SEXTA  PARTE

AS OPÇÕES DA INDEPENDÊNCIA

 

 

 

 

30.     RECURSO   ÀS   ARMAS

DEPOIMENTO   DE   URIA   SIMANGO

Na fúria suicida com que se pretendeu entregar Moçambique ao império moscovita foram preteridas, como já disse, diversas opções que conduziriam Moçam­bique à Independência. Os apregoadores da libertação da pobre gente colonizada, pretenderam levar de rompante a cabo a entrega da autonomia política de uma tão grande parcela, oferecendo os seus destinos a um partido armado, mediante uma série de assinaturas rabiscadas após dois dias de amistosas conversações.

Estava em causa, e grande parte do povo moçambicano isso entendeu na pri­meira hora, a substituição da soberania portuguesa, exercida paternalmente, pelo jugo despótico do comunismo soviético. E entendendo, preparou uma rebelião nacio­nalista.

No segredo de reuniões camufladas e fugindo às represálias da vigilância exer­cido pêlos representantes das Forças Armadas e do seu Movimento, que protegiam a entrega de Moçambique à Frelimo, foram elaborados planos rebeldes e consultados alguns países que podiam apoiar a iniciativa.

O intuito era expulsar a Frelimo após a sua penetração em Moçambique, na fase em que Portugal, completada a entrega, teria forçosamente de lavar as mãos da contenda interna que se geraria. Seria o povo moçambicano, de todas as raças, em guerra aberta contra um Partido, que de pouco podia fazer valer as suas forças, enfraquecidas sem o emblema da libertação nacional e de luta contra o colonialismo, situações que deixariam de existir e que até então justificavam auxí­lios e protecções de diversos países comunistas. A luta deixaria de ser uma luta de emancipação, mas um confronto armado interno, causado por divergências políticas.

A revolta contra a Frelimo foi planeada durante meses pelos conjurados, animados de verdadeiro espírito nacionalista. Não estava em jogo uma luta pelo poder. Este haveria de ser delineado pelo próprio povo moçambicano em referen­dum, mas uma enérgica negativa à aceitação de uma nova forma de colonialismo, identificada com o sistema político dos países totalitários.

Contava o Movimento com o importante apoio de elementos das Forças Armadas, especialmente dos quadros e soldados moçambicanos veteranos da guerra e antigos e recentes elementos das tropas especializadas, criadas pelo general Kaúlza de Arriaga: os «G.E.» (Grupos Especiais de Combate) e os «G.E.Ps.» (Grupos Especiais Páraquedistas), aquartelados no Dondo mas ramificados por toda a coló­nia. Eram notórias, ainda, as adesões dos veteranos e actuais Comandos, escolados e treinados em Montepuez, e que formavam diversas companhias que, antes do 25 de Abril, estiveram sob o comando do major Jaime Neves.

Todos estes experientes militares, que passariam a lutar não num exército colo­nialista mas numa força nacionalista que condenava o colonialismo, estavam ao dispor do movimento revolucionário, e enquadrariam o povo leal aos dirigentes dos diversos partidos políticos que se haviam aliado no Partido de Coligação Nacional.

O movimento revolucionário seria dividido em duas fases, denominadas Plano Fase I, a qual compreendia a preparação de fundos para compra de armas, a politização das massas, e a angariação de militares para o engajamento na luta para a tomada do poder democrático; o Plano Fase II, representaria a intervenção bélica, em data a determinar.

Durante a primeira Fase estava a ser tentado o apoio logístico de outros países, nomeadamente da África do Sul e da Rodésia, tentativa que não obteve, a prin­cípio, resultados satisfatórios, ou pelo menos a contento dos líderes do movimento, por estes países não desejarem comprometer-se. O movimento estava, porém, pronto a intervir em Setembro de 1974, mês em que foi assinado o Acordo de Lusaka.

Pelo interior da colónia vivia-se um ambiente de febril expectativa, e nos países vizinhos, portugueses e moçambicanos aguardavam com excitação o momento de actuar, propícia pela natural confusão que proliferava nas hordas da Frelimo, causada com a mudança radical da situação de terrorista rural, em luta contra a colonização do seu país, para a de soldado normal de um governo independente.

Os meses de paz que antecederam o Acordo também trouxeram benefícios ao Movimento. Os guerrilheiros da Frelimo, acostumados aos sacrifícios propor­cionados por longa vida de luta de guerrilhas na mata, fugindo a qualquer con­tacto com os grandes centros, foram engolidos pelas cidades e aburguesaram-se. Prosseguiram, porém, as acções de violência, de saque e de vício, que praticavam no interior moçambicano contra humildes campesinos, o que na sociedade evoluída, onde passaram a viver, não era tolerado com o mesmo cabecear displicente dos chefes da Frelimo. Estes queriam, a princípio, e para não assustar as futuras vítimas, mostrar-se mais civilizados do que na verdade eram, pois a maioria dos guerrilheiros que preenchiam os seus quadros eram adolescentes de quinze e dezasseis anos, e adultos que haviam abandonado a sociedade legal para fugirem à responsabilidade de crimes comuns que haviam praticado.

A Frelimo teria de afastar da ideia dos moçambicanos os corpos encontrados queimados após haverem sido espoliados dos seus bens, os frios assassinatos dis­pensáveis numa guerra que se intitulava política, os saques nas lojas e cantinas do interior, o ataque sistemático a pacíficos camionistas, a desumanidade das minas, e outros procedimentos cruéis que eram apanágio da Frelimo.

Para afastar a imagem de todo o passado criminoso que o ideal de uma guerra de libertação jamais podia proteger, necessário se tornaria retirar das fileiras grande parte dos seus guerrilheiros, os quais, automaticamente, se colocariam ao lado dos nacionalistas, introduzindo estes, por seu lado, elementos seus de confiança entre os novos recrutados pela Frelimo.

Todo este trabalho de sapa estava em curso, aderindo ao movimento ainda os «O.P.Vs.» (Organização Provincial de Voluntários) e os soldados do Corpo de Milícias que em grande número se espalhavam por todo o Moçambique, desde o mais pequeno agredado humano à maior cidade.

Porém, para que este movimento encontrasse o apoio internacional que lhe era necessário, teria que contar com a não ingerência das forcas armadas portu­guesas, sendo consultado, directa e indirectamente, o Governo de Portugal que, após o 25 de Abril, se encontrava dividido por conflitos internos.

Havia a esperança, contudo, de que o esforço dispendido em mais de dez anos de luta não seria esquecido num abrir e fechar de olhos por grande parte dos elementos das Forças Armadas. A dialéctica demagógica, o confusionismo, a frase fácil reeditada em cada discursata dos tribunos políticos portugueses, não teriam convencido muitos militares portugueses da inutilidade da guerra estúpida e cruel onde viram morrer os companheiros, e onde assistiram a actos de heroismo pra­ticados por naturais moçambicanos. Estúpida e inútil ela teria sido se o seu des­fecho proporcionasse ao povo moçambicano a mudança de tutela, a troca de colonizador, desmascarada na pertinácia dos auxílios moscovitas.

O movimento esperava, deste modo, que o Governo de Portugal, não arro­jando para longe dos seus ombros as responsabilidades contraídas em quinhentos anos de presença civilizadora, impedisse que o Governo moçambicano se visse reduzido à situação de partido único, situação anti-democrática que nenhum governante por­tuguês permitiu para Portugal. Ou que, pelo menos, não lutasse contra a vontade do povo moçambicano que queria ser livre e democrático, que queria escrever com as suas mãos o seu destino, caminho que o povo português atabalhoadamente encetava.

Os «leaders» do movimento anti-Frelimo acreditavam que o dr. Mário Soares, não impingisse a Moçambique, contra a vontade do seu povo, um governo tota­litário social-fascista, desde que o povo, de forma bem clara, mostrasse não ser esse o seu desejo.

Os líderes do movimento anti-Frelimo aceitavam a posição da Frelimo num Governo como partido, maioriotário ou minoritário, conforme as massas populares em referendum resolvessem. Os líderes do movimento anti-Frelimo eram contra a Frelimo-ditadura, contra a falsa apregoadora da total simpatia e adesão popular.

O recurso às armas seria a derradeira solução, esgotados todos os meios dialécticos para afastar o conquistador armado, o açambarcador do poder. O movi­mento não era, portanto, uma força agressora mas, ao contrário, uma força defen­sora do povo, composta pelo povo e por ele enquadrada.

Assim não aconteceu.

O comunismo que os dirigentes militares portugueses sociais-fascistas não con­seguiram impor em Portugal, mau grado as mais atrevidas tentativas, impuseram na totalidade do Ultramar, inventando em Moçambique o 7 de Setembro que veio causar uma onda de confusão no movimento revolucionário, determinando a sua destruição. O «7 de Setembro» foi o golpe de misericórdia que dispersou os líderes do movimento, exilando-os por diversos pontos do globo, ou que se agregaram a grupos populares para iniciarem outras formas de luta, aquelas que nesta repor­tagem já foram suficientemente descritas. O «7 de Setembro», simples atitude de desafrontamento patriótico sem cariz político, foi o foco incendiário, inteligente­mente aceso e aproveitado pêlos extremistas moçambicanos com o apoio dos comu­nistas portugueses, que retirou ao povo moçambicano a possibilidade de afastar a Frelimo do palco político moçambicano, ou de, pelo menos, reduzi-la a um simples partido tirando-lhe as possibilidades de ser o Partido.

Uria Simango, que foi presidente interino da Frelimo após o assassinato do dr. Eduardo Mondlane, e que era em Setembro de 1974 presidente do Executivo do P.C.N., descreveu do seguinte modo a surpresa com que foi acolhida a rebelião do Rádio Clube e as suas consequências destruidoras do movimento revolucionário a que me referi. As palavras de Uria Simango, que a exemplo do método que empreguei com os discursos e intervenções do Presidente Samora Machel, respeito totalmente na sua forma ortográfica, foram pronunciadas no campo prisional de Machingwea, na Tanzânia, primeiro calvário da senda tormentosa deste nacionalista, ainda hoje internado num campo de morte da Frelimo, no Niassa.

Foram captadas e registadas por jornalistas, moçambicanos e tanzanianos. Posso confirmar a sua veracidade, e sei que elas vêm trazer bastante luz ao momento escuro e difícil que então se vivia em Moçambique.

