TERCEIRA  PARTE

O APOCALIPSE MOÇAMBICANO

 

 

 

14.     MOÇAMBIQUE   FORTE   PARA   A   GUERRA?

O medo já não consegue silenciar as populações, que se manifestam aberta­mente contra a agressividade do regime moscovita que as acorrenta. Todos tentam a fuga do país, abandonando os haveres. A alegria peculiar das populações deu lugar a vulcões de ódio em vias de erupção, enquanto o espírito de revolta penetra nas fileiras do Partido em todos os sectores, sem disfarces.

As forças populares abusam do poder, usam as fardas e as armas como escudo para violentarem mulheres, para praticarem assaltos criminosos, para dis­tribuírem o pânico pelas populações, sabendo que as suas acções são facilitadas pela anarquia que assola os comandos, e pêlos pequenos fulcros de revolta que, aos poucos, se convertem em rotina.

Samora Machel mostra-se apreensivo e tenta dominar a situação, sentindo que lhe foge o poder. Mas a sua preocupação volta-se contra os militares que tentam fugir ao seu dirigismo totalitário e não contra a corrupção.

Reúne com as Forças Populares em Boane e cria severas leis militares, proibe a circulação na via pública, nos estabelecimentos civis, nos cinemas e cafés, de militantes uniformizados. Decreta penas pesadas de prisão a quantos forem encontrados armados sem missão justificativa. Reprime com raiva o que sabe que já não pode dominar.

A revolta, porém, não tocara apenas os militares, e as represálias do Pre­sidente da República são ineficazes para combater a evolução de todo um movi­mento contra o regime, urdido nas mais elevadas esferas do Partido. E enquanto o povo, desconhecedor da realidade, recebe com alívio as medidas repressivas de Samora Machel, um batalhão das Forças Populares, estacionado na Machava, revolta-se contra a ditadura do Presidente da República e tenta ocupar, pela força, os pontos nevrálgicos da capital moçambicana.

A insurreição foi esmagada sanguinariamente mas um facto estava à vista dos observadores: As Forças Populares haviam encontrado a brecha por onde manifestaram a insuportabilidade ao regime. O povo, porém, mais uma vez pagou para aprender.

A intentona militar foi dominada mercê de uma denúncia, mas a desordem e o caos apoderavam-se do poder do regime socialista moçambicano, enquanto o líder se excedia com o entusiasmo da vitória fácil.

O grupo intelectual-marxista do Partido não partilha do mesmo estado de ânimo. Moscovo tornara bem claro que era necessário eliminar a oposição, seleccio­nando os membros do grupo dirigente com o afastamento dos menos receptivos às teorias comunistas. E o momento era oportuno, pois acirravam-se as divisões.

A ideia foi levada a Samora Machel disfarçada no comportamento imoral dos homens a sanear, e os antigos heróis, fanatizados em discursos, e apontados como exemplo de militância ao povo, foram indicados como imorais em comunica­dos oficiais, publicados simultaneamente em todos os órgãos de Informação do país.

As soluções de emergência, forjadas pelo cérebro marxista da Frelimo, con­tinuavam deste modo a ser bem aceites por Samora Machel. Elas haviam sido iniciadas meses antes com a destituição de um dos mais importantes elementos do Partido, o governador Pedro Juma, responsável pelo governo da província do Maputo, onde se integra a capital. Bastava prosseguir a mesma política, e a cada acção de saneamento foi dada a mesma justificação: purificação de fileiras.

Mas a purificação mostrava-se ilimitada, pois o espírito de revolta contra o regime afectava dirigentes e dirigidos, havendo cada vez menor número de sobre­viventes nos Comités Central e Executivo da Frente de Libertação de Moçambique, facto que nunca se havia verificado nos tempos de combate.

Mateus Malichocho foi acusado de desenvolver intrigas e actividades divisio-nistas no seio da Frelimo para satisfazer as suas ambições, de abusar do poder para usufruto pessoal, de fomentar a subversão e a indisciplina no seio das Forças Populares, tentando promover a sua desagregação. Foi expulso do Comité Central do Partido, a mais alta instância governativa da nação.

