QUINTA PARTE
O SANGUINÁRIO ESTERTOR DA
FRELIMO
26. NOS CAMPOS DE REABILITAÇÃO
Pouco se tem falado, e muito menos se tem escrito, sobre os milhares de moçambicanos e as vastas centenas de portugueses que foram afastados da sociedade e aguardam a morte pela fome, pela exaustão, pelos maus tratos, nos Campos de Reabilitação da Frelimo, espalhados pelas inacessíveis selvas do interior, a centenas de quilómetros dos centros civilizados.
A Imprensa moçambicana tem propositadamente olvidado a situação, e os representantes da O.N.U., alojados em confortáveis palacetes da Somerchild em Lourenço Marques, ou nos luxuosos apartamentos dos hotéis de cinco estrelas, fingem que nada sabem. A mesma atitude de cínico lavar de mãos tem sido praticada pelas ligas internacionais que gisam defender os direitos do Homem, talvez contagiadas pela manifesta indiferença das autoridades portuguesas.
Os representantes diplomáticos de Portugal, que amiudadamente se deslocam às prisões citadinas, não encontraram ainda a coragem, ou a autoridade oferecida pelas suas credenciais, que os faça rolar nas picadas em incómodos jipões, ou em caminhadas a pé, até aos campos da morte, onde homens e mulheres amaldiçoam a vida, de dia para dia mais próxima da morte.
Nem a notícia, propagada por familiares das vítimas, da morte de mulheres portuguesas devoradas por animais selvagens, após se evadirem do campo de trabalho de Luatize, despertou a curiosidade benevolente de quem deveria mostrar mais do que curiosidade, nem o estado de semi-morte verificado nas sobreviventes que ousaram lograr assistência hospitalar em Lichinga ou em Tete, acordou o mundo para a triste realidade da justiça da Frelimo. Os seus baluartes de morte são invioláveis. E ninguém entende porquê.
Mesmo assim a Frelimo permitiu uma pequena abertura ao seu segredo e convidou um jornalista da sua inteira confiança, militante frelimista confesso, a visitar um Centro de Reabilitação. Mas o Partido escolheu o centro de mais recente construção, com melhores condições de habitabilidade, e com menor índice necrológico.
Não deixou o jornalista falar com as
mulheres detidas, mas permitiu-o examinar o ambiente e ouvir as comissárias
políticas do campo, cópia fiel das carcereiras dos campos da K.G.B.
O jornalista Fernando Lima viu e escreveu.
Não quis
denunciar as atrocidades da Frelimo, mas, talvez levado pelo código
deontológico da sua profissão, ou vergado por uns restos de consciência que venceram
a politização que recebera, excedeu o que a Frelimo permitira. O jornal «Notícias»
de 13 de Agosto de 1976 foi retirado da venda nas ruas de Lourenço Marques, por
ordem do Ministério de Informação e Propaganda, mas a ordem chegou tardiamente
à Beira e a segunda cidade moçambicana teve, pela primeira vez frente aos
olhos, um pouco do terror dos campos de concentração da Frelimo.
A reportagem de
Fernando Lima, de que apresento fotocópia, rezava exactamente assim:
«Naquele tempo, ao dizer «Viva a Frelimo», aqui ninguém ia levantar o
braço
— estas as palavras da Comissária Política do Centro
de Reeducação para mulheres, em Msauíze, ao pretender traçar um paralelo entre
a situação do Centro, no início e na fase actual. O Centro de Reeducação
de Msauíze é um dos cinco centros existentes na Província do Niassa a funcionar
na dependência do Comissariado Político Provincial, que para este sector
específico, tem criada uma estrutura de apoio. Encontra-se situado na parte
norte da província, ainda no distrito de Mataca, mas também já muito próximo de Marrupa, que se encontra para Leste.
Partimos
para a visita a este Centro da Base Central do Niassa Oriental nas antigas
zonas libertadas. O acesso ao local onde está implantado o Centro é feito por
uma picada mal-alinhavada, onde despontavam os troncos das árvores que a mão
humana teve de abater. Vinte e cinco quilómetros que demoraram 45 minutos a percorrer.
A pé são duas
horas e meia de caminho, informou o comandante da Base Central, nosso cicerone nesta deslocação.
Esta estrada que vocês estão a ver
feita pelas Forças Populares
e por elas
— prosseguiu
o comandante. Elas, as
internadas de Msauíze. Mais para diante, grandes
clareiras em terreno normalmente coberto por uma vegetação densa e árvores de porte médio denunciavam de novo a mão humana, nesta
Província onde o elemento humano regista os menores índices
de existência de todo o país.
Estes campos que vocês aqui estão a ver, foram destroncados há pouco tempo. Serão aqui as futuras machambas do Centro de Reeducação — apontava um elemento das Forças Populares que enquadrava a comitiva de visita ao Centro. Com olhar admirativo dizia: Aqui as mulheres fazem tudo. Não há diferença dos homens.
Com efeito, pudemos ver grandes terrenos totalmente desmaiados e que serão posteriormente utilizados para a sementeira de cereais.
Os responsáveis pensam aqui desenvolver a agricultura de forma a tornar este centro auto-suficiente.
Depois de 45 minutos de viagem em jipe avistamos o Centro.
Uma vara de bambu e um pequeno abrigo de colmo assinalam a entrada. Não muito distantes, as primeiras casas de dimensões razoáveis, maticadas e com cobertura de palha.
Depois um grande campo pelado. No sentido longitudinal avistamos ainda vários barracões com armação em troncos, e cobertura de capim. São ali as instalações delas — indicam-nos.
Depois das habituais apresentações, dirigimo-nos para um alpendre de reuniões e que também é utilizado como refeitório do Destacamento Feminino.
O Centro compreende duas partes distintas. Logo à entrada, o sector destinado ao Destacamento Feminino — casas para habitação, secretaria, posto de transmissões, celeiro e alpendre de reuniões e refeitório; do lado oposto ficam as instalações das internadas, uma série de barracões dispostos ao comprimento, formando ao fundo um semi-círculo.
ORGANIZAÇÃO
E ESTRUTURAS DO
CENTRO
O Centro de Reeducação de Msauíze destina-se a albergar marginais, em princípio prostitutas. Neste momento encontram-se neste local 501 mulheres, vindas de vários pontos do nosso país. A administração, organização e mobilização política encontram-se a cargo do Destacamento Feminino — um pelotão de 36 elementos. A distribuição das tarefas é feita em colaboração com a estrutura das reeducandas, composta por mulheres que se encontram no campo e que revelam possuir capacidade e espírito de responsabilidade para ocupar aquele lugar. Os problemas disciplinares, o comportamento das internadas, são também analisados pelas duas estruturas: O «D.F.» e a estrutura das reeducandas.