Uria Simango referiu-se a algumas individualidades portuguesas, esclarecendo, também, as suas posições em Setembro de 1974. Este testemunho é forçosamente um dos poucos documentos históricos da época, e foi pena que Uria Simango tivesse sido sonegado ao convívio humano pela Frelimo, pois muito mais do muito que ainda hoje permanece confuso seria esclarecido e facilitaria a, mesmo assim difícil, busca de elementos, aos futuros historiadores que empreenderem as pes­quisas necessárias para a história da descolonização de Moçambique, visto que a história da colonização já se encontra demasiadamente historiada e adjectivada pela grande maioria dos escrevinhadores do nosso tempo.

Mas Uria Simango calou-se, desarmado. O vento agora sopra da Rússia, a brisa da vitória e do ajuste de contas apontam, porém, para o povo Moçam­bicano. Um dia, mais tarde. Mas em breve...

Passemos às afirmações de Uria Simango:

«Depois da formação do P.C.N., uns cinco dias antes do 7 de Setembro, Murupa me disse que havia um senhor que queria me ver naquele dia em casa dele. Quando chegou a hora, fui. Foi-me introduzido como dr. Freitas. Ficámos os dois sem Murupa. Informou que havia um plano de mudar o Governo de Moçam­bique militarmente. A responsabilidade dele era de arranjar armas e dinheiro — que estava em processo—; queria saber se o P.C.N. apoiaria o tal projecto, o que res­pondi afirmativamente.

Ele disse que não se sabia ainda quando é que isto seria até que tivesse o que estava a arranjar. Foi um encontro muito breve e separámo-nos. Este senhor era do F.I.C.O. e residia em Lourenço Marques.

Na véspera de 7 de Setembro, houve outro encontro em casa do Murupa com Carvalho a pedido dele. Este é que expandiu o programa do Freitas. Disse que quando as armas chegassem a Lourenço Marques seriam carregadas por camiões via Beira até ao Norte do país. Tanto este como o outro não disseram onde as armas seriam compradas.

O Carvalho é que disse que esperava que tudo estaria pronto pêlos dias 20 de Setembro, que a partir desse dia qualquer coisa podia acontecer. Também informou que estava a trabalhar na unificação das várias unidades de portugueses — comandos e outros — que dentro de pouco tempo teriam reunião com eles e aí sairia o comando.

Tendo mostrado concordância ele disse que me manteria informado do desen­volvimento. Aqui terminou o encontro e só viemos a nos encontrar na Rádio.

Neste plano contava-se que todo o trabalho seria feito pelos brancos — tropa do exército português. O P.C.N. não estava em condições de fornecer ainda homens para trabalho desta magnitude.

Corria boato em Moçambique (Beira) que o gabinete português estava divi­dido, em que o grupo de Spínola era por muitos partidos e eleições, mas o outro queria só um Partido, tanto em Moçambique como em Angola... Dizia-se também que o Spínola tinha autorizado Moçambique e Angola para tomar conta dos gover­nos e organizar eleições que teriam todo o apoio dele pessoalmente.. Por este motivo dizia-se que o Spínola estava maluco porque confrontava uma grande oposição aos seus planos.

A respeito do apoio aos grupos de Moçambique e Angola foi confirmado pelo senhor Gomes dos Santos quando ele relembrou a delegação especial de Lisboa, que o Presidente tinha dito na presença deles que os ministros não estavam a executar as suas ordens como são dadas. Isto foi durante a ocupação do Rádio. O Gomes dos Santos citou o Presidente como tendo dito: Estes merdas dos ministros.

Na Beira soubemos da tomada da Rádio nesse mesmo dia 7 de Setembro de 1974. Ninguém no P.C.N. sabia ainda do Plano Fase I. Três pessoas que eu devia informar, Gumane, Kambeu e Banda não estavam na cidade quando fui infor­mado. Os dois primeiros já tinham partido para a Suazilândia e o Banda estava em Nampula ainda esperado para chegar.

Não tinha passado uma semana quando falei com os senhores Freitas e Car­valho e conclui que não era o Plano que tinha apresentado e além disso nenhumas das preparações previstas teriam sido feitas. Todavia fiquei esperando detalhes, que nunca chegaram.

Por volta das onze horas do dia 8 chegou o Costa a minha casa para dizer que o senhor Haider precisava da minha pessoa, que havia uma chamada de Lourenço Marques. O Haider informou que o Hanife tinha telefonado informando que o P.C.N. era precisado e que o avião para nos levar estava no aeroporto da Beira. Os meus camaradas, sem noção do Plano Fase I concordaram.

Quando cheguei a casa do Haider já lá estavam todos preparados e infor­mados. O Banda já estava na cidade e também lá em casa do Haider. Os seguintes membros do Executivo do P.C.N. partiram para a Beira: Basílio Banda, Narciso Nbule, Mateus Gwenguere, Uria Simango e Manuel Lisboa.

Da Suazilândia vieram: Paulo Gomes e Arcanjo Gatabeu. A Joana Simeão chegou na mesma noite de origem desconhecida.

Ficámos surpreendidos quando o grupo do Carvalho (Convergência) perguntou quem nos tinha chamado. O Hanife que nos podia ajudar a responder não estava presente porque era um dos activistas técnicos, não sei em que cidade. Estava o Grillo na mesa e o Gomes fazia muitos movimentos. Os membros da Convergência não eram activistas, Carvalho e Vasco.

A primeira reunião foi com o chefe de Segurança (Faria) dentro da Rádio. Tratava-se de entregar a Rádio e o Grillo que era o porta-voz do grupo insistia que deveria haver uma outra reunião em que a Frelimo deveria estar presente para que se reformule a constituição do Governo de Transição.

O membro do Governo disse que isso era impossível. Essa reunião não tendo resolvido o problema ficou para ser discutido mais tarde na mesma noite quando o chefe militar chegasse (Barbosa).

Não tendo convencido o Grillo e outros para entregar a Rádio o Barbosa fechou a reunião prometendo que a reunião continuaria no dia seguinte de manhã com a delegação de Lisboa. Na Rádio estava toda a Delegação do P.C.N. e com o Barbosa estávamos eu e o Banda. A Joana veio mais tarde sem ter sido convidada.

No dia seguinte a reunião com os enviados especiais do presidente Spínola teve lugar. Do lado do P.C.N. estavam: Uria Simango, Paulo Gumane, Basílio Banda e Kambeu. Dos nossos amigos estavam Grillo, Gomes dos Santos, Vasco e outros que não cheguei a conhecer. A delegação de Lisboa estava chefiada pelo tenente-coronel Dias. Do P.C.N. falámos eu e Gumane. Dos amigos, Gomes dos Santos e Grillo.

Ë nessa reunião que Gomes dos Santos revelou que o Presidente Spínola tinha dito no encontro que tiveram em Lisboa. O tenente-coronel respondeu depois dos nossos discursos, que a sua missão era de ouvir e reportar ao Presidente e este, dentro de 24 horas depois do seu regresso, havia de responder. Falou-se de uma outra reunião mais tarde, e disseram-nos que nós, africanos, não éramos precisados, não era necessário que fôssemos. Nessa reunião, além do Gomes e Grillo não sei quem mais participou, e não soubemos o que foi discutido.

Logo de manhã cedo no dia seguinte, iniciaram uma reunião na Rádio sobre a entrega da Rádio. A delegação do P.C.N. saiu da Rádio e da cidade no dia 14 de Setembro para a Beira, Nampula e Suazilândia, composta por Kambeu, Gwen­guere, Narciso e Simango, Banda e Gumane e Hanife, respectivamente. O resto também saiu da Rádio no mesmo dia e a Rádio foi entregue.».

Estava encerrado o capítulo primeiro da História de Moçambique como país, um capítulo fértil em tragédias como já descrevi. E enquanto pela cidade de cimento corria o sangue, as ruas se cobriam dos maiores dramas e de actos de selvagem ferocidade, entrelaçadas com as mais tristes comédias engendradas pêlos extremistas, um outro drama acontecia: O movimento revolucionário nacionalista, alheio completamente à intentona do Rádio Clube, desmoronava. Desfazia-se. Deixando no seu lugar a mesma vontade do povo de fugir à ditadura que ia entrando no país ao som das pancadas de um novo Mollière, a política marxista adaptada a Moçambique por Samora Machel e o seu grupo.

O povo faltara ao encontro com a revolução. Mas apenas a adiava. Ela con­tinuava vibrando dentro de cada moçambicano. Dos que permaneciam em Moçam­bique os seus trabalhos de sapa revolucionária, minando, roendo os frágeis alicerces políticos em que o Partido assentava o seu domínio despótico. Dos que foram for­çados a se afastar da sua pátria, organizando-se fora dela, nas mais diversas para­gens do globo, prontos a responderem à sua chamada, dilatando pelo mundo toda a revolta à permanência em Moçambique de um Governo imposto por Portugal. A ambiguidade portuguesa definia-se nas posições tomadas. Os moçambicanos não podiam contar com Portugal para resolver os seus problemas.

Todo o povo moçambicano sabia que abandonar a luta era eleger a incerteza, o caos, e consequentemente facilitar a permanência de Moscovo, de Cuba, da influên­cia estrangeira no país. Era sacrificar o povo a novos tormentos, a uma moderna colonização. Detentora de um poder ilegal, por impopular, a Frelimo iria iniciar a longa embriagues ditatorial que tantas vítimas causou. Estava afastada a ideia de plebiscito. O povo português, nas terras metropolitanas olhava todo numa direcção — a democracia, caminhos que o povo moçambicano, por vontade por­tuguesa, não poderia trilhar sem guerra.

Em Portugal desfazia-se a máquina comunista mas a sua obra ficava. Mos­covo havia vencido. A África Austral estava quase nas suas mãos.

31.     GENERAL   SPÍNOLA:

INDEPENDÊNCIA   COM   REFERENDUM

No biénio negro que segue o 25 de Abril —1975 e 1976 —, em virtude da ameaça comunista cada vez mais presente em Portugal (especialmente no período gonçalvista) e das intentonas de regresso ao regime fascista — o povo português decidiu-se, guiado por campanhas, a confundir os seus valores.

Pode-se afirmar que os dirigentes de Portugal, e mesmo os que transportavam as melhores e mais honestas intenções, temiam as consequências de qualquer das suas mais inocentes atitudes políticas, pois elas, fatalmente, eram interpretadas duplamente pelas correntes extremistas.

Para não lhe chamarem fascista um dirigente marxizava as suas atitudes, mas antes, ou depois, tomara, ou tomaria, fórmulas fascistas para o seu proceder, para não ser chamado de comunista.

Este o ambiente de delírio político, de euforia ideológica, que acompanhou os meses de governo do general António de Spínola.