Joaquim Maquival foi acusado da demonstrar negligência no cumprimento das missões de que foi incumbido, de utilizar fundos da Frelimo para satisfazer os seus vícios pessoais, nomeadamente a corrupção sexual. Foi demitido de Secretário Provincial, deixando automaticamente de fazer parte do Comité Central.

Leonard Cumbe foi acusado de se mostrar altamente ambicioso, indisciplinado, intriguista e boateiro, de ter utilizado fundos da Frelimo para satisfazer vícios pessoais, abusando do poder com idêntico fim, de ser corrupto sexual e moral, opondo-se frontalmente, através do seu comportamento de corrupção, à emancipação da mulher, manifestando por esta total desrespeito. Foi demitido de director-adjunto dos Serviços de Saúde da Frelimo.

Gideon Ndobe, ex-ministro de Educação e Cultura do Governo Provisório, foi acusado de indisciplina e falta de respeito pelas estruturas, de prática sistemática de embriagues, de imoralidade e desrespeito pela mulher. Foi demitido de Secretário Nacional do Departamento de Educação e Cultura, deixando automaticamente de fazer parte do Comité Executivo da Frelimo.

          Estes saneamentos foram publicados na Imprensa em Abril de 1976, mas não chegariam dezenas de volumes para transcrever quantos se seguiram a estas primeiras depurações. O terror exercido por Samora Machel e ordenado pelo seu grupo de conselheiros bolchevistas baseava-se numa auréola de herói político que já não encontrava terreno de eleição nas massas moçambicanas. E como não era de crer que se tratasse de uma concepção original da política comunista os observadores divisavam, oculta em cada ordem, o longo braço do Kremlin.

Os jornais e a Rádio aprovaram, era certo, todas estas atitudes. Adulavam o Presidente. Aplaudiam-no num servilismo com que os leitores e os ouvintes não concordavam. Todos compreendiam, com a clareza que precede as grandes convul­sões políticas, que Moçambique se abandonava a uma vontade estrangeira, afas­tando-se dos seus caminhos históricos.

Nenhum jornal pensava adiantado ou por si, nenhum profissional de Imprensa tinha ideias próprias, individuais. Aplaudiam quanto partisse do Presidente da Repú­blica, sentindo uma fraca consolação nas palavras de incentivo do D.I.P., dirigido por Oscar Monteiro, um dos intelectuais marxistas, que isso mesmo desejava: Jorna­listas autómatos ao serviço de jornais servis. Mas a República Popular de Moçam­bique tornava-se assim, e cada vez mais, menos popular.

O Comité Central do Partido, reduzido a menos de metade do número de elementos exigido pêlos Estatutos, aprovados em Congresso, e impossibilitado de os engajar entre as massas afectadas por uma agressiva sub-cultura, ou entre os militantes descontentes, aceitava, mais aparatosamente, a tutela da União Soviética. As idas e vindas de diplomatas enviados pêlos dois países, desmascaravam a dependência, cada vez mais humilhante e aflitiva, de Moçambique a Moscovo. Ao povo restava-lhe criticar, e a Samora Machel sentir-se de dia para dia mais isolado.

Não se julgara ele completamente apoiado pela população moçambicana na fase da Independência?

A sujeição a uma potência estrangeira, seja qual for a sua política, é sempre sujeição, e o povo moçambicano queria aliviar-se, por qualquer preço, do fardo de Portugal. Isso era, em parte, um apoio à Frelimo, e, por consequência, a Samora Machel. Mas a que Frelimo?

O povo sabia apenas que a Frente de Libertação de Moçambique era uma organização que lutava pela independência nacional, que lutava, portanto, pelo ideal colectivo das massas. As suas recentes inclinações políticas, as suas progressivas provas de sujeição a Moscovo, só eram do conhecimento de poucos observadores, e estes haviam sido silenciados durante o Governo de Transição. As massas popu­lares só delas se aperceberam após a Independência, com o início das perseguições ideológicas e religiosas, com as nacionalizações, com os proteccionismos, que o espírito ideológico actual do Partido não se adaptava às necessidades da nação nem aos desejos do povo.