Quisemos saber o programa de actividades diárias do Centro: Alvorada às quatro e meia da manhã, limpeza e pequeno almoço. Depois, machamba. Almoço. Machamba, novamente. À noite comem outra vez. No entanto, nem sempre temos comida suficiente, de maneira que, às vezes, não se come à noite — responde a comissária política do Centro, que foi quem nos forneceu a maior parte dos esclarecimentos sobre o local.
Só machamba?, inquirimos nós. Sorrindo, a comissária esclareceu então que a reeducação não compreende somente o trabalho físico.
As mulheres que se encontram na reeducação eram na sua grande maioria mulheres daquela vida, segundo um dos elementos do «D.F.». Além do trabalho da machamba, as reeducandas também têm um programa político no campo. Três vezes por semana há reuniões de mobilização política. O sábado e o domingo são reservados a manifestações culturais.
— Porquê a educação política? Ela faz parte dos nossos métodos de
trabalho. Ao princípio, aqui, se alguém dissesse «Viva a Frelimo», ninguém
respondia. Nenhuma pessoa compreendia porque tinha vindo para aqui, porque é
que tinham que sofrer tanto e suportar estas condições de vida. Era necessário
explicar o porquê desta situação. Explicar o que representava a vida destas
mulheres na sociedade colonial, explicar o tipo de sociedade que queremos
construir em Moçambique, explicar porque é que elas se encontram aqui neste local isolado. Era necessária uma explicação política.
— Depois, no dia a dia, iam surgindo outros problemas. As deserções eram em massa. Aqui não temos vedação. As pessoas fugiam porque não conseguiam suportar aqui as condições de vida. Havia muita fome aqui. Depois vinha o tribalismo e o regionalismo. As do Maputo só queriam viver com outras do Maputo, as de Gaza deviam dormir na mesma casa, as macuas tinham que estar juntas.
— Tivemos muitos problemas que entravam em contradição com os nossos princípios. Depois tínhamos problemas de indisciplina e individualismo. Cada uma queria fazer a sua vida, ter a sua própria comida, tudo separado. A indisciplina era muito grande e as condições de vida faziam ressaltar as contradições com mais evidência. De manhã, quando tocava o apito para levantar, ninguém vinha para o campo para formar. Houve tempo em que era difícil andar no campo onde ficam os dormitórios delas. Se alguém entrava na bicha da comida delas, de certeza que era agredido. Elas mesmas discutiam entre elas e agrediam-se mutuamente. Isto é urna situação muito recente pois este Centro apenas tem seis meses.
A
explicação prosseguiu. Sobre a realidade diária do Centro e sobre métodos de
trabalho. Assim, ficámos a saber que durante as reuniões que existem periodicamente
no Centro, são feitas leituras de discursos e orientação do Presidente Samora
Machel e outros textos formativos do Partido. As questões são postas em termos
de exposição prática: Como sofreu o povo moçambicano durante a opressão
colonial, o porquê da luta armada, os fundamentos do sistema de exploração...
Depois
da descrição dos casos de deserções, indisciplina e tribalismo no campo,
ficámos com interesse em saber se a situação ainda se mantinha:
— Neste momento podemos dizer que a situação ainda não é boa. Mas já melhorou muito desde o início. Há mais disciplina, as pessoas compreendem porque se encontram aqui, esforçam-se por modificar o seu comportamento, mas podemos dizer que ainda há deserções e também há muitas que não modificaram nada o seu comportamento.
DIFICULDADES
DO CENTRO
Ao
abordarmos este ponto, um sorriso, como que esclarecendo uma situação de
rotina, acolheu a nossa pergunta:
— Dificuldades aqui são muitas. Começando pela falta de alimentação. Aqui, ao princípio, passamos muita fome. A comida não chegava. Os camiões avariavam-se nas picadas, os alimentos estragavam-se e não chegavam aqui. Tivemos muitas anemias aqui. Mesmo agora só temos sacos no armazém para mais uma refeição. Depois, a qualidade também é fraca. Normalmente, só há feijão e farinha.
Sobre
este aspecto, lembramos que este local tem caça em abundância, que muito
poderia beneficiar o Centro.
— Depois, não
temos roupa para agasalhar. O frio é muito e as casas não têm qualquer
protecção dos lados. Não temos mantas. Só distribuímos cobertores àquelas que
não tinham nada para se cobrir.
— No campo sanitário a situação é também muito má. As mulheres instaladas no campo eram portadoras de muitas doenças venéreas e no Centro não existem medicamentos para fazer um tratamento capaz. Os casos mais graves, como por exemplo a sífilis, são canalizados para o hospital central, que já existia no tempo da guerra mas que luta igualmente com muitas dificuldades materiais. Não existem comprimidos para fazer a prevenção do paludismo, pelo que as reeducandas são muito atacadas. Outra doença que existe muito é a sarna, motivada pela falta de higiene. Nós aqui no Centro distribuímos sabão. Mas elas muitas vezes trocam o sabão por comida, o mesmo acontecendo por vezes com a roupa — explica a comissária política.
A cobertura sanitária do Centro é assegurada por um enfermeiro e algumas socorristas formadas por aquele elemento.
Para
o trabalho agrícola também existe muita falta de material, nomeadamente
enxadas, machados e catanas. Neste momento
são utilizadas as enxadas das Forças Populares — informam-nos.
Visitámos
em seguida o Centro. No campo para reuniões, algumas centenas de mulheres, envergando na sua maioria uniformes
pretos, entoavam canções e danças. À frente as instalações, cabanas muito
rudimentares, muito expostas ao frio
e construídas pelas reeducandas.
Entre
as reeducandas reparamos com uma certa estranheza que a amplitude das idades
era muito grande. Havia crianças de tenra idade e mulheres de idade muito avançada. Aqui,
além das antigas prostitutas, ainda se encontram, também, Testemunhas de Jeová
e mulheres acusadas de feitiçaria. Quanto às crianças, muitas são filhas das
prostitutas — esclarecem-nos.
Existe um plano para integrar as mulheres mais idosas na população, ao mesmo
tempo que as crianças serão levadas umas para o Infantário Josina Machel, que
se encontra a curta distância, e as maiores para os Centros-pilotos. No
entanto, até ao momento, ainda se encontram no campo.
Assistimos,
depois, a uma manifestação cultural. Ainda sem grande convicção, as mulheres
entoaram várias danças e cantares da cultura moçambicana, importante instrumento de personalização.
No fundo de uma pequena encosta, visitamos depois a horta com uma grande extensão, e onde são semeadas várias qualidades de legumes: couves, alfaces, tomates e cenouras. Tudo isto, assim como as machambas, foram as mulheres que fizeram. Havia muita gente que não acreditava que uma mulher pudesse com um machado deitar abaixo uma árvore, mas nós temos aqui a prática — dizia uma das responsáveis do Centro. Aqui formaremos mulheres moçambicanas livres que possam contribuir activamente para a revolução moçambicana — atalhou o comandante da Base Central. Até ao momento, foram reintegradas na sociedade 60 mulheres, que constituem o primeiro grupo a ser libertadoá. Temos absoluta confiança que essas mulheres que já abandonaram o Centro serão quadros valiosos da Organização da Mulher Moçambicana. Aqui neste campo pensamos que se forjarão muitas mais.