O general Spínola, oficial íntegro e herói condecorado na guerra africana, mas, sobretudo, honesto cidadão português, tomou as rédeas do poder por ordem da Revolução, por escolha dos capitães de Abril, tendo como política Portugal e por interesse ideológico a salvação da Pátria.

Fora o seu livro «Portugal e o Futuro» a bandeira da Revolução do 25 de Abril. E nessa sua obra o general mostrava que, sendo a libertação dos povos africanos do jugo colonial uma das questões básicas para a sobrevivência de Portugal, essa libertação não poderia significar a escravização dos mesmos povos a uma nova ditadura.

O livro, erguido como bandeira na luta contra o regime, quiçá responsável maior pela sua queda, que foi lido como cartilha pêlos revolucionários que ideali­zaram a nova República Portuguesa, seria mais tarde condenado por alguns desses mesmos revolucionários. O primeiro Presidente da República da era chamada pós-fascista, não foge ao estigma fascista e resigna do cargo.

A sua resignação seguiu-se à entrega de Moçambique à Frelimo e será erro separar as duas históricas ocorrências, afastadas apenas por duas semanas. O gene­ral António de Spínola havia sido traído.

Seria a melhor solução? O período Gonçalvista veio provar que foi pelo menos a melhor opção. O general António de Spínola continuava quanto a mim, leal à sua consciência e à Pátria que sempre servira com honra.

Ao resignar deixou um testamento político que é um símbolo de honradez, de dignidade e de lucidez. Nele, como sempre, a descolonização foi recordada:

«Toda essa política e consequente processo de descolonização foram detur­pados; numa intenção deliberada de os substituir (os princípios programáticos do Programa do M.F.A.) por medidas antidemocráticas e lesivas dos reais interesses das populações africanas.

Esteve igualmente o espírito do M.F.A. promover a harmonia entre todos os credos políticos; mas essa harmonia jamais será possível quando, por um lado, os chefes declarados de alguns Partidos políticos fazem apelo ao bom-senso, e por outro lado os respectivos grupos de acção enveredam pela via da coacção psicoló­gica através dos grandes meios de Informação, e até da violência, em flagrante negação da liberdade e a pretexto da insinuação caluniosa logo lançada sobre os seus oponentes.»

Repito: «Toda essa política e consequente processo de descolonização foram deturpados; numa intenção deliberada de os substituir por medidas anti-democráticas e lesivas dos reais interesses das populações africanas»...

Pois bem: Os valores foram tão confundidos e é tanta a fuga a responsabilidades, que é o general Francisco da Costa Gomes que viria a afirmar em Novembro de 1976, cuidando haver sido esquecida toda a sua actividade na descolonização, numa entrevista concedida ao «Jornal de Notícias»:

«Acho que o ex-general Spínola deveria remeter-se a um silêncio, tanto quanto possível passivo, da actividade que possam levar a qualquer perturbação na situa­ção política deste país.»

Costa Gomes, após declarar que foi o general Spínola o único responsável pela descolonização de Moçambique e que, relativamente a Angola, «também teve responsabilidades que não pode enjeitar», acentua:

«Foi também ele que fez as primeiras conversações com Mobutu e com Nixon, de que ninguém sabe o conteúdo e os compromissos que nelas se tomaram e, portanto nós — os que o seguimos—, tivemos logo uma preocupação; eu pelo menos: foi não tomar resoluções sobre a descolonização por «motu próprio». Criei logo uma comissão de descolonização, onde todos os assuntos eram discutidos e onde se tomavam resoluções que se vislumbravam como as melhores. E algumas até eram votadas.

Quanto à subversão ter sido organizada pelas cúpulas marxistas da Revo­lução, devo dizer que nunca pertenci às mesmas. Ê uma afirmação gratuita do general Spínola.»

Mas será mesmo?

Quase não valeria a pena falar da posição do general Costa Gomes na descolonização de Moçambique e do restante Ultramar português. O povo de Moçambique sabe que o general Costa Gomes tomou parte nas acções mais trá­gicas da batalha da descolonização em campo oposto ao general António de Spínola, que foi forçado a ceder frente à enorme pressão governamental.

E provo:

Foi o general Costa Gomes que organizou a ida a Dar-es-Salam de um grupo de pseudo-democratas de Moçambique, para preparar o ambiente das dis­cussões oficiais entre a Frelimo e as autoridades governamentais portuguesas.

E quem eram esses democratas?

Todos eles pertenciam ao Partido Comunista Português, ou situavam as suas ideias políticas ainda mais à esquerda daquele Partido.

O povo de Moçambique não esqueceu a tomada de posição do general Costa Gomes na Beira e em Vila Pery, quando o verdadeiro povo moçambicano — não aquele acomodado em Dar-es-Salam — se manifestou contra a dúbia actuação das Forças Armadas Portuguesas, dominadas então por um grupo de oficiais extre­mistas.

E o general Costa Gomes também não pode ter esquecido o que lhe foi dito por uma comissão do povo ...

Mas há mais:

Existe a sua afirmação que o condena: «Criei logo uma comissão de des­colonização, onde todos os assuntos eram discutidos...».

E com que poderes a criou?

          Não   existia   em   Portugal   um   Presidente   da   República,   sobre   quem   cairia essa responsabilidade? Não seria essa sua atitude uma admirável habilidade polí­tica em que se nomeava dono absoluto do poder? Não seria uma espécie de traição ao general Spínola, quando este general, ocupando o mais alto cargo nacional, se mostrava favorável à Independência moçambicana pelo caminho de um referendum nacional?

Como pode estranhar o general Costa Gomes que ainda hoje não tenha conhecimento dos assuntos tratados nas conversações havidas entre o general Spínola e Mobutu, e o general Spínola e o presidente Richard Nixon «de que ninguém sabe o conteúdo e os compromissos que se tomaram...»?

Não demonstra a atitude do general António de Spínola que já não confiava no apolicismo do general Costa Gomes, e confirma que, embora com a lentidão a que era forçado pelo seu espírito de honesta lealdade, o general António de Spínola sentia desmantelar-se ao seu redor, as ideias que enformaram o 25 de Abril?...

Ninguém pode acreditar que foi o espírito de democrata apartidário que guiou o pensamento do general Costa Gomes ao nomear a sua Comissão de Descolonização. Ë flagrante a sua opção partidária. Foram ouvidos os heróis do 25 de Abril ao tomar a sua resolução? Pode distribuir-se a sua responsabilidade pêlos oficiais António Ramos, Almeida Bruno, Mendes Pereira, Manuel Monge, Neves, Lechener Fernandes, Virgílio Varela, Araújo Marques, Vítor Carvalho, Salgueiro Maia, Jaime Neves, Benjamim de Abreu, Rebordão de Brito, Marcelino da Mata e outros que não me vêm à memória?

Claro que não. A Comissão de Descolonização era sua (sua, dele, general Costa Gomes) ...

Pode agora o general Costa Gomes vangloriar-se da sua inculpabilidade na descolonização portuguesa, culpando um homem que a previu de modo completamente inverso, de um modo que satisfaria todo o povo africano e apenas des­contentaria os negros comunistas que hoje, em obediência a Moscovo, tentam alargar o império neo-czarista ao resto do sub-continente?

É agora, que a hecatombe africana é inevitável, que o general Costa Gomes quer arranjar culpados. Mas porque não os vai procurar nos membros da sua Comissão de Descolonização? A resposta é fácil: Porque os teme.

E quem pode ser responsabilizado pelo 28 de Setembro de 1974, pela renún­cia do general Spínola, renúncia que levou o general Costa Gomes à Presidência da República? Será também que o general António de Spínola o responsável por esses acontecimentos, que mais não são do que elos da mesma cadeia?

A posição política do general Costa Gomes em Setembro de 1974 é evidente para todos, mesmo para aqueles que o sectarismo ou a ambição tenham tempo­rariamente cegado. O general António de Spínola não teve apoio na forma de independência que idealizou para o Ultramar português do homem em quem mais confiava, o general Costa Gomes, o seu camarada, o seu amigo pessoal.

Não teve apoio em Setembro, mês da Independência de Moçambique, mês da renúncia do general António de Spínola. Podem restar algumas dúvidas que o gene­ral foi traído? Podem os portugueses e os moçambicanos duvidar da sinceridade das palavras do general Spínola, que ficarão na história da descolonização portu­guesa: «Toda essa política e consequente processo de descolonização foram detur­pados ...»?

32.     OTELO   SARAIVA   DE   CARVALHO: A   NECESSÁRIA   CONFISSÃO

A posição do general António de Spínola é, aliás, comprovada por diversos responsáveis pêlos destinos de Portugal e das suas colónias em Setembro de 1974.

Otelo Saraiva de Carvalho, um oficial do exército português, moçambicano por nascimento, confessaria, ainda antes da sua candidatura à Presidência da Repú­blica, a sua intervenção na oferta de Moçambique ao império soviético, definindo, embora involuntariamente e levado pela euforia da sua vitória, a justeza das inten­ções federativas do general António de Spínola.

Um pequeno livro, lançado em Lisboa, dá-nos a conhecer — e não podem res­tar dúvidas pois foi ditado pelo próprio — qual foi o papel de Otelo Saraiva de Carvalho — o braço direito do general Costa Gomes — após o 25 de Abril.

Embora muito ficasse por dizer no livro do progressista Otelo de Carvalho, que se afirmou uma amodernada imitação de Fidel Castro, o que ali revela é mais que suficiente para se saber que foi um dos grandes responsáveis — senão o maior — da negociata com a Frelimo: a entrega de Moçambique. Mas, repare-se, a sua assinatura não consta no Acordo de Lusaka. Ele era apenas um vigilante, um conselheiro, um braço forte, do general Costa Gomes.

Após declarar ser na altura — Setembro de 1974 — tarde de mais para levar avante a ideia federativa do general António de Spínola, Otelo de Carvalho responde à seguinte pergunta de «Cadernos Portugália»:

«Cadernos Portugália» — Essa seria a justificação para que nas primeiras nego­ciações os negociadores políticos fossem sempre acompanhados por negociadores militares. No seu caso, por exemplo, quando foi a Lusaka...