A fome, a miséria, a incapacidade de governar dos dirigentes foram o pri­meiro toque a rebate. As prisões arbitrárias, a corrupção dos mandantes, o seu luxo, as directivas educacionais, os trabalhos forçados nas machambas colectivas, a implantação de aldeias comunais, viraram o povo contra a Frelimo.

Se a História da Construção de Moçambique, iniciada após a Independência em 25 de Junho de 1975, não tivesse sido acompanhada de tantas tragédias indi­viduais, o Partido conquistaria o povo, pelo menos a grande parte dele que não conheceu a guerra, que não foi vítima das traiçoeiras minas. Nas zonas nortenhas o apoio retardaria, por grande parte da população ter assistido a massacres da Frelimo, ou ter entre os seus familiares alguém desmembrado pelas traiçoeiras minas, que, ao contrário do que sempre rezaram as propagandas do Partido, se vira­ram mais contra o povo do que contra o exército colonialista português. O apoio retardaria mas seria conquistado tarde ou cedo.

Com plena consciência de que seria necessário arranjar meios para atrair a simpatia das massas, Samora Machel começou a justificar todos os fracassos do seu Governo nos vestígios do colonialismo, na existência de uma burguesia nacional, nas atitudes dos Governos brancos da África Austral, tentando atrair o ódio do povo — que sentia virar-se contra o seu Governo — aos poucos portugueses ainda residentes em Moçambique, à Rodésia e à África do Sul, ao tempo que ia lou­vando as atitudes dos países progressistas, companheiros da mesma luta e irmãos de armas.

Samora Machel entusiasma-se. Parece-lhe que as suas ideias são animadas de uma força absolutamente autónoma, que basta-lhe querer para fazer. Afoito pêlos conselhos de Moscovo, começa a despejar o seu ódio aos regimes de Salisbúria e de Pretória em todos os discursos que pronuncia, um ódio que não é evidenciado pêlos outros Chefes de Estado africanos, nomeadamente pêlos que sustém o poder na África Austral.

Samora Machel insulta. Agride.

lan Smith é denominado por vagabundo, miserável, tabaqueiro, louco, mesmo quando procura soluções para o problema rodesiano, que é, afinal, o que todo o sub-continente ambiciona. E é enquanto decorrem conversações entre ele e um dirigente nacionalista, que o Presidente Samora, causando surpresa aos moçambi­canos e aos observadores estrangeiros — que finalmente começam a suspeitar que a intenção de Samora é oferecer a Rodésia a Moscovo como os portugueses ofere­ceram Moçambique—, anuncia o encerramento das fronteiras, e pede ao povo moçam­bicano que construa abrigos anti-aéreos junto às residências, às machambas, aos lugares de trabalho, para que se proteja de hipotéticos ataques rodesianos.

Grande parte do mundo interpreta estas suas afirmações como uma formal declaração de guerra, mas é calma a reacção das autoridades rodesianas. Estas esclarecem que o encerramento das fronteiras, que sem dúvida afecta aquele país, prejudica muito mais Moçambique, a Zâmbia e o Malawi.

Confirmando as afirmaçães rodesianas, Joaquim Chissano, porta-voz do Governo de Moçambique, vai à O.N.U. e pede àquele organismo mundial um auxílio de urgência a Moçambique da ordem dos 50 milhões de dólares — cerca de um milhão e 250 mil contos — destinado a fazer face à perda de receitas da utilização dos portos moçambicanos pela Rodésia, das exportações moçambicanas para aquele país, e de outras ligações comerciais cortadas com o encerramento das fronteiras.

O pedido de Joaquim Chissano leva o Conselho de Segurança da O.N.U. a solicitar a todos os braços da Organização, nomeadamente ao «Conselho Econó­mico e Social», ao «Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento», ao «Pro­grama Alimentar Mundial», ao «Banco Mundial», ao «Fundo Monetário Interna­cional», e ainda a todas as instituições especializadas da O.N.U., que socorram Moçambique.