Sobre a educação das internadas, ainda não existe nada de concreto; algumas mulheres, por iniciativa pessoal, fazem a aprendizagem da alfabetização».
Fernando Lima escreve depois de um outro Centro que está a ser construído nas redondezas, terminando do seguinte modo a sua reportagem:
«Tinha
chegado ao fim a nossa visita. Embora não tivéssemos tido oportunidade de
conversar com as reeducandas, ficámos com uma ideia, embora não muito profunda, das condições de vida do Centro.
Confrontámos elementos materiais. Observámos a realidade. Existem
deficiências, existem erros que certamente transparecerão ao longo desta
reportagem. Os erros fazem, no entanto, parte do percurso que traçámos.»
Pois bem: Fernando Lima, que voou milhares de quilómetros sobre Moçambique e palmilhou em jipe quarenta e cinco quilómetros para efectuar a sua reportagem que intitulou «TRANSFORMAR PELO TRABALHO MARGINAIS DA SOCIEDADE COLONIAL», foi infeliz.
Não teve oportunidade de conversar com as reeducandas que, viu, porém, a dançar o batuque, esse importante instrumento de personalização.
Preocupou-se mais com as paredes toscas, com as meias informações das carcereiras, do que com quanto podia ouvir das bocas das vítimas.
Bebeu a sua cerveja geladinha com o comandante da Base — ela nunca falta onde há um comandante — mas não cheirou o fedor dos feijões da pseudo-alimentação das felizardas reeducandas, e regressou a Lourenço Marques (que ele me perdoe: ao Maputo) com a sua missão cumprida.
Mas pode cumprir a sua missão quem esquece o que de mais importante existe na notícia que é o homem, que é o sofrimento humano, que é a desumanidade, que é o terror, que é a morte, que é tudo quanto mereceu menos a atenção do jornalista do que as machambas — feitas com sangue — que nada produzem, segundo a fome que a sua própria reportagem apregoa?
Foi infeliz o mercenário português do
jornalismo moçambicano Fernando Lima mas, no meio da sua infelicidade teve
sorte. Homem de confiança da Frelimo não conseguiu agradar aos patrões, mesmo
atirando para a rua uma amostra da verdade do que é, e continuará a ser
enquanto o mundo civilizado consentir, enquanto um inferno terreno não queimar
Samora Machel e os criminosos que o rodeiam, o antro de morte e desespero de um
campo de reeducação da Frelimo, mesmo tratando-se
do único campo onde foi permitida a admissão a um jornalista da inteira
confiança do Partido.
Fernando Lima não
falou da forma como a alimentação é distribuída. Não disse que a massa é
retirada a ferver dos caldeiros e colocada nas mãos chagadas das prisioneiras.
Não relatou que aquelas que, não tolerando as insuportáveis queimaduras,
derramam a nojenta massa no solo, são inibidas de a apanhar e são forçadas, com a invencível dialéctica do chicote, a
comê-la no solo sujo por excrementos.
Fernando Lima não teve tempo para ver isso ou faltou-lhe coragem para relatar, e eu compreendo-o.
Porém, as poucas
verdades que partiram das bocas das carcereiras foram o suficiente para ofender
e assustar os proprietários — Samora Machel e o seu grupo — dos campos de
terror. Bem-haja, pois, pela quebra, mesmo pequena, do sepulcral silêncio a que
estávamos acostumados e que, por certo, não foi do agrado dos fariseus portugueses, promotores da independência
frelimista moçambicana.
Como podem eles
agora justificar as constantes viagens de amizade que fazem a Moçambique? ...
27.
O QUE Ë
A PROSTITUIÇÃO?
Pela reportagem de Fernando Lima subentende-se que a maioria das prisioneiras a reabilitar nos campos de
morte da Frelimo são prostitutas. Mas o que é a prostituição vista com os olhos
da Frelimo?
Leia-se este
bocado de prosa de uma crónica que Fernando Lima juntou à sua reportagem, numa espécie de crónica que intitulou «Como encarar a prostituição».
«Como
encarar a prostituição, como encarar os agentes da prostituição? Para os mais
simplistas trata-se de uma questão fácil de analisar, ou
pelo contrário, ignoram os fundamentos da prostituição, procurando no
comprimento de uma saia, na maquilhagem exagerada, em formas de trato mais
extravagantes de uma mulher, uma tosca definição de prostituta; num bar com
homens e mulheres que bebem cerveja ou
qualquer outra bebida alcoólica, um «quadro de prostituição». Para outros, duas pessoas que dormem juntas sem terem
assinado o contrato matrimonial, ou que simplesmente se passeiam em
qualquer artéria de uma cidade, em sítios bafejados pela luz eléctrica, também
serão casos de prostituição.
Ë
claro, como oportunisticamente convém, a denúncia destas graves situações é
sempre feita com vários chavões que falam muito de corrupção, liberalismo, etc.
São
casos que à mentalidade pequeno-burguesa, o puritanismo, os preconceitos
sociais e sexuais, a formação política de certos estratos sociais da sociedade
interpretam os factos, sem que efectivamente se faça
uma análise, uma leitura política das
situações.
A prostituição tem o seu fundamento na
sociedade de classes, nas circunstâncias económicas, políticas, sociais e
ideológicas engendradas por essa sociedade. Havia prostituição na Grécia
Antiga, havia no período feudal, existe nos países capitalistas, existe nos
países onde não as palavras, mas as condições políticas e ideológicas, as condições materiais, permitem que as
pessoas tenham relações de dependência entre elas, quando não existem
de facto novas relações entre as pessoas, onde não existem novos valores, nem
condições e trabalho político que possibilite a formação de um homem novo.
O
aspecto caricatural da prostituta na esquina ou no bar à espera de clientes é
apenas uma pálida ilustração do que é a prostituição. Nas concepções burguesas
de vida e relações sociais não é prostituta aquela que usa aliança, aquela que
vai à missa, ou que perfilha os padrões de honestidade convencionados.
Também as relações entre as pessoas são
eminentemente políticas.
O
amor é um acto político. E quantos casais na prática sabem responder
politicamente às solicitações quotidianas? Quantos não esquecem a política no
escritório onde desempenham «um cargo de responsabilidade» ou na sede do Grupo
Dinamizador» onde não faltam a qualquer reunião?
Para
muitos a política não entra na vida conjugal, nas relações entre as pessoas, ou
por outras palavras, a política, a ideologia está presente, mas é a ideologia
do inimigo, a ideologia reaccionária, exploradora e individualista. Por isso,
não devemos pensar que, se acabarmos fisicamente com as prostitutas mais
«visíveis» nos centros urbanos, acabamos
com a prostituição.