Otelo de Carvalho — Exactamente. Comigo, no entanto, o general Spínola ficou bastante desiludido. Em Lusaka, eu vi desde logo que a única solução era o que se veio a efectivar — não havia outra possível. O dr. Mário Soares, muito cauteloso e com elevado espírito diplomático, durante as negociações não se comprometeu de modo nenhum, falou sempre com firmeza mas com «sentido político». Eu expus as minhas ideias numa linguagem aberta sem rodeios. Senti, claro, que diplomati­camente estava como costuma dizer-se a «espalhar-me», mas não era capaz de falar doutra maneira, a partir de certa altura calei-me. O resultado foi que Samora Machel e os homens da Frelimo ficaram um bocado desconfiados com o dr. Mário Soares e a mim adoraram-me... Quando chegámos a Lisboa, o dr. Mário Soares pediu-me que fosse com ele a Belém dar contas ao general Spínola do que se passara. Mário Soares expôs o mais cautelosamente possível o problema ao general e, depois, passou-me a palavra. Eu disse claramente quais as condições da descolonização e referi a posição da Frelimo que me parecia ser a única correcta e possí­vel. O general Spínola «atirou-se ao ar». «Tem de haver outras soluções, não é nada disso», gritava o general, «não quero ouvir mais nada; você o melhor que tem a fazer é calar-se». Limitei-me a reforçar as minhas afirmações, insistindo em que a realidade levava-nos a ter de aceitar outro tipo de descolonização que não o previsto pelo general, até porque as nossas tropas (e isso eu sabia-o bem) não estavam dispostas a continuar na mesma situação. Atingira-se um tal ponto de saturação que o 25 de Abril surgia como o fim de um pesadelo. De facto, se que­ríamos sair de Moçambique de cabeça levantada, tínhamos de ser nós a tomar a iniciativa. Caso contrário corríamos o risco de ter de lá sair com uma derrota vergonhosa às costas. De resto, só concordando com a Frelimo tínhamos hipóteses de evitar que se cavasse um fosso total entre nós e o futuro Moçambique.

«Não senhor, não pode ser assim — dizia o general Spínola — porque se for preciso, eu, ao meu nível, falo com o Nixon e ele manda tropas americanas para lá». Chamei-lhe a atenção para o risco de uma vietnamização do conflito em Moçam­bique que, com certeza, nem ao próprio Nixon interessaria. «Mas se não for o Nixon a África do Sul dá-nos tropas» — continuava o general Spínola que procurava o máximo de argumentos para evitar a solução preconizada, ou seja, uma solução política (pela qual de resto o Exército português lutava há dez anos) que teria de se encontrar através de um partido que fosse o mais representativo do povo moçam­bicano e esse partido era a Frelimo que, embora não represente todo o povo era, sem dúvida, aquele que havia lutado pela independência da sua terra, que sofrera na carne todos os horrores de uma guerra de dez anos. O nosso interlocutor válido era a Frelimo, não só pela sua grande representatividade como também pelo facto de ter sido o partido que lutou demoradamente pela independência, e uma vez que ela estava disposta a assumir a responsabilidade de encetar a árdua caminhada para a construção do seu novo país, era a ela e com ela que teríamos de chegar a acordo, (sic)

Nas palavras de Otelo Saraiva de Carvalho está a absolvição completa do general António de Spínola, se alguma vez esteve em jogo, na consciência dos bons portugueses, a sua honesta intervenção na descolonização portuguesa. Mas nota-se, ainda, laivos de cobardia da parte de um oficial do Exército português que não podem macular a honra dos seus pares.

Não pode estar em jogo a honra militar. Jogou-se apenas conveniências par­tidárias, mercê de uma paciente e trabalhosa infiltração comunista nos quadros do oficialato português. Mas, mesmo assim, a desonrosa actividade dos comunistas sem Pátria, que trocaram o Hino Nacional pela Internacional comunista, não cobre, apenas suja, a heróica e patriótica acção dos soldados de Portugal.

O Exército de Portugal, cumprindo o critério anti-patriótico de Otelo de Car­valho, não só perdeu a guerra mas, também, perdeu a paz. A guerra prossegue em Moçambique, em Angola, em Timor, e Portugal, na sua pequena dimensão atlântica, luta agora, estoicamente, para que não perca a paz.

Não era a solução de Otelo Saraiva de Carvalho o caminho para a paz mas sim a vereda para a desonra. Mas como foi seguido por outros oficiais na sua euforia progressista? O general Silvino Silvedo Marques, responde:

«Os capitães portugueses, do quadro permanente, profissionais, sem estarem derrotados em qualquer teatro de operações, e muito menos no seu conjunto, recusaram enfrentar militarmente um inimigo, que há 14 anos era combatido por oficiais que já não eram capitães, entendendo que a solução da luta era política. Como foram os jovens militares levados a este atitude é problema que será certa­mente averiguado e conhecido. Cansaço de capitães (que não de majores antigos, tenentes-coronéis e coronéis), de oficiais, depois importantes, de engenharia, de trans­missões, de Cheret, da administração militar, até da marinha, parece explicação sem fundamento. De qualquer forma, perdida a guerra a 25 de Abril, restava, quanto a mim, não perder a paz, nem para o que ficasse de Portugal, nem para o que era então o seu ultramar, cujas populações de muitas etnias, se haviam unificado por séculos de convivência e de miscegenização física e cultural. Ganhar a paz, após o 25 de Abril, era levar as populações a autodeterminarem-se, mediante o processo reconhecido no Mundo como válido para o efeito: o Referendo».

E o último governador-geral de Angola, general Silvino Silvério Marques, refere-se à descolonização na mesma entrevista que concedeu ao semanário «O Jor­nal», afirmando:

«Somos muitos os que sabemos que as forças militares que se portaram com geral dignidade e mesmo, amiudadamente, com excepcional bravura, em 14 anos de dura guerra, foram levadas a escrever as páginas mais vergonhosas da história mili­tar do nosso povo, ao mesmo tempo que se caracterizava como original e exemplar o processo da chamada «descolonização». Desviados das suas funções, a genera­lidade dos quadros militares desacreditava-se, entretanto, passando a fazer, sem com­petência, política, economia, administração... O desprestígio interno e externo atin­gido pelas Forcas Armadas, em resultado de tudo, foi sem paralelo na nossa his­tória contemporânea.

Muitos vivemos, com o coração a sangrar, a profunda tragédia (a maior de sempre do nosso povo) dos que, deixados atirar ao mar, tudo perderam: entes que­ridos, mortos ou ultrajados, bens de uma vida inteira, e até, verdadeiramente a própria Pátria que já não encontram.

Estruturalmente militares, muitos sentimos a injustiça, e a vergonha, da acusa­ção, cada vez lançada com maior iinpudor sobre as Forças Armadas, que atribui à derrota, não sofrida, a razão da entrega de todo o Ultramar (o que estava em guerra e o que se encontrava em paz), por políticos profissionais, civis uns, usando farda outros, a Movimentos, por coincidência todos marxistas. E não compreen­demos que os mesmos que têm revelado as manipulações sofridas, à luz do dia, após o 25 de Abril, tenham escrúpulos em as admitir anteriormente, na penumbra da conspiração, concebidas a partir de «comités», gabinetes, chancelarias. Preferem todos ser cúmplices e suportar o labéu de derrotados, que sabem não terem sido, a dissociar-se de manipulações e manipuladores de facto.

Gostávamos de poder ser indulgentes ao recordar a preocupação havida com o prestígio das Forças Armadas e a indignação apregoada perante a eventualidade delas servirem pêlos políticos de então de bode expiatório de um insucesso no Ultramar, e verificar a contradição entre as intenções e a tristíssima realidade pro­vocada. Sem esquecer que à repulsa pela ultrapassagem dos camaradas milicianos, não respondeu igual escrúpulo na ultrapassagem (e de que forma) dos camaradas do quadro permanente ...

Comprometido em tais antecedentes e sequelas do «processo da descolonização» existe no nosso país um grupo de homens que, sem lugar a dúvidas, carrega o des­prezo (e até, perigosamente, o ódio) de milhões de concidadãos. Alguns até insul­taram a História, comparando, sem pudor, a sua «descolonização», com a maior epopeia do povo português: os Descobrimentos.

Ultimo Governador-Geral de Angola nada tenho  com esse grupo.»

33.     KENETH   KAUNDA:

MOÇAMBIQUE,   COMUNIDADE   DE   CULTURA   LUSA

A Independência de Moçambique não interessava, porém, apenas a moçam­bicanos e a portugueses. Muitos países do mundo africano esperavam ansiosos o término da guerra, para solucionarem os seus problemas internos, olhando interessadamente as antigas colónias portuguesas por a elas se encontrarem ligados por interesses comuns, ou por, em alguns casos, dependerem manifestamente dos des­fechos das guerras de libertação do continente.

Entre estes destacavam-se o Malawi e a Zâmbia, e este último país desejava acabar com a guerra o mais rapidamente possível, sendo opinião do presidente Keneth Kaunda que a via mais fácil e acessível seria a negociação pacífica com o Governo de Portugal.

Kaunda tentou, por diversas vezes, estabelecer com Lisboa, e nas mais diver­sas circunstâncias, vantajosos acordos, expondo com clareza as suas intenções medianeiras.

A Zâmbia, antiga colónia britânica — Rodésia do Norte — encontra-se afastada do mar, dependendo, para o escoamento das suas riquezas — especialmente o cobre —, dos portos angolanos e moçambicanos, nomeadamente dos portos de Lobito (Angola), Beira e Nacala (Moçambique). Deste modo, os movimentos de libertação africanos, ao requererem o seu apoio logístico à Zâmbia — que Keneth Kaunda, pressionado não podia negar — colocaram em desagradável posição económica aquele país que necessitava, para sobreviver, dos acessos ao mar apenas possíveis pêlos portos sob dominação colonial portuguesa.

          Por seu lado Portugal, fechando os olhos ao dúbio comportamento zambiano, continuou a permitir o escoamento do cobre daquele país pêlos seus portos, ao mesmo tempo que nos cais de Benguela e da Beira, eram descarregados milhares de tone­ladas das mais diversas mercadorias destinadas à Zâmbia, quase a totalidade pro­veniente de países de política ocidental, especialmente dos Estados Unidos da América, país que também era e é o principal comprador do cobre zambiano, a ele se seguindo o Japão, a França e a Alemanha Federal.

A Zâmbia, deste modo, empregando claramente uma política dupla, auxi­liava, com bases de apoio logístico no seu território, os guerrilheiros moçambi­canos e angolanos, e não só os movimentos que viriam a tomar o poder político naqueles dois novos países — foi o país que mais auxiliou a Coremo, o movimento de libertação nacional moçambicano rival da Frelimo — mas quantos erguiam as suas armas contra o colonialismo português, continuando a servir-se dos portos portugueses para o escoamento das suas riquezas e para o seu abastecimento económico, perante o dar de ombros consentidor dos governos de Salazar e de Marcello Caetano.