Ao mesmo tempo o ministro da Defesa da Rodésia afirma à Imprensa, em Salis-búria, que seria melhor que o Presidente Samora Machel, em vez de pedir ao povo moçambicano para abrir abrigos anti-aéreos o ensinasse a produzir para não morrer de fome, e recorda a velha verdade que do cano de uma espingarda nunca nasceu uma espiga de trigo.

Como  reagiu  a   Imprensa  moçambicana  à  atitude   de  Samora   Machel?

Como sempre, com aplausos.

O «Notícias da Beira» achou motivo para uma série de crónicas laudatórias, o «Notícias» seguiu o mesmo caminho, e o «Tempo», como semanário, copiou-os.

Por vontade de todos eles — e bastaria o camarada Presidente ordenar — as forças da Frelimo, sem avião, sem marinha, sem estrategas, apoiadas apenas em guerrilheiros sem experiência bélica, destruiriam a Rodésia e a África do Sul. Mas algum jornal lembrou a caótica situação económica de Moçambique? Algum jornal indagou, junto de economistas, se o país teria possibilidade de sobreviver sem as receitas fornecidas e proporcionadas pelo intercâmbio comercial praticado pelas fronteiras rodesianas?

Onde encontrava Samora Machel a sua força, para colocar Moçambique às portas da guerra?

No povo? Claro que não.  Então onde?

A guerra era uma guerra de fronteiras, de civilizações e as frentes eram formadas pelo comunismo moscovita e pela cultura ocidental presente em África.

O poeta Heirich Heine profetizava, oitenta e cinco anos antes do revolucio­nário Lenine introduzir o comunismo na Rússia czarista:

«O comunismo é o nome secreto de um terrível antagonista que vai preci­pitar o domínio do proletariado com tudo o que ele implica, numa batalha contra os modernos regimentos da burguesia. Será uma luta árdua... Como acabará? Somente os deuses e as deusas, que privam com os segredos do futuro, poderão dizer. Uma coisa, porém, é certa: «Comunismo» ainda pode ser, para nós, uma expres­são estranha; pode errar, desocupado, nos escuros sótãos, descansando em mise­ráveis colchões de palha; mas, sem dúvida alguma, um papel heróico lhe foi des­tinado na tragédia moderna, e ele está apenas à espera da deixa para fazer a sua entrada em cena. Não devemos, portanto, perder de vista tal actor; de tempos a tempos temos de noticiar os ensaios secretos que faz ao preparar-se para a grande representação. E essas notícias serão muito mais importantes do que todas as outras, sobre escândalos de eleições, intrigas de partidos ou de gabinetes.»

           Não será toda a actividade comunista em Moçambique um ensaio secreto de preparação para o grande espectáculo? Não se verifica, pela actividade extraordinariamente desenvolvida após as ocorrências no Médio Oriente, que é a África o alvo principal da União Soviética, e que é ainda neste continente que ela se mos­tra claramente, sem disfarces, afirmando-se senhora da situação nas palavras e nas acções, aliviada dos antigos receios que tinha às potências ocidentais incompreensivelmente adormecidas?

Ao se imiscuir nos assuntos africanos — e Angola é o mais cabal exemplo — a União Soviética não esconde os seus interesses imperialistas. Pelo contrário, mos­tra-os claramente como dominadora.

Onde estranhar, então, que Samora Machel, sacrificando ainda mais o povo do seu país, proporcione a Moscovo a tentativa de desmantelamento dos governos ocidentais africanos, atirando o sub-continente para a guerra? Mas quem se espanta ainda, se olharmos à obsessiva mescla de sadismo e de ódio que dirige todas as suas últimas atitudes políticas?