A
prostituição é inerente a um determinado sistema, onde são dominantes as
relações de desigualdade entre as pessoas, onde a ideologia dominante permite
que se forje a prostituição. Só eliminando as causas, as próximas e as remotas,
se poderá eliminar a prostituição. O mesmo será dizer que só destruindo o
sistema, a sociedade colonial-capitalista, só destruindo e eliminando a
ideologia burguesa, acampamento inimigo nas nossas cabeças, só com a criação
da SOCIEDADE NOVA, com a criação de fundamentos materiais e ideológicos que
permitam a eliminação da exploração do homem pelo homem, a criação do HOMEM
NOVO, se poderá eliminar a prostituição
FÍSICA E IDEOLOGICAMENTE.»
Temos pois uma nova definição de prostituição. Não é o amor, nem o acto que está em causa porque o amor é um acto político. Uma mulher pode ser honesta dentro dos padrões da honestidade convencional, ser amiga do seu marido, ser leal ao laço matrimonial, respeitá-lo em gestos e acções, nada se lhe apontar dentro das fronteiras da honestidade convencional, mas se a política — e tem de ser a da Frelimo — não entrar na sua vida conjugal, nas suas relações entre as pessoas, pratica prostituição.
Não é prostituta a jovem que, solteira, dorme com o guerrilheiro da Frelimo, ou com o dirigente do Partido, desde que leve bem dentro de si, a política socialista marchelista.
Não são prostitutas as mulheres, jovens e
velhas, que depois dos endiabrados batuques realizados nos recintos da sede do
Partido — e provo com a totalidade dos habitantes das proximidades do
ex-colégio João de Deus, na Beira — acabam as madrugadas em animalescas
bacanais, porque trazem dentro de si a ideologia e não são reaccionárias.
Não são prostitutas as camaradas do Departamento Feminino, das bases guerrilheiras da Frelimo, que dormem cada dia com o seu camarada diferente, porque são políticas e o acto é um acto político. Nem aquelas que encontrei no aquartelamento de M. Pádua — nove mulheres totalmente sem roupa — na barraca do comandante do destacamento.
Prostitutas são todas as mulheres, de todas as raças, que não aderem à Frelimo. Prostituição praticam todos os homens que não levantam o braço, de punho fechado, aos gritos histéricos de «Viva a Frelimo».
As mulheres encurraladas nos campos de reabilitação, desconhecendo a razão porque se conservaram vivas no Inferno onde viram tantos morrer, praticaram a prostituição porque não frequentavam as reuniões de esclarecimento do Partido no seu bairro, no seu emprego, porque não aderiram à Frelimo. E as que morreram, vitimadas pelas balas dos seus algozes embriagados por álcool e por desejos de sangue, eram prostitutas, praticavam a prostituição, embora fossem puras de corpo, embora se conservassem honestas de pensamentos e de acções, fossem óptimas esposas, mães exemplares e cidadãs sem mácula aos olhos da honestidade convencionada por todos nós.
A sua prostituição foi, pois, unicamente política. E por isso, leitor, nos campos de morte de Bilibiza, de Mandimba, de Tebamba, de Nawá, de Ludiene, de Nova Freixo, de Mabaca, de Marrupa, da Base Beira, de Luatize, da Base Central, de Atisel, de Msauíze, do Xiconono, e de outras criadas, e de muitas outras que serão construídas, podes encontrar homens e mulheres, com idades compreendidas entre os poucos dias de vida e os oitenta e noventa anos que praticaram prostituição aos olhos da honestidade não convencionada, da honestidade política mesmo conservando-se honestas, mesmo pagando com a vida para continuar a serem até à morte.
Foram transportadas como animais em camiões de carga para os diversos campos de morte do Niassa, numa viagem que demoraria cinco a seis dias mas que preencheu, totalmente, cerca de um mês, porque os ordenanças do delirante socialismo de Samora Machel, os transportadores da carrada humana para o matadouro, desejavam aproveitar a fartura de fêmeas do curral volante para as suas torpezas de sexualismo viciado e selvagem.
Mulheres, crianças, entregues aos abutres que em Lusaka receberam das mãos de insignes portugueses, seus irmãos, a resolução dos seus destinos, as suas próprias vidas.
Todos nós conhecemos as fronteiras da honra e do pudor, das gentes africanas, que vergastam as mulheres desde o nascimento: São vendidas pêlos pais ao primeiro homem que lhes pague o «lobolo» e trocam de marido desde que, com dinheiro ou valores, o novo conquistador indemniza o marido traído.
E não há prostituição! ...
A Frelimo, mesmo não apoiando o «lobolo», que considera uma das tradições tribais a afastar do povo moçambicano, admite-o. E criou, em sua substituição, o casamento revolucionário, praticado entre os e as camaradas, a qualquer nível, a partir do próprio Presidente. Samora Machel casou com Graça Simbine, uma mulher que possuiu diversos maridos revolucionários, sem que o seu casamento fosse registado em qualquer repartição além do Partido, que o autorizou.
Samora Machel casara em Lourenço Marques antes de entrar na revolução. Casou diversas vezes nos anos de combate. Apoderou-se de Josina Magaia, após ter assassinado o marido, um dos guerrilheiros de confiança do dr. Eduardo Mondlane, o comandante Filipe Magaia. Assassinou Josina Machel porque sabia demais sobre a morte do primeiro presidente da Frelimo e volta a casar com Graça Simbine depois de endeusar o nome de Josina entre as componentes do Departamento Feminino que ela criou.
Mas nunca praticou prostituição. Nem nenhuma das suas amantes. Mesmo agora, que esconde o filho à curiosidade popular por não ser negro como ele nem como Graça Simbine sua última mulher — que também era casada em Lourenço Marques antes da revolução — não acusa a mulher de prostituição. E a razão é simples:
Todos eles transportam para os actos de amor animalesco a política. Os seus actos de amor são políticos. Não são reaccionários. Não fazem parte da honestidade convencional. A política foi transportada para a sua vida conjugal, mesmo que essa vida conjugal apenas dure horas ou meses.
O que pensaria, se vivesse, da evolução marxista moçambicana, o seu criador Karl Marx?
Os outros prisioneiros, as outras prisioneiras, são Testemunhas de Jeová. Pertencem à seita religiosa sedeada nos Estados Unidos da América mas espalhada pelo mundo inteiro.
Lidei com os membros desta religião, com os mesmos que hoje morrem nos campos de trabalho e de extermínio da Frelimo em 1972, nas regiões de Gulemo--Balame, na Angónia, onde cerca de quarenta mil se refugiaram a expensas do Governo de Portugal.
Eram pessoas honestas e trabalhadoras.
Ergueram, como se saltassem do solo de um dia para o outro, mercê da vontade férrea do homem, gigantescos, embora precários, aglomerados humanos, que rodearam de evoluída agricultura. Eram, na totalidade, malawianos e somavam cerca de quarenta mil almas.