A sobrevivência económica da Zâmbia caracterizava-se, aliás, por uma autên­tica caracterização política. Permanecendo como um bloco que procurava garantir uma certa influência no sub-continente africano, permitia a penetração do capi­talismo internacional nas suas fronteiras, ao mesmo tempo que não menosprezava a ideologia marxista, exportada em diversos auxílios pelas duas grandes potências comunistas mundiais — a União Soviética e a China. O regime de Keneth Kaunda ficava, deste modo, de mãos livres para escolher, no momento oportuno na con­juntura de guerra fria que o mundo atravessava, o apoio mais forte para debelar a sua frágil economia, embora o seu sentir político fosse notoriamente pró-ocidental.

Voltando à posição do Governo zambiano perante Portugal e a Frelimo recordo, entre muitos casos que, numa das minhas muitas reportagens efectuadas nos recintos portuários da Beira, em 1970, detectei, a bordo de um navio britânico, para serem desenvencilhadas naquele porto português, três viaturas ligeiras e uma ambulância destinadas à Frelimo, provenientes de um dos países nórdicos.

Havendo no atrevimento zambiano um claro interesse de notícia — para mim — redigi-a, mas ela não passou da Censura. As viaturas, porém, foram normalmente desenvencilhadas no dia seguinte e seguiram o seu destino — Lusaka — atraves­sando um bom pedaço de território moçambicano — português ainda —, em vagões da Trans-Zambézia Railways para o Malawi, de onde seguiriam por estrada para a Zâmbia. E note-se: Claramente, para que toda a gente visse, o destinatário conti­nuava exposto — Frelimo.

Havia, pois, uma oficializada permissão portuguesa na assistência à Zâmbia e nas relações entre Portugal e aquele país, mesmo com prejuízo de Portugal, disfarçada, por vezes, nas actividades diplomáticas do cônsul do Malawi, parado­xalmente um cidadão português, o eng.° Jorge Pereira Jardim.

         Entretanto, as relações entre a Zâmbia e a Rodésia do Sul, que caminhavam de más para péssimas, vieram a ser totalmente cortadas, conduzindo ao inevitável desfecho do encerramento das fronteiras entre aqueles dois países. As minas zambianas afastavam-se ainda mais dos mercados internacionais, por os acessos aos portos portugueses serem praticados, em grande parte do percurso, pelo caminho de ferro rodesiano.

A situação não podia ser mais caótica para a Zâmbia. As pressões interna­cionais obrigavam Keneth Kaunda a decretar o suicídio económico do seu país. A Zâmbia continuava a ser uma peça do jogo manejado pelas influências das grandes potências.

O governo de Keneth Kaunda passou a caracterizar-se pela progressiva agudi-zação da situação social. As ajudas que apareciam não resolvem os problemas. A inflação aproximava o país da catástrofe. A alta dos preços era geral para todas as mercadorias de uso corrente, e muitas, de primeira necessidade, desapareciam dos mercados. Greves e manifestações estudantis turvavam a calmia de Lusaka. E Keneth Kaunda usa de habilidades para enfrentar o problema.

O país, a que lhe era possível recorrer na aflição — a União Soviética—, de nada lhe pode valer. Que lhe pedisse armas e as teria. Que lhe solicitasse homens e receberia os desempregados que enxameavam as cidades, vilas e aldeias cubanas ... Estava aberto o caminho para a expansão comunista chinesa na Zâm­bia, já presente na África Austral, na vizinha Tanzânia.

Só a China, vestida com as roupagens de fada milagreira, era capaz de accionar o fenómeno da salvação económica da Zâmbia. E assim nasceu o Cami­nho de Ferro Tanzam, que, atravessando imensas regiões desérticas de África, unia a Zâmbia e o seu cobre aos portos do Oceano Indico na Tanzânia.

Economicamente, o gigantesco caminho de ferro milagreiro era um desastre. Mas ele permitia à China a infiltração no país de muitos milhares de técnicos chineses, que, imediatamente, rodearam a construção ferroviária de outras inicia­tivas económicas previamente programadas que iam compensando, ou pelo menos amortizando, o desperdício de verbas que a iniciativa ferroviária consumia.

O valor do gesto altruísta chinês passou a ser pesado pela China apenas na balança política. A sua vitória era dupla: O seu prestígio trepava na África Aus­tral, ao tempo que caía em descrédito a potencialidade soviética. Mas, repare-se: Não decrescia, na política de Keneth Kaunda, a posição ocidental, marcada pêlos Estados Unidos da América.

A situação económica da Zâmbia continuava, mesmo assim, precária. A infla­ção, galopante. Mas Keneth Kaunda não perde o controlo da situação e os chi­neses, já instalados no país, efectuam estudos económicos, tentam erguer a agri­cultura, aproveitam as zonas florestais, disfarçando, em todos os auxílios, que a sua maior influência — o Caminho de Ferro Tanzam — de pouco valeria à Zâmbia.

          O escoamento dos minérios pelo Tanzam era moroso, caro, e o porto de Dar-es-Salam não estava apetrechado para garantir o normal escoamento de minério que os mercados compradores exigiam. E, porquanto o porto da Beira também se mostrasse pequeno para armazenar toda a mercadoria destinada à Zâmbia, mais uma vez Portugal, por intermédio do consulado do Malawi, encontrou soluções de emergência para o problema de Keneth Kaunda, oferecendo todas as possibilidades de escoamento que o caminho de ferro malawiano podia oferecer até a um transbordo, naquele país, para transportadores rodoviários.

Como já disse, a Zâmbia empreendia, desde a sua Independência, uma jogada política mistificando simpatia a todas as ideologias para atrair favores. Entregava-se, porém, conscientemente, à política pró-ocidental, pois não lhe convinha, nem era favorável aos seus interesses económicos — os mercados compensadores da venda do minério — mais vizinhança marxista na África Austral do que aquela que já existia.

Lembro, para que melhor se entenda a lógica em que Keneth Kaunda baseava a sua inclinação política, que a África Austral se encontrava dividida em mosaicos políticos que formavam um irregular mural. Enquanto a Tanzânia era dominada por um governo pró-chinês, os futuros dirigentes de Angola mostravam tendência marxista soviética — tendência que se viria a concretizar com a Independência. A Rodésia, com um governo pró-ocidental, encontrava-se numa situação periclitante, atacada por quatro grupos de libertação de diversas tendências políticas — um marxista, um maoista, um não alinhado, e um pró-ocidental — enquanto o Malawi prosseguia, sob o domínio vitalício do dr. Hasting Banda, a sua política ocidental. Os restantes países (com excepção de Moçambique que também mos­trava tendências marxistas em alguns dirigentes mas não na totalidade da Frelimo nem no seu sector mais importante), nomeadamente a Botswana, o Leshoto e a Suazilândia eram também de política ocidental, rumo que Keneth Kaunda gostaria de ver ser seguido pelo futuro Moçambique independente.

Os sonhos de Keneth Kaunda iam, porém, ainda mais longe. Admirando a política multi-racial portuguesa, bem diferente da política inglesa e alemã que influíram no sub-continente, ele desejava que Moçambique se transformasse num país de cultura lusitana — ocidental, portanto—, uma repetição do milagre do Brasil. E ao tempo que auxiliava a Frelimo, que lentamente se ia marxizando, aceitava quaisquer outros movimentos subversivos contra o colonialismo português, não desesperando de encontrar, a meias com Portugal, uma solução pacífica, nego­ciada, que conduzisse o país à situação de não alinhamento, com tendências ociden­tais, mais favorável a contrabalançar as influências que se sentiam pesar em toda a África.

Tentou o presidente Keneth Kaunda abrir os olhos a Portugal em diversas ocasiões, levando-o a que aceitasse a sua mediação que oferecia na intenção de conduzir Moçambique a um regime democrático e nunca a um regime comunista integrado no imperialismo soviético e chinês. E dava garantias da sua sinceridade.

O que faria mudar Keneth Kaunda a seguir, a ponto de ser no seu país que Moçambique recebeu das mãos de Portugal o alvará de colónia soviética?

Keneth Kaunda não mudou, mas não tinha outra opção. Moçambique era empurrado para o domínio russo pelo governo de Portugal, eleito por si próprio sem referendum nacional, e pela comissão de descolonização nomeada pelo gene­ral Costa Gomes — um português como os outros sem procuração nacional — sob as ordens do Partido Comunista Português.

Qualquer oposição do dr. Keneth Kaunda às directrizes dos governantes portugueses seria considerada pelos observadores africanos como uma demonstração de luta contra o grito de liberdade que ecoava pelo mundo africano e pêlos mer­cados onde se encontravam os vendilhões, que compravam, vendiam e negociavam as antigas possessões do império português — a O.N.U. e a O.U.A.

O dr. Keneth Kaunda teria que aceitar, contra as suas tendências políticas, contra os interesses do seu país, contra os alicerces de estabilidade do sub-continente africano, a entrega de Moçambique a Moscovo. Do mesmo modo o dr. Keneth Kaunda teria de fingir ficar feliz com a oferta de Angola ao império comunista, tentada, desde ó início, pêlos homens da descolonização do general Costa Gomes, processo manigante que o general António de Spínola, isolado, sem apoio dos seus pares, tentou ingloriamente evitar nas tão discutidas conversações privadas com Mobuto do Zaire e com Richard Nixon.

Melo Antunes chegou a temer o obstáculo de Savimbi. E chegou a mostrar temor, tentando-o aliciar para as hordas moscovitas, tornando mais forte o movi­mento comunista de Agostinho Neto. Não lhe era possível usar os processos moçam­bicanos e aliciar com a morte ou com o silêncio dos campos de reabilitação da Frelimo os não comunistas contrários a Samora Machel e usou com Savimbi as balas de açúcar tão do agrado comunista. Savimbi não caiu e a luta sob a sua direcção continua em Angola, mas o essencial, entretanto, estava conseguido. O governo angolano era comunista.

Recordo, como achega, as recentes declarações de Jonas Savimbi, da Unita, concedidas ao «Fígaro», e esquecidas pela grande imprensa portuguesa — especial­mente pela estatizada—, a respeito do empurrão que Melo Antunes não disfarçou, mas que Savimbi soube evitar, para cair nos braços dos novos czares da Rússia. Savimbi falava de Agostinho Neto mas, mais uma vez, foi colocado em foco o nome do negociador Melo Antunes, um dos maiores responsáveis pêlos dramas impostos aos povos das antigas colónias portuguesas:

«Neto é um comunista. Foi por isso que eu não aceitei a proposta feita por Melo Antunes, em Lusaka, para organizar em Viena, uma conferência secreta entre russos, Neto e eu próprio.»