15.     O   CAOS   ECONÓMICO

«Destruiremos a pobreza através de uma estratégia económica correcta, baseada nas necessidades do povo. Sabemos o que o povo quer e o nosso problema central c destruir a estrutura colonial que está profundamente arreigada. Por isso temos que libertar os espíritos das pessoas, libertar a sua iniciativa criadora. Assim, defi­nimos as aldeias comunais como locais onde o povo está organizado, executará tarefas definidas, terá programas, e utilizará correctamente as suas próprias forças. E o desenvolvimento começará no campo e será apoiado pela indústria...»— afirmou Samora Machel ao jornalista D. Martin, do «Observer», quando aquele repórter focou o problema da miséria do povo moçambicano, já impossível de disfarçar.

Segundo o Presidente Samora Machel, para vencer os graves problemas de economia que afectam Moçambique, é apenas necessário libertar o espírito das pessoas. Libertar a sua actividade criadora é enclausurar o indivíduo em campos de trabalho — aldeias comunais — e dar-lhe tarefas definidas — trabalho forçado.

Poucos meses após concedida esta entrevista os resultados da medicação comu­nista estão patentes aos observadores. Mais uma vez os modelos extraídos de uma situação histórica estranha a um país, transportados para ele dão como resultado o fracasso.

Do interior do país, em intermináveis caravanas, milhares de agricultores famin­tos, que recusam o trabalho forçado nas machambas colectivas instituídas sob terror, buscam protecção nas cidades onde os empregadores escasseiam: as indús­trias encontram-se paralisadas ou são dirigidas por inexperientes comissões admi­nistrativas, as empresas economicamente sólidas vão-se enfraquecendo com as exi­gências salariais, a construção civil, parcialmente amorfa desde a Independência, foi forçada a cessar completamente a sua actividade com a nacionalização dos imóveis, e a actividade bancária, que já desertou do interior, não concede créditos por não possuir uma carteira de depósitos que justifique uma actividade credicial.

As avalanches destes agricultores, que se sentem desenraizados nas florestas de cimento, aumentam o palco da fome, bordão que os apoia para as veredas do crime.

Os estrangeiros partiram, em busca de liberdade, para os países ocidentais, e os moçambicanos negros, que por motivos diversos não podem imitar-lhes a fuga, passam clandestinamente as fronteiras para a Rodésia e para o Malawi. Na área da Angónia, cerca de quarenta mil moçambicanos internaram-se por terras estrangeiras entre Novembro de 1975 e Fevereiro de 1976, procurando do lado de lá o direito à iniciativa privada, ao trabalho livre, à própria liberdade indi­vidual. Isto confidencia-me um administrador de Distrito, recentemente nomeado pelo Partido.

Em qualquer região do globo onde uma política deseje ser bem aceite pelas massas a fome terá de ser destruída por meios locais. Os governos comunistas, porém, dão aos problemas, sejam quais forem, uma interpretação ideológica, já que para eles não existe área de actividade livre de ideologia. Lendo em cartilhas alheias, interpretam o seu povo com olhos de estranhos no lugar e no tempo. Os sucessos obtidos muito longe do pequeno mundo que governam, são conside­rados como certezas de sucesso no seu mundo.

Passam-lhes despercebidos os anseios do povo e as suas tendências naturais. Obedecem à União Soviética, a única pátria pura para eles, aquela que não lhes merece a mais pequena crítica e que é espelho do comportamento a que obri­gam o seu povo. A União Soviética sabe que o socialismo em liberdade poderia ser terrivelmente perigoso para ela, bastando-lhe o exemplo de Pequim. Por isso obriga todos os governos, conquistados pelo seu imperialismo ideológico, a que se sintam amarrados às suas ideias base, à sua directriz, às suas determinações, passando a contar, para os governantes fantoches, primeiro o agrado moscovita e só depois o bem estar do seu povo. E não há nada mais doloroso do que assistir às constantes tentativas para aplicar a um país africano, no final do século XX, as teorias, possivelmente usadas com relativo sucesso por Lenine na Rússia em 1917.