Desloquei-me, em aventurosa viagem, acompanhado de um administrador de posto de Vila Coutinho, à região onde se acolheram e onde desejavam contribuir no desbravamento de terras, na agriculação, no progresso moçambicano.
Não possuíam outra política além da sua religião e o amor ao próximo, e haviam sido expulsos do Malawi. O Portugal moçambicano acolheu-os e integrou-os sem dificuldade na sociedade local.
Em Agosto e Setembro de 1975 a Frelimo quis mostrar a sua presença bolchevista disfarçada de laicismo, e as quarenta mil pessoas, e quantos moçambicanos com eles estudavam a Bíblia, tiveram de enfrentar torturas desumanas, espancamentos, roubos de dinheiro e as mais infamantes sevícias.
Os homens foram despidos e muitas mulheres foram estupradas.
Em Setembro, Outubro e Novembro de 1975, congregações completas foram transportadas para os campos de extermínio, nelas se incluindo cerca de três mil moçambicanos, além das dezenas de milhar de malawianos que se haviam refugiado na Angónia.
Entretanto, dezenas de milhares de volumes com roupas, oriundos da África do Sul, legalmente despachados nos correios sul-africanos, vistos e revistos pêlos serviços alfandegários moçambicanos sem que qualquer atropelo à lei fosse detectado, destinados às Testemunhas de Jeová, eram abertos em Tete, por ordem do inspector da P.I.C., e distribuído o seu valioso conteúdo pelos combatentes terroristas da Z.A.P.U., depois denominada Z.I.P.A., e pêlos simpatizantes da Frelimo.
Os volumes continham fatos, casacos, camisolas, vestidos, sapatos, sobretudos, ofertas de instituições humanitárias internacionais. Mas isso pouco importou à P.I.C. da Frelimo. A Frelimo desafiava as leis internacionais, apoderando-se do que não lhe pertencia, do que era propriedade dos homens, mulheres e crianças que assassinara ou enclausurara em campos de trabalho.
E, pasmai! o mundo aceitou todo este procedimento com criminosa indiferença.
Eu próprio vi os volumes armazenados nas instalações da P.I.C. em Tete, assisti à sua conferência pêlos registos alfandegários, e ouvi da boca do camarada José Castigo, que mostrava um rictus de estranha e patética felicidade:
— Oh Passos, isto vale mais de vinte mil contos! ...
Não respondi. Tudo aquilo que estava frente a meus olhos, ocupando todas as salas do primeiro andar do edifício, mesmo ao lado do Tribunal que deveria significar Justiça, não tinha preço monetário. Valia as quarenta mil vidas destruídas pela Frelimo.
28. O ASSASSINATO
DO POLÍCIA GRAÇA DINIZ
Massacres, perseguições, lentos assassinatos pela fome, pela pancada, esquarte-jamentos, têm-se acoitado à desculpa benevolente, e geralmente aceite, da política, em todas as gerações.
Grande número destes acidentes históricos, para melhor serem tolerados e digerados pela opinião do homem comum das regiões onde eles não têm lugar, jogam com a palavra liberdade. A liberdade deu até agora um explêndido exemplar de carniceiro.
Os processos de tortura têm evoluído com o decorrer dos tempos, e cada geração anexa à experiência histórica das artes de matar novos processos de destruição do homem. Cada governo tenta superar o que politicamente lhe está mais próximo, nos processos de tortura, criando organizações especializadas na morte.
A Frelimo não aprendeu na História nem disso necessitou.
Não lhe faltaram professores especializados
na matéria.
Os anos de treino na Argélia — inicialmente — na Rússia e na China — depois— criaram técnicos excepcionais na arte de matar, e vítimas para o holocausto das macabras experiências não faltaram em Moçambique. O país é grande e existe muito espaço desértico onde implantar bases de reeducação, para encurralar as cobaias humanas, arrebanhadas sem escolha entre os que não apoiam os crimes da política marchelista. Se um dia alguém conseguir agarrar os números dos que foram sacrificados ao processo de torturas frelimista, o mundo verificará, abismado, que a Frelimo ocupa lugar de destaque na trágica história universal.
Falarei de uma vítima. Como símbolo. Falarei dela porque há testemunhas oculares que podem declarar perante a Justiça internacional, os tormentos que viram inflingir a um inocente até à morte. Falarei da destruição, fabricada com técnica sádica ao agente da Polícia de Segurança Pública, Adelino da Graça Diniz, no campo de recuperação de Bilibiza, em Cabo Delgado (agora Rovuma), onde outros como ele agonizam no momento em que, frente a teus olhos está esta reportagem. Antes, porém, terei que recuar escassos meses, para que melhor se entenda os motivos da sua morte.
A Polícia de Segurança Pública em Moçambique, que dependia da organização congénere metropolitana, era porém dividida em dois sectores que na actuação não se diferenciavam: Os recrutados na antiga província e os que zelavam pela segurança das populações moçambicanas em regime de comissões, enviados, portanto pela Mãe-Pátria, para o Ultramar. A única distinção verificava-se no fardamento: Os agentes em comissão continuavam envergando os uniformes metropolitanos acinzentados e os recrutados, na grande maioria metropolitanos também, que entraram na Corporação após o cumprimento do serviço militar em Moçambique, usavam o uniforme de caqui amarelo, mais de acordo com as condições climatéricas locais.
Após a independência, e especialmente nos meses que a antecederam — durante o domínio do Governo de Transição de maioria frelimista — quantos recrutados locais requereram a sua partida para Lisboa, ou para os destacamentos metropolitanos, foi-lhes concedida.
Alguns, porém, iludidos pelas palavras amistosas do Governo, então dirigido por Joaquim Chissano, por serem naturais de Moçambique ou no futuro país terem vivido por longos anos, ou por à terra se sentirem ligados por laços familiares
— muitos haviam contraído matrimónio com naturais—, ou ainda por a sua permanência lhes possibilitar uma mais fácil promoção hierárquica, conquistada pela sua experiência policial, aceitaram o ingresso nos quadros moçambicanos.
Pesou, ainda, nesta tomada de resolução, permanecer durante largos meses em Moçambique a polícia metropolitana, em regime de conselheira dos novos recrutados para o exercício policial, entre os guerrilheiros da Frelimo e os oportunistas que, à última hora aderiram ao Movimento.
Adelino da Graça Diniz foi um dos que ficaram.
E ficou para morrer.
