembarcar. E, seguidamente, correu verdadeiro perigo quando os mais eufóricos se apinharam sobre o autocarro que a transportava à sala dos VIPS e a assistência receou que o tejadilho abatesse.
Tudo se repetiu à chegada dos delegados da UNITA, com a agravante de alguns incidentes, ocorridos antes, pela acção nefasta de agitadores estranhos ao Movimento. Quanto eu pude julgar, na confusão em que me vi envolvido por ambas as partes, a UNITA beneficiou de maior concorrência da etnia branca que, misturada à população negra, acompanhou a delegação até às suas instalações, num impressionante cortejo automóvel, com o habitual grazinar das motorizadas e a sinfonia das buzinas.
Em minha casa, logo após a chegada do MPLA, meu pai saudou-me com um riso triste:
— Deves ter passado um mau bocado, rapaz!
— Foi uma cena indescritível —declarei, ainda aturdido.
— Eu ouvi tudo pela rádio. Quando o repórter da Emissora Oficial emudeceu de repente, cheguei a pensar numa tragédia.
— Felizmente, tudo acabou bem.
— Um problema tremendo!
— Que problema?
— O controlo das massas populares...
— Gostaria que explicasse melhor...
— Basta que tires as conclusões do que se passou. A multidão quase impedia de desembarcar precisamente aqueles que tanto desejava ver e abraçar. E isto, apesar dos apelos dos seus líderes...
— O povo é assim mesmo.
— Pois é. Mas se isto acontece quando as massas populares vibram de alegria, imagina o que será se um dia reagirem pelo ódio.
— Os chefes dos movimentos emancipalistas também sabem disso. Todos eles querem que a independência se realize em paz.
— Acredito. Mas querer não é poder. Tudo depende desta fase de diálogo e mentalizacão em que vamos entrar. Os três movimentos precisam de conjugar todos os seus esforços nesta tarefa complexa e difícil. Mas parece que também estão divididos entre si.
— Juntam-se agora em Luanda. Isso ajudará muito, se não lhes faltar uma boa colaboração dos que não pegaram em armas, mas querem esta terra próspera e feliz. Devemos esperar, pai! E ajudar...
— Pois claro! E que Deus confirme a nossa esperança! 4.2 — «Ê por todos, patrão!»
Desprezando as tonalidades que as ideias assumem no pensamento de cada homem, pode afirmar-se que nos três movimentos emancipalistas, agora presentes em Luanda através das suas delegações, existem os três rumos tradicionais da política: o Centro, a Direita e a Esquerda. E é segundo esta definição de valores que se vai dividindo a parte da população que não pegou em armas e constitui a esmagadora maioria dos pretos e mestiços de Angola.
Recordo, a propósito, a resposta de um velho jardineiro bailundo e velho amigo de meu pai, a quem perguntei se era da FNLA, do MPLA ou da UNITA.
— É por todos — declarou logo ele, lançando olhares receosos para todos os
lados. — Agora, o povo tem de ser por todos os que lutaram.
Fiquei a pensar nas sibilinas palavras daquele velho assustado. Nisto deram as promessas de uma livre e aberta consulta às populações, na base de um homem-um voto.
Todos os principais responsáveis pelo 25 de Abril prometeram repetidamente que seriam os povos do Ultramar Português a decidir o seu futuro. Mas agora afirmam que os movimentos emancipalistas (os turras, evidentemente...) são os únicos representantes dos povos de Angola. E comportam-se de tal modo que a grande massa dos angolanos, apavorados e desprotegidos, numa terra sem autoridade e sem lei, já se dizem de acordo com quem lhes parece mais forte, porque pode matá-los sem que ninguém lhes valha.
Será este o prometido referendo?!
4.3 — As inevitáveis mudanças
Antes de mais nada, um homem deve compreender os seus semelhantes. E não os compreenderá, fechando-se no círculo das suas convicções, por mais sinceras que sejam, como quem se defende com a barreira de altos muros ou com as pontas dilacerantes do arame farpado.