O resultado da experiência pode encontrar-se já no caos económico de Moçambique e não vale a pena culpar o colonialismo para atirar poeira aos olhos dos observadores, como disfarce simplista e grosseiro. Para o Governo, porém, e para a Imprensa que o adula, pouco importam, no momento, as reali­dades subterrâneas se a fachada construída resiste. Vejamos, pois os graves pro­blemas da economia, e como justifica a Imprensa, ou tenta justificar, as faltas de produtos de primeira necessidade que contagiam a fome a quem ainda tem meios económicos para a debelar:

«A falta de farinha de milho no mercado, alimento básico das populações de menores recursos, deve-se à inexistência de milho, em virtude de uma avaria registada no desvio ferroviário...»

«...a propósito da escassez de pão de trigo, neste aspecto não existe falta de matéria-prima, mas as empresas lutam com falta de pessoal qualificado para  obter não só o máximo rendimento da linha de montagem em funcionamento, tuas ainda para pôr em funcionamento uma nova linha de montagem...»

«...o pão de trigo que tem aparecido nas últimas semanas, para além de ser pequeno, é de fraca qualidade. O pão apresenta-se compacto e isso deverá ser motivado pela falta de sal ou de levedura e ainda devido a misturas...»

Isto escrevia-se no «Notícias da Beira» no dia 12 de Março de 1976, mas o povo não aceitou as justificações inventadas e reclamou, sendo necessário o uso da força policial em diversas bichas formadas em vários estabelecimentos da Beira. O jornal foi forçado a mudar a sua forma de observar o problema e, na edição seguinte, afirmava cautelosamente:

«Têm-se registado, nos últimos tempos, uma falta considerável de produtos de primeira necessidade para a alimentação. As causas para a existência desta situação são variadas. Entre elas destacamos avarias técnicas e escassez de abas­tecimento por parte dos centros produtores ou por quebra de produção ou por falta de transportes. O que é certo é que a falta de produtos alimentares tem sido muito sentida pela população. Entretanto, prevc-se que já esteja normalizado o abastecimento de arroz. O carregamento do produto, vindo do Paquistão, já chegou, e a partir do início da corrente semana começou a ser distribuído no mercado. Por outro lado, junto às padarias, têm-se formado ultimamente grandes bichas para a aquisição de pão, em virtude da quebra de produção registada...»

Sob o domínio da embriagues política, os jornalistas vão enganando os lei­tores com meias verdades, dando-lhes esperanças infundadas, aguardando com paciên­cia que os peditórios, feitos a nível internacional pelo Governo de Moçambique resultem, para que o povo tenha alguma coisa para enganar a fome.

Será aberrante acreditar, porém, que esses auxílios venham solucionar o caos económico do país sem um esforço interno e este não existe. A produção é nula e os salários treparam, após reivindicações exageradas, cinco e seis vezes. As pri­meiras exigências salariais, após a Independência, tentaram colocar o salário mensal mínimo à razão de 600 escudos diários, e a justificação que encontravam para a tola exigência era política e revolucionária: Terminar de uma vez para sempre com os antigos exploradores, os exploradores feudais.

A generosidade governamental, que não se elevou a esse extremo, encaminhou dezenas de empresas à falência, causando maior número de desempregados. Simul­taneamente os técnicos, perseguidos, injuriados, regressavam a Portugal e os seus lugares eram preenchidos por operários inexperientes a quem era proporcionada uma reciclagem que, mesmo assim, não os preparou para tirar partido das máquinas demasiadamente sofisticadas para os seus frágeis conhecimentos técnicos.

Grandes complexos industriais paralisaram temporária ou definitivamente a sua actividade, mas mesmo dessa caótica situação o Governo moçambicano quis tirar partido político inventando culposos.

          Dou, como exemplo, o que se passou na C.I.G.O.M.O., importante empresa de transformação de sisal, situada na zona industrial de Nacala. Esta empresa passou a ter, após a Independência, um encargo de salários da ordem dos 900 mil escudos mensais, e o jornalista encontrou como motivo para a sua paralisação temporária o seguinte:

«Os Estados Unidos da América eram, nos anos anteriores, os principais consumidores deste produto da indústria moçambicana, mas, na presente fase, ainda não se mostraram interessados na sua compra. Alguns responsáveis daquele com­plexo industrial pensam que a posição dos Estados Unidos da América seja moti­vada por razões de ordem política.»