A violência da Frelimo começa, porém a manifestar-se, e alguns dos seus obreiros passaram a ser os policiais, imediatamente a seguir à partida dos últimos contingentes dos conselheiros portugueses. A Frelimo converte-se numa organização especializada em tortura e assassinato. Matam-se milhares de indivíduos por uma simples delacção ou suspeita de não militância ou antipatia às ideias políticas marchelistas. Nas cidades organizam-se verdadeiras caçadas, camufladas em lutas contra a prostituição, em lutas contra a corrupção, mas que verdadeiramente são uma perseguição sistemática contra a presença branca e contra a chamada burguesia. Será difícil saber-se um dia quantos milhares de pessoas morreram nessas «orgias» da Frelimo. Famílias inteiras, aldeias inteiras foram exterminadas ou sonegadas à sociedade, nelas se incluindo, como já frisei, quantos professavam as ideias religiosas das Testemunhas de Jeová.
A polícia moçambicana, que abandonou a denominação de Polícia de Segurança Pública para se converter em Corpo de Polícia de Moçambique, estava destinada a cumprir papel essencial nessa acção criminosa de repressão.
Muitos agentes, levados por princípios morais, por repulsa natural ao crime, permaneceram leais à sua consciência. Certifícaram-se, com horror, da repressão levada a cabo pelo Corpo de Polícia de Moçambique. As execuções multiplicam-se e a fuga de refugiados expressa o terror e a insegurança do povo. A repressão policial não é outra coisa mais do que urna vingança política, visando destruir as ideias contrárias à Frelimo por meio do extermínio físico dos seus defensores.
Em nenhum caso, porém, a atitude destes agentes moralizados pode ser chamada de rebelião no sentido jurídico do termo; foi, pelo contrário, uma tomada de posição ao lado do povo moçambicano, a que por nascimento ou por vivência pertenciam, um desejo de restabelecimento da ética e justiça que haviam sido ignoradas e frequentemente violadas.
O agente da Polícia de Segurança Pública de Moçambique, Adelino da Graça Diniz tomara essa posição e era, perante a Frelimo, um elemento que necessário se tornava eliminar.
Foi preso. Foi insultado e amesquinhado. Foi agredido. E depois, resto do que tinha sido, foi transportado para o Centro de Reabilitação de Bilibiza, para ser definitivamente reabilitado com a morte, sofrendo no seu corpo todos os tratamentos que tentou evitar que fossem inflingidos ao povo.
Mas no campo de Bilibiza diversas testemunhas assistiram ao assassinato do agente da polícia e identificaram os seus assassinos. Foram eles o comandante provincial do Corpo de Polícia de Cabo Delgado, camarada Massamba, o comandante da Defesa de Cabo Delgado, camarada Pfumo, o chefe da secretaria do referido Corpo de Polícia, camarada Namuca, diversos guerrilheiros e policiais, entre estes últimos se distinguindo pela sua ferocidade, o agente número 52 daquela corporação assassina.
E as testemunhas contam, ainda horrorizadas:
«Graça Diniz esteve amarrado durante catorze horas sendo durante esse período constantemente agredido da forma mais selvagem e desumana. Foram-lhe partidos os dedos das mãos, um a um. Aplicaram-lhe a tortura «china»; Braços amarrados atrás das costas até as omoplatas encostarem uma à outra.
Foi queimado com pontas de cigarros. Foi brutalmente agredido e espancado cruelmente. Após as catorze longas horas de indizível suplício, Graça Diniz era um homem completamente destroçado.
Urinava sangue. Agonizava. Os seus algozes deixaram que ele fosse metido num jipe para — segundo afirmaram — ser levado para tratamentos no hospital.
Poucos dias depois um dos polícias da Frelimo — prosseguem as testemunhas — informou os portugueses presos naquele campo que Graça Diniz já fora enterrado.
Entretanto, Álvaro Cunhal visitava Moçambique. Durante os dias que antecederam a visita os jornais e a Rádio, em largos títulos, louvavam o camarada visitante e convidavam o povo a associar-se aos festejos dedicados ao nosso grande salvador e ao grande amigo dos moçambicanos.
A Frelimo organizou festas. Recepções. Banquetes. Correu champagne a esmo. Álvaro Cunhal foi festejado. O povo foi obrigado pelos Grupos Dinamizadores a sair à rua e a concentrar-se à passagem do visitante, para o aplaudir, para o acarinhar. E algum povo veio, porque há sempre algum povo para ir a qualquer parte.
Álvaro Cunhal ergueu imensas vezes o seu braço direito e de punho fechado elevou a voz, que Portugal já bem conhece, em «Vivas à Frelimo». Estridentes. Sentidos. Convincentes.
Álvaro Cunhal foi recebido em festa pela Frelimo. Pela mesma Frelimo que torturou e assassinou o agente da Polícia de Segurança Pública Graça Diniz. Pela mesma Frelimo que ainda conserva no campo de Bilibiza, e pêlos imensos Centros de Reabilitação de Moçambique, milhares de Portugueses à espera da morte. Que não foram convidados a assistir à chegada de Álvaro Cunhal. Nem aos banquetes oferecidos em sua honra ...
29. PORTUGAL NÃO FOI LUDIBRIADO
Perante os factos que até
agora descrevi — e que provarei aonde e quando
for necessário — é de crer que muita gente
— e Portugal está cheio dela — possa
ainda acreditar na boa-fé dos negociadores de Lusaka e de alguns
elementos das
Forças Armadas de Portugal que sustinham o bastão do Poder. ,
Ê de crer que para esses o povo português reserve umas quantas palavras de comiseração: Coitados! ... Eles acreditaram nas promessas da Frelimo...
Quem assim pensar, engana-se.
Os negociadores e grande parte das Forças Armadas portuguesas sabiam com que espécie de Frelimo iam negociar. Conheciam toda a astúcia, toda a desonestidade, o espírito de traição dos dirigentes do Partido moçambicano e mesmo assim foi com eles que assinaram o sinistro Acordo.
A minha profissão, e especialmente o cargo
que ocupava na gigantesca província de
Tete, levava-me a imiscuir-me nalguns meandros confidenciais, e por vezes secretos da polícia militar portuguesa,
especialmente na trágica e insegura fase que medeou entre o 25 de Abril
de 1974 e o 7 de Setembro, de 1975.
E o que, de certo modo, é interessante, é que eu possuía duas espécies distintas de informadores, antagónicas, até. Da primeira faziam parte contactos por mim aliciados, homens que eu considerava como colaboradores essenciais ao bom desempenho da minha missão de jornalista destacado na mais estratégica região da guerra em Moçambique.
Trabalhavam nas mais diversas repartições civis e militares e traziam-me informações, sempre antecipadamente aos informadores oficiais, competindo-me a mim, apenas, tentar confirmação antes de as remeter, geralmente telefonicamente, para a redacção do jornal.
A segunda espécie de informadores era composta pêlos homens que oficialmente tinham, entre muitas, a função de informar a Imprensa, mas que só me diziam o que lhes interessava, o que não bolia com o bom nome militar, o que, como é lógico, me era permitido publicar, visto que dentro do próprio jornal, lendo e relendo todas as notícias recebidas, existia, nesses primeiros tempos de democracia portuguesa, um censor militar nomeado pelo M.F.A.