Abrindo os ouvidos do corpo e do espírito às ideias de quem lhe fala, um homem não arrisca a sua verdade subjectiva: apenas a põe em prova, confrontando-a com uma verdade diferente, como quem tempera o aço ao rubro, mergulhando-o na água fria.
Há quem não saiba escutar, porque as suas ideias são tão vivas que repelem o diálogo. Defeito ou qualidade? Nem sequer me permito julgar. Mas não gosto de falar a quem só ouve a própria voz. E por isso me calei perante o Gouveia, com quem não sei discutir, embora seja seu verdadeiro amigo.
Não duvido da sua inteira sinceridade, quando afirmou que esta é a hora de todos os angolanos optarem por um dos movimentos de libertação. Compreendo mesmo o plano de honestidade em que se apoia esta sua opinião. E até admito que seja ele quem está na razão, para o que subjectivamente basta estar de acordo com a sua consciência.
Eu faria o mesmo, se assim o tivesse decidido, aberta ou clandestinamente, antes do 25 de Abril. Mas a verdade é que nessa altura, eu não decidi. Decidir agora quando, nos Movimentos, as semelhanças interessam mais do que as diferenças, seria da minha parte uma atitude oportunista, que é muito diferente de ser uma atitude oportuna.
Estou certo? Estou errado? Estou a dizer o que penso. E é tudo.
Digo o que penso, mas continuo de olhos bem abertos para o que acontece à minha volta e com o espírito preparado para as inevitáveis mudanças. Mudanças que já começam a ver-se nesta cidade capital. E, principalmente, no seu rosto humano.
No espaço de poucas semanas, o povo dos subúrbios, que representa mais de dois terços da população luandense, emergiu da penumbra em que vivia. O aumento do poder de compra, resultante dos primeiros aumentos nos salários mais baixos, ampliou a sua influência no mercado de consumo. E já com a certeza de vir a ter uma representação autêntica no exercício do poder político, entrou activamente no diálogo das ideias, com uma eloquência bem característica dos povos bantus.
Muitas surpresas aconteceram já neste domínio, pulverizando velhos preconceitos ou ideias construídas sobre a resignação de gente que durante séculos refreou as palavras. A primeira, talvez a maior dessas surpresas, veio com a chegada das delegações dos movimentos emancipalistas, quando se viu como sabiam falar de paz e enfrentar as perguntas mais ardilosas dos jornalistas, esses mesmos homens que, na opinião de muitos, só sabiam dar tiros e montar emboscadas, na dura estratégia da guerra de guerrilhas.
Mas também depois se viu como, de entre as massas populares, se erguiam oradores de inesperado poder comunicativo, chefes de bairros com notáveis qualidades de organização e bom senso, toda uma extensa gama de valores humanos que prudentemente se refugiavam no anonimato do silêncio.
A minoria branca, quase toda se repartiu entre dois exageros: ou pulou para a frente dos Movimentos, agitando-se em atitudes de mais papista que o Papa, ou caiu numa atitude de expectativa, cheia de ansiedades e preocupações, amargurada pela injusta campanha que lhe move a imprensa de Lisboa e Porto, resignada a colaborar com as novas autoridades, pedindo apenas o privilégio de continuar a viver e a trabalhar nesta terra.
4.4 — A greve dos camionistas
Num dos primeiros dias de Novembro de 1974, chegou à Cela uma enorme coluna de camiões, logo rodeados por grande multidão, alarmada pela notícia de que tinham sido atacados.
— Não — esclareceu o motorista Manuel António Luís do Pranto. — Nós não fomos atacados. Mas, a alguns quilómetros do Dondo, encontrámos o cadáver do Pedro Calha, que ontem tinha partido sozinho, com o seu camião carregado de cimento, a caminho de Nova Lisboa. Antes de o matar, vazaram-lhe os olhos...
E, a terminar aquela história de horror, gritou desvairadamente:
— Quem nos protege, a nós que só queremos trabalhar?! Apareça alguém, do Exército Português, do MPLA, da FNLA ou da UNITA, apareça alguém para defender quem precisa de ganhar o pão de seus filhos!...