Esqueceu o jornalista Mário Ferro, autor deste bocado de prosa publicado no «Notícias da Beira», que os responsáveis que assim pensavam — e pensariam mesmo? — eram os membros do Grupo Dinamizador da empresa, membros polí­ticos, portanto.

Não disse, também, que as exigências dos trabalhadores — sancionadas pelo mesmo Grupo Dinamizador — e a diminuição de produção, criaram à empresa difi­culdades de carácter económico-financeiro que se fizeram sentir no preço do pro­duto, colocando-o muito acima da oferta da concorrência internacional.

Atirou apenas as culpas aos Estados Unidos da América, um país de política ocidental, boa razão para mais uma vez se apreciarem as vantagens do comunismo. Esvazia-se o capitalismo de uma virtude, implantando mais solidamente no coração das massas o amor ao socialismo russo.

A produção de açúcar baixou em cerca de 60 por cento na primeira apanha após a Independência, e a Imprensa disfarçou o fracasso acusando os agricultores estrangeiros de sabotagem económica. Foram saneados os dirigentes administrativos, estrangeiros também, mas a verdade tornou-se impossível de camuflar por mais tempo: A produção baixou por falta de trabalho e pela existência de liberalismo e de anarquia na classe trabalhadora.

A decepção dos dirigentes, quando constataram que a classe operária se batia acima de tudo pela sua comodidade individual, manifestou-se com rancor. A Imprensa acusou os trabalhadores de terem deixado na terra grandes quanti­dades de cana por colher.

«Foi cortada a 60 centímetros do solo!» — explicaram os jornalistas, usando as mãos como fitas métricas. Houve reuniões com as estruturas do Partido. Os comissários políticos encontraram-se com os trabalhadores nos próprios locais de trabalho. Deram-se «vivas» ao Presidente Samora Machel e à Frelimo. Mandaram-se «abaixar» a preguiça e os malandros. E os trabalhadores gritaram e aplaudiram e cantaram canções revolucionárias.

No dia seguinte tudo continuava na mesma.

A desorganização e a anarquia haviam penetrado em todos os sectores de actividade e os que desejaram suster o desastre foram encarcerados, maltratados, expulsos do país. Permitia-se que irresponsáveis se entregassem a ataques torpes e insensatos aos que tentavam travar o desastre económico do país com a audácia que as circunstâncias exigiam. Esses, rotulados de exploradores e de colonialistas, embarcaram contrafeitos nos «jumbos» para Lisboa.

Os, observadores internacionais olhavam estas bizarras cenas com curiosidade e comentavam desfavoravelmente a política moçambicana, não escondendo o espanto que a todos causava o caminho de auto-destruição que Moçambique trilhava.

Viam nas «bichas» citadinas, junto aos estabelecimentos, a montra do caos económico, da fome, da miséria colectiva, e do que viam iam informando os seus países. O correspondente da B.B.C, reportou esta situação, em curta notícia do seguinte teor:

«Nas ruas do Maputo, a antiga e rica cidade de Lourenço Marques, vivem-se espectáculos nunca presenciados. O povo passa horas, desde o nascer do sol, em longas bichas para adquirir pão. A maioria destas pessoas é africana. Outras lon­gas bichas, desta vez compostas por gente de todas as raças, são assinaladas junto das empresas aéreas e das agências de viagem, em busca de vagas nos aviões para abandonarem Moçambique. Embora estejamos em Março, todas as passagens aéreas para Portugal estão esgotadas até fins de Julho.»

O correspondente da B.B.C, foi expulso de Moçambique.

Não era esta a imagem que o mundo deveria colher do país, mas aquela oferecida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Joaquim Chissano, quando dis­cursa nas tribunas internacionais, sem outra alternativa além da de renunciar à análise dos problemas nacionais para não desmistificar o Partido e a ideologia socialista.