Essa informação oficial era dirigida pelo major Xavier, que chefiava a Repartição de Acção Psicológica Militar e estava à frente da comissão do Movimento das Forças Armadas.
Por norma, como já disse, as informações que este competente e inteligente oficial trazia ao meu conhecimento haviam sido antecedidas por outro informador privado, e em algumas vezes eu não consegui oferecer ao meu rosto a máscara de ingénua surpresa que ele esperava, e que, confesso, me seria da maior conveniência. Por outras logrei enganá-lo, e vale a pena relatar o caso «Ornar», a mais vergonhosa traição cometida pela reconhecidamente criminosa Frelimo às Forças Armadas Portuguesas, facto que foi totalmente esquecido pêlos ilustres oficiais que assinaram o Acordo de Lusaka.
Vamos à história:
Estava-se numa fase de paz, se bem que o acordo de cessar fogo só fosse assinado um mês depois. Era uma paz táctica, conveniente para ambas as forças em luta. Os maiorais da Frelimo na região de Tete já se haviam deslocado por diversas vezes à residência do Governador de Tete, Gomes do Amaral, e com ele haviam acamaradado. Os guerrilheiros operacionais já haviam trocado as esfarrapadas fardas que envergavam, e que envergonhavam a Frelimo — viam-se homens de casaco camuflado roto e calções vermelhos sebentos e chapéus de mulher em vez de quépis militares — por uniformes oferecidos particularmente pelas Forças Armadas. Outros, ainda, haviam recebido, por oferta, calças civis de boa fazenda e casacos à última moda, para se apresentarem, condignamente, como representantes do exército vitorioso.
Eu próprio assisti à entrega de cara roupa civil ao comandante Raimundo Dalepe e aos seus homens, e os ofertantes foram oficiais do Exército de Portugal.
Enfim, existia uma tácita paz sem que o cessar fogo fosse oficializado e os militares de todas as graduações — menos os fuzileiros, esses nunca entraram no jogo — iam acumulando recordações, deixando-se fotografar em amistosas posições junto dos seus inimigos de ontem.
Foi este ambiente de calma e de paz que o caso «Ornar» veio turvar.
Eram cerca das dezoito horas quando recebi em casa a chamada telefónica de um militar, meu informador pessoal. Minutos depois ele encontrava-se na minha casa e contava-me:
— O quartel de Ornar, guarnecido por militares portugueses, fora aprisionado pela Frelimo.
E entrando em pormenores:
— Uma força da Frelimo cercou o quartel, emboscada. Muitos guerrilheiros haviam, nos dias anteriores, acamaradado com os soldados portugueses e o clima que se vivia era de autêntica paz. Além dos emboscados um outro pequeno grupo aproximou-se e alguns elementos falaram com os soldados pedindo que saíssem e viessem acamaradar com eles, pois a guerra havia terminado. Alguns soldados portugueses acederam e começaram os abraços, as boas falas, os gestos de amizade.
E prossegue, transmitindo-me o que sabia e que havia chegado ao seu conhecimento de forma confusa:
— Os comandantes da Frelimo pediram para os oficiais portugueses entrarem na festa. Estes vieram e apenas um alferes trazia, por rotina, uma pequena arma consigo. Quando todos se encontravam juntos as traiçoeiras kalashnikov fora-lhes apontadas pelo numeroso grupo que se encontrava emboscado. Alguns, poucos soldados conseguiram fugir à ignóbil traição e deram o alarme depois de caminharem desarmados durante toda a noite e parte do dia seguinte. Todo o destacamento português foi aprisionado e levado sob captura para a Tanzânia.
E termina:
A aviação portuguesa já sobrevoou Ornar. Está lá desfraldada a bandeira da Frelimo, onde estivera a Bandeira de Portugal. Continua, porém, rigorosa proibição às nossas forças para reagirem à traição da Frelimo.
— Mas Tete está cheia de guerrilheiros da Frelimo e ninguém os prende! — observei, com espanto.
— Ninguém os prende? — retrucou o meu informador: — Então eles vão comer ao quartel com os nossos oficiais! ... Estão lá agora ...
Pedi uma ligação telefónica para a redacção do jornal, pois Ornar, pertencendo a uma outra zona de operações — eu estava na Z.O.T. (Zona Operacional de Tete) e Ornar fazia parte da Z.I.N. (Zona Intervencionai do Norte)—e as confirmações da ocorrência deveriam ser investigadas pela sede do jornal. Ainda me foi possível falar com o telefonista da Beira mas, como vinha acontecendo sempre que contactava a Beira, o telefone silenciou, sinal que me indicava que a minha conversação ia ser posta à escuta e só funcionaria quando o meu espião estivesse operacional e com o gravador a postos.
Alertei o meu
informador — um furriel — no sentido de que se pusesse ao fresco mas o meu aviso foi tardio.
Escondeu-se no quarto do meu filho enquanto eu abria a porta ao meu visitante.
Era o major Xavier.
O que o levava à minha casa — disse-me era saber se eu tinha conhecimento do que tinha acontecido em Ornar. Ele também «não sabia bem o que se passava, mas era conveniente que eu silenciasse qualquer informação que viesse ao meu encontro».
— É sobre o quartel de Ornar... A Frelimo fez uma patifaria qualquer e parece que aprisionou os nossos soldados... Eu não sei bem o que foi, portanto não publique nada. Eu o que souber de fonte segura mandar-lhe-ei um comunicado, mas é possível que o Comando Chefe informe directamente os jornais...
Sosseguei-o e ele partiu. O meu informador, no seu esconderijo, respirou fundo. Eu, pelo meu lado obtivera a confirmação da sua notícia... mas ela não apareceu na Imprensa ...
O que motivou o segredo militar?
O que o motiva ainda?
Estava em jogo o prestígio da Frelimo. Ia ser assinado, no mês seguinte, o honroso Acordo de Lusaka. Estava em funcionamento a mecânica da descolonização exemplar.
Mas a Frelimo apregoou aos quatro ventos a sua excepcional vitória de Ornar e as rotativas do mundo comunista e os telex das agências de Informação espalharam a vitória dos nacionalistas moçambicanos. E Portugal honrosamente silenciou a afronta. Ainda hoje, nos calendários vendidos pelo Partido, o caso Ornar é apresentado como uma derrota do exército assassino dos colonizadores portugueses.
Um militar confidenciou-me no dia 7 de Setembro, enquanto decorriam as conversações em Lusaka:
— Tenho pena de que a Frelimo não repita neste momento o caso Ornar, levando a pé, da Zâmbia à Tanzânia, os militares portugueses que ali se encontram...
Um meu contacto militar — clandestino — entrou nos lavabos do snack-bar Mondego, ao lado da Delegação do jornal. Passaram cinco minutos e não saiu. Era a senha.