Como ninguém respondesse a este e a outros apelos semelhantes, os camionistas, a meados desse mesmo mês, efectuaram uma breve paralisação dos transportes rodoviários, como aviso, e anunciaram que, se até ao fim de Novembro lhes não garantissem um mínimo de segurança, não sairiam mais para a estrada.
Esta declaração saiu no meu jornal, com grande relevo. E, logo de manhã, fui até à Portugália, na mira de comentários que me ajudassem a escrever um artigo para o dia seguinte.
— É uma brincadeira de mau gosto — sentenciava o Silva Carvalhais, modesto empregado de escritório que repentinamente descobrira a sua vocação política.
— É simplesmente uma greve — rectificou o Sanches Quintão, que o malogro do 7 de Setembro, em Lourenço Marques, tornara conflituoso. — E a greve, agora, é um direito dos trabalhadores. Ou não é?!
— Neste caso, constitui um crime contra a economia de Angola — rosnou o Carvalhais.
— E quando a UNTA decide impedir a descarga dos navios acostados ao Cais de Luanda, o que é?! — refilou o Quintão.
— Tudo isto é lamentável — interveio um despachante oficial. — Por exemplo, essas paralisações da actividade portuária já nos estão a tornar a vida mais cara.
— A paralisação da camionagem pode redundar numa autêntica tragédia — declarou o Carvalhais. — São cerca de 2400 camionistas que ameaçam entrar em greve em 30 do corrente...
— Mas note que apenas pedem um mínimo de protecção para eles, na estrada, e para as famílias que deixam nas suas casas em Luanda — lembrou o despachante. — Parece-me justo.
E voltando-se ostensivamente para mim, acrescentou:
— Que nos diz o sr. jornalista?
— Repito as suas palavras de há pouco — respondi sem hesitações. — Tudo isto é lamentável. Mas também representa um sério aviso para os novos governantes.
Angola tem de saber aproveitar todos os valores humanos que actualmente constituem a sua força de trabalho. A greve anunciada para o fim deste mês, a verificar-se, pode trazer consequências terríveis, porque deixará Luanda no resvaladouro para a fome. E, no entanto, trata-se apenas de 2 368 camionistas, quase todos brancos, num pequeno sector de actividade. Assim se verifica como é difícil prescindir dos meios humanos de que Angola presentemente dispõe. Todos são bem poucos para as imensas tarefas do futuro.
— Irra, que grande discurso! — exclamou o Carvalhais, com alguma ironia, batendo as palmas.
— Não é discurso: é apenas uma opinião que me pediram — emendei com veemência. — Angola funciona como um delicado e complexo organismo vivo, com sectores essenciais, onde qualquer lesão afecta a saúde de todo o conjunto. Se os responsáveis pelo futuro desta terra não compreenderem a tempo esta realidade, não tardará muito que tenham de enfrentar gravíssimos problemas...
Entretanto, é justo dizer que, nessa emergência, os responsáveis mostraram compreender a situação.
Na iminência de uma ruptura que poderia começar com a atitude dos camionistas, tanto os membros da Junta Governativa como os delegados dos movimentos emancipalistas conjugaram os seus esforços para convencer os camionistas a continuar a garantir a circulação de produtos e mercadorias essenciais à vida das populações.
Preocupadíssimos, talvez amedrontados com a perspectiva de um levantamento geral da grande massa dos angolanos brancos, pretos e mestiços, evitaram todos as palavras ou atitudes que pudessem acirrar os ânimos, prometeram tudo, concordaram com tudo.
E a greve dos camionistas não se concretizou.
4.5 — «Se começam aos tiros uns aos outros...»
A presença das delegações dos três Movimentos em Luanda parece estar a ser benéfica em muitos aspectos.
O Rosa Amaral, cofiando a franja loura, concorda que sim senhor, que talvez haja muita verdade nisso, desde que se jogue com os máximos e os mínimos e se obtenha a média ponderada.