Podia o dr. Keneth Kaunda, sem se comprometer politicamente perante o mundo atento aos seus gestos e atitudes, resistir à armadilha que espreitava as colónias portuguesas e que fora engendrada por Moscovo, que tinha do seu lado um grupo de portugueses internacionalistas comandados pelo general Costa Gomes?

Não.

           De todos os cantos do globo, em orquestração, erguiam-se vozes ratificando o espírito descolonizador dos novos portugueses. Quaisquer divergências ou críticas não seriam toleradas se essa era a vontade portuguesa. A opinião política mundial era unânime e Keneth Kaunda não pôde sugerir emendas à intenção portuguesa. Apenas apoiá-las, ou não. O mundo apregoava que o futuro de Moçambique se delineava promissor e auspicioso e com a derrota das ideias de Keneth Kaunda o Ocidente perdia a sua principal figura de proa e o comunismo russo reavivava a sua infiltração no continente.

Keneth Kaunda cedeu. Mas cedendo continuou a ser o mais lúcido cérebro da linha da frente negra da África Austral, daquela linha da frente que reafirma, constantemente, o seu compromisso em apoiar a luta armada pela libertação do Zimbabwé (Rodésia), como a única maneira de propagar a fé marxista pelo con­tinente Sul a seguir, ao mais moderno império mundial — o comunismo soviético.

Para Moscovo o desenrolar dos acontecimentos no sub-continente africano foi o triunfo e a plenitude. Valendo-se da atmosfera de optimismo e de nacionalismo, a Rússia desempatou o seu potencial de forças com o Ocidente, criando novas bases estratégicas na rota do Cabo. Mas no silêncio do seu gabinete, quando se desfazem nos ouvidos do dr. Keneth Kaunda as vozes, que não escondem ódios mas fiel­mente os traduzem, de Július Nyerere, de Samora Machel e de Agostinho Neto, o presidente da Zâmbia deve recordar, com pena, o insucesso de todas as suas iniciativas e dèmarches para fazer nascer, nas terras africanas que caminham para palcos dantescos, um novo e portentoso Brasil de cultura lusa, cristão, chamado Moçambique.

E entenderá que as soluções que não foram aceites, teriam trazido a paz e o progresso aos quinze milhões de negros das duas maiores colónias portuguesas e a segurança aos portugueses que ali residiam, e serviria de travão ao avanço comunista na África Austral, que alastrará o sangue, o terror, a incerteza, a miséria, o caos, aos seis milhões de negros rodesianos e às duas centenas e meia de milhares de brancos que povoam aquela antiga e tão conturbada ex-colónia inglesa.

Resta apenas a imagem central do «complot» comunista ainda de pé. A des­truição da influência ocidental será tentada. Para já os movimentos de libertação que, medrosos e trôpegos, fazem teatrais aparições nos tablados sul-africanos são marxistas e a campanha internacional já foi urdida. Os quatro milhões de brancos sul-africanos e os vinte e quatro milhões de negros do mais forte e rico país afri­cano serão a tentativa mais arrojada da União Soviética, que apenas poderá ser sustida por uma violenta e definitiva acção do Ocidente.

O dr. Keneth Kaunda sabe que a União Soviética olha a única fatia que lhe falta mastigar da África Austral, estendendo o seu domínio até ao Cabo. Sabe que os países pró-ocidentais do sub-continente são os mais pequenos e mais fracos agora. A defesa da política ocidental era afirmada pela presença da cultura por­tuguesa em Angola e Moçambique e hoje o último baluarte é a África do Sul. Se este cair sob o domínio de um governo marxista-negro a África está conquistada pelo império soviético e o Ocidente mais perto do seu fim.

O dr. Keneth Kaunda sabe isso e tentou evitar a tempo o drama que se avizinha e do qual é difícil prever as consequências. Mas a História, que condenará os vendedores do império português que incendiaram a África Austral, registará a sua oposição, disfarçada mas activa, ao crime que, conscientemente, Portugal cometeu por intermédio de um grupo de nacionais auto-nomeados dirigentes.

 

34.     PLANO   DE   LUSAKA:

CAMINHO   PARA  A   PAZ

No dia 13 de Setembro de 1973, o dr. Keneth Kaunda, auxiliado por Marx Chona, passava para o papel o seu Plano de Lusaka para ser apreciado pelo Governo de Portugal. Seria seu portador o cônsul do Malawi, eng.° Jorge Pereira Jardim, então nas boas graças do governo de Marcello Caetano.

Alguns dirigentes da Frelimo haviam tido prévio conhecimento do Plano e se não o aplaudiam, aceitavam-no pelo menos.

A Frelimo era assolada pela crise que já descrevi e a solução encontrada pelo Presidente da Zâmbia punha termo aos fantasmas da derrota que acompa­nhavam muitos dos seus chefes.

O Presidente maoista da Tanzânia, também tinha conhecimento do Plano e sobre ele havia discutido com Kaunda em diversas reuniões. Para Nyerere, a não concretização do avanço russo no sub-continente era meio caminho para agradar aos proprietários da sua simpatia — a República Popular da China — e Moçambique seguiria depois, na paz, a inclinação política que lhe aprouvesse, ou que mais se enquadrasse na forma de sentir do povo moçambicano. Aliás, uma nação de influência lusitana implantada no meio do continente elevaria as possibilidades de equilíbrio político, favorecendo todos os territórios vizinhos.

Dividía-se o Plano em dois documentos distintos. No primeiro, o Presidente Keneth Kaunda descrevia o ponto de vista da Zâmbia na evolução dos territórios africanos portugueses, com vista à procura do caminho da paz, com honra, sem ressentimentos que viessem mais tarde a motivar o renascimento de atritos entre os dois povos — o português e o autóctone.

Desconheciam os autores da descolonização exemplar o Plano de Lusaka do dr. Kaunda? ...

Creio estar fora de hipóteses o seu desconhecimento pois ele chegara a alguns dirigentes portugueses. O que aconteceu foi que os planos de descolonização, disse­cados pelo grupo nomeado pelo general Costa Gomes, eram outros e bem diversos, como se depreende do teor do Acordo de Lusaka, assinado um ano depois em 7 de Setembro de 1974, onde não são ressalvadas quaisquer cláusulas que exprimam a intenção de salvaguardar os interesses dos portugueses residentes na colónia, onde não é protegida a cultura portuguesa, nem a memória dos seus mais altos valores.

Foi sob a «protecção» do almirante Vítor Crespo — um dos membros da Comissão de Descolonização do general Costa Gomes — que todos os monumentos portugueses foram apeados com raiva, e alguns destruídos ou danificados. Não escaparam à sanha destruidora os monumentos de Camões, de Vasco da Gama, de Gago Coutinho, de Sacadura Cabral, etc. Era necessário atirar ao lixo toda a recordação de Portugal e colocar, no seu lugar, as figuras de Lenine, de Karl Marx, de Mao Tse Tung.

O inculto comissário político da cidade de Moçambique, justificaria ao povo o motivo da destruição do monumento de Vasco da Gama com as seguintes palavras:

— O colonizador Salazar, para escravizar os africanos, mandou Vasco da Gama a Moçambique descobrir o caminho marítimo para a índia.

E só assim, filosofando desta maneira, a acção destruidora dos alicerces de uma civilização — que mesmo assim não fenece — consentida pelo almirante Vítor Crespo pode ser entendida. Por mais socialista que fosse a atitude do alto comis­sário de Portugal em Moçambique, a farda que envergava e o cargo que exercia davam-lhe a obrigação de zelar e de fazer respeitar os símbolos de Portugal, como os valores espirituais e humanos que eles representavam.

Os destinos do povo moçambicano e dos portugueses foi jogado em Lusaka no dia 7 de Setembro de 1974, por portugueses, o que torna necessário divulgar o que um ano antes havia sido esquematizado por estrangeiros: O Presidente Keneth Kaunda e seus auxiliares. Por isso transcrevo, na íntegra, o Plano do Presidente Kaunda. E que o leitor seja o juiz:

«Confidencial

República da Zâmbia

Ponto de vista da Zâmbia na Evolução

dos Territórios Africanos Portugueses:

1.    A Zâmbia prossegue uma política de paz genuína. O Governo da Zâmbia continuará a esforçar-se para consolidar a paz na Zâmbia e no mundo. O Governo da Zâmbia interessa-se em ter ao redor da Zâmbia vizinhos estáveis e prósperos. Moçambique é um deles. A paz que a Zâmbia pre­tende em seu redor e no mundo em geral não é apenas a ausência de conflitos mas sobretudo a existência de harmonia, respeito e entendimento, tudo firmemente assegurado pela cadeira da justiça.

2.    A Zâmbia prossegue uma política não racista. O Governo Português tem demonstrado que, ao contrário da África do Sul e da Rodésia rebelde, participa nos princípios fundamentais do não-racialismo. As lições da His­tória demonstram que o mundo se encaminha para uma maior integração humana e que a raça humana nunca mais voltará a ser a mesma. O Governo da Zâmbia aceita os milhares de brancos na Zâmbia e no resto da África Austral como uma realidade geográfica, histórica, social e cultural que terá tremenda influência no desenvolvimento humano desta parte do mundo. Os dirigentes africanos não podem abdicar das suas responsabilidades para com as raças não-negras, tal como não espera que os Britâ­nicos, os Americanos e os Latino Americanos, por exemplo, abdicassem das suas responsabilidades para com as raças negras e castanhas naqueles continentes.

3.    A Zâmbia está interessada em desenvolver boas relações com Portugal. Nada se opõe a que os dois países desenvolvam boas relações e cooperação em muitos campos, excepto:

a)   A política portuguesa nos seus territórios africanos.

b)   A cooperação portuguesa política e militar com a África do Sul racista e com a Rodésia rebelde.

Os contactos entre os dois países seriam facilitados e encorajados se Portugal efectivamente modificasse a sua política em face da África do Sul e da Rodésia, cujos actos de agressão contra os países independentes da África são obstáculo na procura de uma solução pacífica dos actuais con­flitos nos territórios africanos portugueses.

4.    A Zâmbia crê que a independência dos territórios portugueses em África é a única e definitiva solução para a presente situação crítica nesses territórios. A guerra é, lamentavelmente, uma desnecessária perda de sangue e dos recursos financeiros ou outros. Acções que aumentem o intenso ressentimento já existente entre as massas da população africana, cujo espírito e coração deveriam ser conquistados, devem ser firmemente evitadas.