Dirigi-me aos lavabos. Entregou-me umas folhas dactilografadas e poupou palavras. Puxou o autoclismo e saiu. Ocupei o seu lugar e copiei o conteúdo. Era a lista dos portugueses a vigiar ou a afastar de Moçambique antes da assinatura do Acordo de Lusaka. Eram todos portugueses de rija têmpera. Dos bons. Podiam prejudicar a descolonização.
Um que tinha o nome na lista levaria, poucos dias depois, um tiro que lhe perfurou o tórax e um braço, o único que o atingiu de uma rajada disparada para matar por uma força da Frelimo.
O seu nome é Silva. Está vivo. Falei com ele — pouco — quando se preparava, já recuperado, para prestar declarações. A Frelimo também tivera conhecimento da lista pois outro, um homem idoso, de nome Perestrelo, funcionário dos Correios, foi incomodado seriamente pela Frelimo, já depois da Independência.
Estes dois exemplos, de centenas que me era possível passar para o papel, provam que as Forças Armadas de Portugal tinham conhecimento da falta de honestidade dos dirigentes da Frelimo. Que sabiam que aquele partido não respeitaria qualquer acordo. Que ela atraiçoaria qualquer promessa de segurança futura que fosse negociada para os cidadãos portugueses. Não é possível analisar-se detalhadamente a evolução de todo o processo histórico da Frelimo sem chegar a essa conclusão.
Mas era necessário romper com o passado, com a política marcada pelo colonialismo, e os responsáveis pelo Governo português, seguros do incondicional respaldo militar — que ao fim e ao cabo não era tão seguro — não olharam às consequências da entrega incondicional do povo moçambicano, e de muitos milhares de portugueses, a uma organização que enveredara pelo terrorismo sem moral, protegida pelo bolchevismo russo.
Só o povo moçambicano e a colónia portuguesa — e alguns observadores internacionais— mediram a vil traição de que foram vítimas todos os habitantes de Moçambique, uma traição que finalmente não se viraria apenas contra eles, contra os quinze milhões de negros que viviam espalhados por todo o Ultramar português, e pêlos milhares de portugueses de Angola e de Moçambique, de Cabo Verde, Guiné e Timor, mas que fez desabafar sobre os milhões de portugueses da Europa um regime de austeridade económica, saindo beneficiados — e até quando? —, apenas uns tantos milhares de comunistas negros, que constituem a nova classe dirigente das ex-colónias portuguesas e alguns apaniguados ao partido político do Governo de Portugal.
Na congeminação dos erros que surgiram com o delírio político de alguns militares revolucionários progressistas e dos extremistas sem pátria, ambos guiados pelo barómetro político que oscilava entre a esquerda e a esquerdíssima, ambos protegidos pelo clima de insegurança social fornecido pela constante e sucessiva mudança de governo em Portugal, muita coisa foi escondida ao povo português. Endeusaram-se nos altares da religião vermelha os arautos da liberdade moçambicana, quando não era a libertação dos povos e das terras que estava em jogo no xadrez político do Governo de Portugal, mas a sua entrega ao império dos novos czares da Rússia.
Não foi um hino de liberdade que ecoou pelas plagas moçambicanas, pêlos campos de mapira, de algodão, de quenafe, de chá, de açúcar, de tabaco, que penetrou nas cidades, nas aldeias, nos casebres humildes, nos riachos, nos rios, mas a «Internacional», acompanhada pelo compasso assassino do som de morte das rajadas das metralhadoras.
Não estava em jogo a liberdade.
Já o disse, no decorrer desta reportagem, que a liberdade existia no pensamento de todos. Dos negros, dos brancos, dos mestiços, dos indianos, dos chineses, de quantos nasceram em Moçambique ou se sentiam moçambicanos. Disse, também, que Marcello Caetano previra essa libertação e não a combateria com a sua influência política. Afirmei, ainda, que os presidentes negros da África Austral— agora denominada terceira força—, tinham os seus planos, estudados nos calmos gabinetes de Estado, e que a influência que então exerciam sobre Samora Moisés Machel levaria este a apoiá-los, planos honrosos que, a serem cumpridos, elevariam perante o mundo apartidário, ou verdadeiramente não alinhado, o nome de Portugal.
Diversas soluções apareciam no universo da liberdade pretendida, mas não era liberdade que se jogava na política portuguesa. As intenções de quem a manobrava estavam traçadas e eram apoiadas pela mais drástica repressão policial, criminosamente embandeirada de defesa às conquistas democráticas do 25 de Abril.
Com o estandarte da liberdade as autoridades portuguesas permitiram a prisão da totalidade dos dirigentes nacionalistas negros, com excepção de Miguel Murupa e de Domingos Arouca, os únicos que não aceitaram as promessas de garantias de segurança, prometidas pelo general António de Spínola — promessas honestas com intenção de cumprimento — e pelo general Francisco da Costa Gomes — que apenas quis colocar fora de combate os inimigos das suas ideias extremistas.
Com a bandeira da liberdade as mesmas autoridades portuguesas fizeram emitir mandatos de captura a quantos conheciam, e mostravam conhecer, os verdadeiros caminhos para a liberdade moçambicana, a quantos amavam, e provavam amar, Moçambique e o seu povo, não conseguindo, mesmo tendo como aliado o tempo, provar ao povo português que crimes ou desvios praticaram os acusados, para basearem as suas drásticas atitudes policiais e de força. Entre eles lembro o mandato de captura passado ao eng.° Jorge Pereira Jardim. Entre outros recordo a prisão do general Kaúlza de Arriaga. Entre outros assinalo as demissões da então Junta de Salvação Nacional, dos militares Jaime Silvério Marques, Diogo Neto e Galvão de Melo.
Mas a liberdade, uma verdadeira liberdade, era prometida a Moçambique por outros moldes e com outra cor. E essa forma de liberdade, que orgulhosamente deveria ter sido seguida pêlos dirigentes de Portugal, tem forçosamente de ser conhecida do povo português, para que finalmente se entenda toda a realidade dramática que representa a presença dos negros de olhar triste nas terras continentais do Atlântico, dos brancos desesperados, dos mestiços sem futuro, que pelas ruas de Portugal mendigam empregos, e comem, sem apetite, as esmolas internacionais oferecidas pêlos países que os reconhecem como vítimas de um drama para que não contribuíram, esmolas que não compensam, de forma alguma, nem tornam menos negro o luto da traição de que foram alvo.
A liberdade moçambicana oferecia opções,
mas apenas a terceira foi aceite pelos
governantes portugueses. Sobre elas vou escrever, documentando-as.
3 Foram libertadas, após uma visita ao Hospital de Lichinga, efectuada pelo secretário do ministro de Saúde e Assistência. Dessas sessenta mulheres que se encontravam hospitalizadas, a maioria em estado de anemia, faleceram em Lichinga dezanove, entre elas uma portuguesa, natural de Famalicão, de 19 anos, de nome Leonor, estudante de Farmácia em Lourenço Marques. (Nota do Autor)