Com estas palavras sibilinas, assim filtradas pela barba decorativa, quer o meu colega dizer que o encontro dos grupos que se hostilizaram nas matas também envolve certos riscos.
— Se começam aos tiros uns aos outros, é o diabo! — avisa ele com evidente preocupação.
— E porque hão-de começar aos tiros?! — perguntou a Mariluz que assistia à nossa conversa. — Vê só o que dizem as siglas: MPLA — Movimento Popular de Libertação de Angola; FNLA — Frente Nacional de Libertação de Angola; UNITA — União Nacional para a Independência Total de Angola. O grande objectivo é sempre o mesmo.
— Mas há as circunstâncias de modo — lembrou o Rosa Amaral. — Os três Movimentos querem a mesma coisa, mas de modo diferente. E é daí que podem nascer as complicações...
— As divergências ideológicas só azedam com o vinagre do facciosismo — opinei eu. — Há muita gente que sabe discutir lideras sem as transformar em pedradas.
— Mas não é preciso ser faccioso para sustentar vigorosamente um determinado tipo de regime político. Basta estar convicto da sua verdade. E há convicções igualmente sinceras nas ideias mais antagónicas.
— Isso é verdade — concordei. — Até posso demonstrar com um facto recente. Tive há dias em minha casa um moço estupendo, tão delicadamente atento ao que eu dizia da conjuntura angolana, que despejei todo o meu saco de esperanças, dúvidas e receios, com aquela satisfação de falar que sempre nasce de haver alguém que parece escutar-nos com agrado. E o meu visitante tinha um sorriso calmo no rosto simpático... Falei, falei, falei, até que julguei correcto pedir-lhe também a sua opinião. E sabem o que aconteceu?
— Ele abundava nas mesmas ideias... — apostou a Mariluz.
— Ele estava nos antípodas do meu pensamento. E assim mo foi dizendo, primeiro num sereno encadeamento de raciocínios, depois com tanta propriedade de termos, com tal poder de comunicabilidade, com tão evidente e forte convicção, que imediatamente me apercebi estar diante de um tribuno, completamente seguro da sua verdade e brilhantemente dotado para a transmitir a outros homens. Ouvi dele as afirmações mais contrárias às minhas ideias, mas sempre fascinado pelo calor em que as envolvia. Desmantelou, uma por uma, as grandes realidades em que firmemente me apoio — Deus, Pátria, Família — sem me atingir pessoalmente nas minhas convicções. Simplesmente disse o que ele próprio pensava, os ando do mesmo direito que antes me concedera, evitando magoar-me e sem tentar qualquer forma de aliciamento. Formidável!
— Mas, afinal, que era ele? — quis saber o Rosa Amaral.
— Disse-mo com simplicidade, no fim da sua longa dissertação: declarou-se um «anarquista puro».
— Foge! — exclamou o meu colega, piscando um olho à Mariluz. — Olha com quem anda metido este teu
amigo!...
Não gostei do tom daquelas palavras, nem da piscadela de olho que as sublinhou, nem do sorriso com que a Mariluz correspondeu. Não gostei de nada disso, nem consegui descobrir a razão de não gostar... Senti-me confuso e perplexo e reagi em conformidade:
— A que vem tamanha espantacão, pá? Quis apenas dar-te um exemplo real da possibilidade de convicção sincera em todos os quadrantes da política...
— Está bem — condescendeu o Rosa Amaral, desinteressado de abrir controvérsia. — Mas a verdade é que fugimos do primeiro assunto que era importante. Há, entre os movimentos emancipalistas, ideologias que vão desde a direita à esquerda, passando pelo centro. Juntam-se agora em Luanda e noutras cidades de Angola, com homens armados. Tu dizes que é um facto benéfico. E eu digo que veremos...
— Pois, esperemos para ver, seguindo a pragmática dos norte--americanos.
E assim se encerrou a questão, porque, sem saber como, eu tinha
perdido a vontade de continuar a conversa.