       O Governo português deveria, pelo contrário, intensificar os seus esforços para seriamente estabelecer uma estrutura realística para a coope­ração harmoniosa entre o povo de todas as raças nos territórios portu­gueses. Será o povo de Moçambique que em última análise tratará dos interesses portugueses e traçará o destino dos nacionais portugueses em Moçambique, tal como os dirigentes africanos em Angola e noutros pontos dos territórios portugueses tratarão dos interesses portugueses e moldarão o destino de toda a população incluindo os nacionais portugueses. Os Movi­mentos Nacionalistas como a «Frelimo» deveriam ser reconhecidos como um importante factor político cuja assistência na formulação da futura estrutura política não pode ser ignorada.

5.    O Governo Português deveria evitar:

a)   Envolver a África do Sul política, e económica e militarmente nos territórios portugueses africanos.

b)   Envolver Portugal na derrocada rodesiana.

c)   Ser envolvido pelas grandes potências na defesa dos seus interesses na Rodésia, África do Sul, Namíbia e outros territórios da África Austral bem como nos seus próprios territórios africanos, uma vez que isso complicaria a procura de uma solução pacífica.

d)  Considerar a Zâmbia e a Tanzânia como Estados comunistas ou testas de ponte de comunismo. Na análise final, a Tanzânia e a Zâmbia são os melhores amigos do povo português e defenderão as comunidades portuguesas tal como têm defendido outras minorias no passado.

e) Alistar milhares de africanos no exército para combaterem os nacio­nalistas africanos porque isso conduzirá à militarização de Moçam­bique e outros territórios portugueses, para prejuízo último dos próprios interesses de Portugal. Quanto mais for o número de moçambicanos envolvidos nas acções de guerra maior será o número de pessoas submetidas à disciplina militar no futuro. Existem abundantes exem­plos na História que comprovam como essa orientação pode ser desastrosa.

        O Governo Português tem interesse em criar condições apro­priadas para uma administração civil estável em Moçambique, em Angola e outros territórios sob a jurisdição portuguesa.

6.  É com apoio nestes princípios que o Governo da Zâmbia tem oferecido repetidamente, desde a Independência, os seus bons ofícios privadamente e em público para assistir Portugal e pôr termo à guerra e a resolver os problemas através de negociações com os dirigentes nacionalistas. O Governo da Zâmbia está convencido de que os interesses portugueses serão melhor servidos se se trabalhar para a independência dos seus territórios africanos. Os dirigentes nacionalistas têm demonstrado a sua boa vontade para conversar acerca da criação de condições para a nego­ciação de futuros desenvolvimentos constitucionais em Moçambique.

7.    O Governo da Zâmbia acredita na comunicação. Acredita que esse é o melhor caminho para resolver o problema. Reafirma a sua disposição de oferecer os seus bons ofícios para ajudar a terminar a guerra e colocar Moçambique e Angola firmemente no caminho da genuína paz, indepen­dência e prosperidade.

Lusaka, 12 de Setembro de 1973.»

35.     PLANO   DE   LUSAKA:

O   BEM-ESTAR   DOS   PORTUGUESES

A segunda parte do Plano de Lusaka do dr. Keneth Kaunda refere, denomina­damente, a estrutura necessária para a Independência de Moçambique, e os inte­resses de Portugal que deveriam ser respeitados com garantias. Com a mesma segu­rança e tranquilidade Keneth Kaunda afirma a sua posição medianeira.

        A troca de garantias é compensadora para Portugal e vai ao encontro das pretensões do povo português e do espírito que iria enformar, um ano depois, o  Movimento das Forças Armadas, em 25 de Abril de 1974. Mas não agradaria aos negociadores portugueses comunistas. Teria outras cores a capitulação portuguesa.

O Plano de Lusaka proclama honra para Portugal. O texto e as intenções são claras e nem eram necessárias reformas. Compreendendo-se os motivos que levaram Portugal a não o aceitar antes da Revolução de Abril, não se entende a recusa após o Movimento das Forcas Armadas ter abalado e destruído os alicerces sobre os quais repousava a teoria do governo português deposto. Mas as inovações introduzidas em Portugal são ilimitadas e a Comissão de Descolonização olha o problema de modo diferente. E quem não concordar com ela comete o horrível e duramente punido crime contra a descolonização.

A opinião pública internacional mostra-se confusa. O Plano do dr. Kaunda transpirara e muitos países não entendem o comportamento de Portugal, mas assis­tem em silêncio. Só a Rádio Moscovo, nos seus noticiários para as colónias portu­guesas e Brasil, vai dando a perceber as íntimas relações entre o proceder da Comissão de Descolonização e a forma de olhar o problema de Moscovo. E é a Comissão de Descolonização, com o seu procedimento repressivo, que castra qualquer tentativa, entre Abril e Setembro, para fazer ressuscitar o Plano de Lusaka.

É interessante verificar que até agora, em 1977, toda a Imprensa portuguesa o tem olvidado, como que a não querer remexer numa ferida acesa em muitas consciências portuguesas. E que melhor altura para o divulgar do que esta, quando Portugal conta com um Governo onde o Partido Comunista foi pouco votado pelo povo português? Não será ainda ocasião para dizer a verdade aos portugueses, aquela verdade que Keneth Kaunda não escondeu em 1973 dos dirigentes de Portugal?

Publico, a seguir, o segundo documento do Plano de Lusaka e mais uma vez peço ao leitor para ser juiz:

«Confidencial

República da Zâmbia

Memorandum

Ponto  de  vista  da Zâmbia  na  Evolução  dos  Territórios  Africanos Portugueses

Estrutura para a Independência

O Governo Português está obviamente preocupado acerca da preservação dos seus interesses nacionais nos territórios africanos de Portugal. Deve inter alia preocupar-se com o tipo de ligações que permitiriam a Portugal manter a sua influência nos novos territórios independentes. O Governo da Zâmbia tem a cons­ciência desta preocupação e está portanto procurando colaborar na preparação de uma estrutura que proteja e garanta os interesses portugueses. O Governo da Zâmbia está preparado, desde que tenha o acordo do lado português, para obter as garantias dos dirigentes nacionalistas acerca do futuro dos interesses de Portugal. Com este objectivo deve ser considerado o seguinte:

 

1.    RELAÇÕES  POLÍTICAS

a)   Os territórios independentes prosseguirão uma tendência não-racial na construção das novas nações e os nacionais portugueses que ali têm vivido há séculos encontrarão uma melhor situação do que aquela que têm agora.

b)   A segurança dos nacionais portugueses apenas pode ser apropriada­mente garantida através de um programa de integração nacional sob condições de harmonia racial e cooperação, sem conflito ou guerra. A actual guerra é um obstáculo para se alcançarem estes objectivos.

c)   As relações diplomáticas entre os novos territórios independentes e Portugal assegurarão contactos mais efectivos e produtivos, bem como mútuo apoio na base de igualdade e respeito recíprocos.

d)   Estabelecimento de uma Comunidade Lusíada compreendendo os anti­gos territórios portugueses incluindo o Brasil. Uma associação destas, na qual Portugal teria uma posição dominante, desenvolver-se-ia como melhor organização do que a «Commonwealth» que a Grã-Bretanha instaurou. A política britânica-rodesiana-sul-africana conjuntamente com a visão racista de alguns nacionais britânicos nas antigas colónias britânicas ensombraram a imagem da Grã-Bretanha e reduziram a sua influência, sobretudo em África.

e)   A Administração nos novos territórios independentes será grandemente influenciada por Portugal no futuro previsível. Durante este período os nacionais portugueses serão capazes de criar um maior grau de confiança na governação das novas nações independentes agora sob controlo português.

2.    RELAÇÕES  CULTURAIS

O Governo da Zâmbia está ciente do orgulho português na sua cultura Lusíada. É convicção do Governo da Zâmbia de que a independência dos territórios africanos portugueses não significará o fim da influência cul­tural portuguesa, mas ao contrário o início da expansão do campo da cultura lusa em dignidade e respeito.

a)  O português permanecerá como a Língua Franca nos novos territórios independentes.

b)   A educação será predominantemente portuguesa com professores por­tugueses.

c)   Cooperação técnica com experiência e pessoal portugueses.

d)   A influência portuguesa na vida social e cultural permanecerá durante longo tempo.

e)   As   condições   religiosas   serão   influenciadas   pelo   passado   português.

 

3.    RELAÇÕES  ECONÓMICAS

A conservação dos interesses económicos portugueses é fundamental em qualquer acordo para conceder a independência aos territórios africanos portugueses. O Governo da Zâmbia está ciente de que qualquer estrutura para a independência deveria garantir ao Governo Português que os seus interesses económicos serão protegidos.

a)      Comércio

b)   Investimentos

c)   Assistência técnica

d)   Acordo económico e de cooperação técnica.

4.    RELAÇÕES  MILITARES

O Governo da Zâmbia reconhece que a Defesa é um campo muito melin­droso. O Governo Português quererá, sem dúvida, estar seguro de que a independência política não conduzirá, por exemplo, a que uma potência comunista preencha o vácuo. A preservação dos territórios portugueses será assunto de interesse para o Ocidente em geral. Segundo o Governo da Zâmbia estes aspectos são negociáveis com os dirigentes nacionalistas e não serão um obstáculo para um acordo final sobre a independência.

5.    OPORTUNIDADE  PARA  A  INDEPENDÊNCIA

Deve ser negociada logo que a estrutura para a independência esteja traçada.

6. FACTORES EXTERNOS QUE DEVEM SER ARREDADOS DA SITUAÇÃO PORTUGUESA

1.  Envolvimento da África do Sul.

2.  Envolvimento da Rodésia.

3.  Envolvimento das grandes potências.

Estes podem complicar as negociações ou as medidas tomadas para pôr fim à guerra.

Interesses Nacionais Portugueses

1.    INTERESSES   POLÍTICOS  E  DE  SEGURANÇA

Fundamentalmente referimo-nos ao bem-estar dos nacionais portugueses na era post-independência. O novo sistema político para os novos países independentes deverá assegurar protecção para todos os moçambicanos e promover o seu bem-estar sem consideração de raça, cor, credo ou origem étnica. De particular importância para o Governo Português é o futuro de uma grande população de origem portuguesa.

2.    INFLUÊNCIA  POLÍTICA

Portugal deseja, sem dúvida, ter uma influência dominante nos novos países independentes e não desejaria ver o crescimento de qualquer outra influência prejudicial para os interesses portugueses nos seus antigos territórios.

3.     INTERESSES   ECONÓMICOS   E  FINANCEIROS

Portugal desejaria, sem dúvida, ver que o comércio, os investimentos e outros interesses económicos sejam completamente desenvolvidos nos seus antigos territórios em seu favor e não em favor de qualquer outra potência.

4.    INTERESSES  CULTURAIS Conservação da cultura lusa.

5.    DEFESA

Os novos países independentes deveriam, no ponto de vista do Governo Português, manter uma atitude quanto à defesa que pelo menos não fosse anti-portuguesa. A estrutura para a conservação e progresso de todos estes interesses nacionais é, no conhecimento da Zâmbia, negociável. Os chefes nacionalistas estão determinados por um sentimento de respon­sabilidade moral para com Portugal e os seus interesses, e estariam pre­parados para encontrar uma solução amigável em todos estes aspectos.

Lusaka, 12 de Setembro de 1975.»

36.     DR.   ALMEIDA   SANTOS:

ESTADO   FEDERAL   «UNIÃO   PORTUGUESA»

 

          Não posso afirmar o que pensa hoje o dr. Almeida Santos, ex-ministro da Coordenação Interterritorial, dos dramas que enlutam o povo de Moçambique, da guerra que alastra por todo o novo país, da miséria que adoenta o povo moçam­bicano, da fuga da morte de quantos, portugueses, teimaram em permanecer em Moçambique após ele ter assinado o Acordo de Lusaka. Era arriscado, para ruim, afirmar qualquer coisa, pois sei que os homens mudam, por vezes com tanta facilidade como o vento.

Não posso afirmar quais eram as ideias do dr. Almeida Santos no dia 7 de Setembro de 1974, antes de se transferir para a pasta ministerial da Informação, daquela Informação que tanto iludiu o povo português sobre as causas e as conse­quências da descolonização de que foi um dos importantes fazedores. Era arriscado para mim, pois as mesmas ideias podem hoje não serem acatadas pelo ministro da Justiça de Portugal, dr. Almeida Santos.

Posso afirmar, e não arrisco nada, o que pensava o advogado dr. Almeida Santos, meia dúzia de anos antes da Independência de Moçambique, porque o dr. Almeida Santos se auto-biografou, ou se auto-criticou, no seu livro «Já Agora...», arranjando uma solução para Moçambique bastante diferente daquela com que concordou em Lusaka, e onde apôs, sorridente e feliz, a sua assinatura.

E como posso afirmar, com a permissão que me é dada pêlos escudos que consumi com a compra do «Já agora...», acho oportuno transcrever a solução moçambicana do dr. Almeida Santos e de um grupo de democratas de Moçambique, que, embora custe a muito boa gente, se assemelha ao do dr. Keneth Kaunda e í: que era desejada pelo general António de Spínola.

Vejamos, pois, sem comentários, o que pensava ou pensa o dr. Almeida Santos da descolonização de Moçambique:

«... Numa campanha eleitoral para candidatos à Assembleia Nacional, a Opo­sição Democrática de Moçambique apresentou uma lista, de que fiz parte, e elaborou um manifesto aos eleitores — como já disse apreendido na tipografia — onde, pela primeira vez em Portugal se defendia uma solução determinada. A autodeterminação surgia aí, porém, defendida à escala nacional, em perfeita equivalência a uma consulta plesbiscitária...» (sic).

E definindo melhor as suas ideias democráticas que desejava oferecer também ao povo moçambicano de todas as raças, o então advogado de Lourenço Marques escreveu:

«... Nele se dizia ainda este mínimo que convém transcrever para que o nosso intuito não seja deturpado:

Seria despropositado esperar que, estados tão distantes na geografia, e tão diferenciados nas populações como seriam a Metrópole, Angola e Moçambique, viessem a sofrer igual evolução centralizadora. Mas nada nos impede de acreditarmos na perduração sem conjecturável limite de laços de vinculação política, estratégica, diplomática, cultural ou tão só linguística, se formos capazes de passar a semear a língua portuguesa, como língua veicular aceite pelas populações autóctones, com o mesmo empenho com que temos semeado algodão e sisal.

Teremos, nesse domínio, aquilo que tivermos sido capazes de merecer. Ou melhor: colheremos aquilo que tivermos semeado. Se ódio ódio, se amor amor.

Visionam, pois, os signatários um estado federal, a que poderia chamar-se «União Portuguesa», embora o nome não seja o que mais importa, e estados federados — Portugal, Angola e Moçambique — aos quais aquela se sobreporia na medida das prerrogativas de soberania que sobre eles detivesse.

Um chefe do Estado Federal directamente eleito pela comunidade em condições a fixar, e Chefes dos Estados Federados, directamente eleitos por estes, exerceriam as inerentes funções ao nível federal e estadual, respectivamente.

Haveria um parlamento federal, constituído por deputados directamente elei­tos, em proporção a fixar, pêlos estados federados, e ao qual caberia a elaboração das leis relativas aos assuntos comuns a todo o território da Federação. Parlamentos estaduais, directamente eleitos por cada Estado Federal, chamariam a si a feitura das leis exclusivamente aplicáveis ao respectivo território.

Um Governo do Estado Federal, e os governos dos Estados Federados, esco­lhidos pelos Primeiros Ministros designados pelos respectivos Chefes de Estado, exerceriam a função executiva, e, com menos amplitude do que o actual governo, funções legislativas simples.

Um tribunal de conflitos seria encarregado de resolver os diferendos dos Estados Federados entre si, ou entre qualquer deles e o Estado Federal.

Cada Estado teria a sua organização jurídica própria.

Regressar-se-ia ao sistema da eleição directa dos Chefes de Estado, e acen­tuar-se-ia a separação dos poderes legislativo, executivo e judicial.

Sem se cair em extremos de parlamentarismo, que por toda a parte, e mesmo entre nós, deram má conta de si, os parlamentos exerceriam um tal ou qual controlo sobre os excessos ou os desacertos do executivo, através do sistema das moções de censura, ou qualquer outro modo. Mas para evitar a descontinuidade governativa poderia condicionar-se o recurso às moções, inclusive através da dissolução do parlamento censor, seguida de novas eleições, após certo número de moções em cada legislatura.

Do maior interesse seria a definição das prerrogativas de soberania reservadas ao Estado Federal. Visionam-se como menos provavelmente alienáveis a defesa, a acção diplomática e a coordenação da economia a partir de economias desintegradas mas cooperantes.

Neste domínio, porém, como no mais concernente à montagem do esquema, poderia avançar-se segundo escalões pré-definidos.

Num ponto haveria de ser-se intransigente, já que mais do que nenhum outro daria o tom do nosso desejo de evoluir em termos de política ultramarina: na ins­crição, em cada uma das constituições regionais, de um esquema evolutivo para governos representativos da maioria das respectivas populações, de par com garan­tias da sua inalterabilidade e do seu perfeito acatamento. Bem se compreende que qualquer desvio deste princípio só poderia favorecer um nacionalismo neocolonialista que não resolveria coisa alguma e seria fonte segura de novos e inarredáveis apocalipses.»

Curioso é ter sido o dr. Almeida Santos um dos homens que assinaram o Acordo de Lusaka, como continua a ser curioso conservar-se no Governo de Por­tugal contra todos os ventos e eventos da política portuguesa.

Não foi democrata — ou eu não entendo o espírito da democracia — ao nomear para último "Governador de Moçambique, já após o 25 de Abril, um seu compadre e colega de profissão, não apoiando os interesses das maiorias. Nesse Governo aconteceram os trágicos Setembros e Novembros moçambicanos. Aconteceu a morte, a destruição, a fuga dos portugueses, o abandono de grande parte de bens, a destruição sistemática da colónia portuguesa. O dr. Almeida Santos nada perdeu. Os seus contentores gigantes foram postos em Lisboa — um deles foi fotografado e publicado na Imprensa, pois no seu bojo quase se podia transportar toda a riqueza moçambicana — os seus capitais transferidos. Nada perdeu na sua democracia.

Não foi comunista e não o é nas suas afirmações, na sua forma de viver, nas suas relações humanas, mas, não sendo, sobreviveu à queda dos seus pares no Governo, servindo, um Governo comunista, de terror, de sangue, de maldição, de anarquia, do mesmo modo que serve um Governo socialista na busca de um verdadeiro Portugal remoçado.

Qual é a cor política do dr. Almeida Santos, que auto-criticando-se no início da década de 70, deseja para Moçambique e para Angola uma autonomia demo­crática em regime federado e que foi até à minúcia de a baptizar em «União Portuguesa» e, meia dúzia de anos volvidos, assina um documento onde, sem remis­são, se faz a entrega de Moçambique a um partido guerrilheiro, representante declarado da ditadura comunista e do império soviético, empurrando, com o seu gesto, Moçambique para um futuro de fome, de guerra civil, de destruição, e muitos milhares de portugueses para a miséria da situação de semi-apátridas?

Qual é o seu critério actual?

Não negará esta sua atitude todos os seus pronunciamentos anteriores?

É certo que o dr. Almeida Santos, nos seus raros momentos de penitência, afirma filosoficamente que outros Acordos, além do de Lusaka, foram entabulados com a Frente de Libertação de Moçambique. Mas que Acordos? Os anos trans­correm e não merecem o povo português e os muitos milhares de retornados e de refugiados um esclarecimento sobre o teor desses acordos, sobre as suas conse­quências, e, sobretudo sobre a sua actividade nesses acordos, quando a sua respon­sabilidade é reconhecida por todos os retornados e refugiados devido aos altos cargos que desempenhou e desempenha?

Responsabilidade como outorgante no Acordo de Lusaka.

Responsabilidade como ministro Inter-Territorial.

Responsabilidade como nomeador do último Governador-Geral.

Responsabilidade como ministro da Informação, na fase em que menos infor­mada andou a população portuguesa, inclusive sobre o teor dos acordos com os guerrilheiros que, logicamente, não pode apenas interessar a meia dúzia de portu­gueses mas a todos os portugueses.

Responsabilidade — e por que não? — como ministro da Justiça, pois é essa mesma Justiça que o povo português, que o povo moçambicano, que os retornados, que os refugiados, desejavam ver praticada sobre quantos negociaram o Ultramar, sem consultarem democraticamente os povos interessados, tapando orgulhosamente os ouvidos a todas as vozes discordantes que aconselhavam moderação e bom senso. É esta habilidade de jogar com ambos os lados, de se preservar das conse­quências de gestos históricos, que o futuro não deixará adormecer e que o presente saberá condenar.