Pode deste modo sobreviver o regime comunista em Moçambique, mergulhado na doença, na fome e em perseguições? A resposta é afirmativa. A solução foi encontrada pela Frelimo, com o auxílio do Kremlin: Basta construir o homem novo enclausurando-o dentro de uma ideologia que o iniba de olhar o mundo que o rodeia, obrigando-a a uma conduta falsamente liberta.

E para tanto acontecer Samora Machel possui a receita: «Por isso temos que libertar os espíritos das pessoas, libertar a sua iniciativa criadora». Mas é dessa liberdade que milhares de pessoas fogem diariamente passando, com risco de vida, as fronteiras rigorosamente policiadas.

16.     AS   NACIONALIZAÇÕES

Vladimir Borodin, num artigo publicado pela Imprensa moçambicana pouco após a Independência — com todo o destaque devido a um colunista soviético — diz que ainda antes da grande revolução de Outubro de 1917, Lenine frisava a necessidade da abolição de propriedades privadas, fábricas, empresas, banca, cami­nhos de ferro, pois sem a sua transformação em património nacional seria impossível liquidar o domínio da burguesia. E descrevia todo o processo leninista.

O povo moçambicano tomava, pois, conhecimento, por intermédio de Vladimir Borodin, das instruções políticas recebidas por Samora Machel dos seus patrões moscovitas.

Samora Machel põe em prática, sem organização, sem estruturas económicas, sem quadros, as realizações de Lenine no princípio do século. Alheando-se às reali­dades moçambicanas, plagia todo o processo comunista de nacionalizações sem medir as consequências, sem verificar que a fuga do povo moçambicano para a Europa e para outros países africanos se devia à não concordância com a sua política. E, não se contentando com a nacionalização das grandes empresas, com a luta contra o capitalismo, a média e a baixa burguesia, faz mais pobre a pobreza, freando o desenvolvimento económico sob um controlo estatal arcaico.

Os primeiros meses de Independência caracterizam-se pela progressiva agudi-zação da situação social. As ajudas estrangeiras não resolvem o problema, pois os empréstimos não fazem mais do que incrementar o déficit. As nacionalizações, repen­tinas e sem estudo prévio, agravam ainda mais a situação económica e financeira. Imprevistas, as nacionalizações vieram imediatamente a seguir a um discurso do Presidente Samora, e o povo não recebeu de bom grado mais essa prova de ditadura.

Foram nacionalizadas as terras, porque apenas o Estado, que é popular, pode ser senhor de propriedades. Foram nacionalizados os edifícios, porque as casas são do povo. Foi nacionalizada a medicina, porque a saúde é um direito do homem. Foram nacionalizadas as agências funerárias, porque é crime negociar com a morte. Foi nacionalizada a advocacia, porque a Justiça é popular. Foi nacionalizado o ensino, porque todo o homem tem o direito de saber. Filosoficamente, definindo a situação, afirmar-se-ia que tudo quanto existe em Moçambique passou a ser do povo.

Mas será assim?

Vejamos, uma a uma, as medidas de nacionalizações e as concretas conse­quências imediatas:

AS TERRAS

Moçambique, com uma área de cerca de 790 mil quilómetros quadrados, tem grande parte das suas terras produtivas por aproveitar. As que de maior impor­tância foram até agora agricultadas deixaram de o ser ao passarem para o Estado, porque pertenciam a particulares que se viram despojados do que lhes pertencia e abandonaram o país. O Estado não possuía quadros técnicos para os substituir.

As produções, mesmo assim, reduzidas em proporção à capacidade produtora dos espaços cultivados, são conseguidas em complexos agrícolas ainda organizados, a maioria multinacionais, e não em iniciativas estatais ou do povo.

Toda a produção de açúcar parte de grandes empresas, nomeadamente da «Sena Sugar Estates», da «Açucareira de Moçambique» e da «Maragra».

           Os plantadores particulares, localizados nos arrebaldes destas empresas de capital estrangeiro, que auxiliavam a produção para que as fábricas laborassem em pleno, foram os primeiros a abandonar os campos, forçados à desistência pela falta de mão-de-obra. O moçambicano menos culto negou-se a trabalhar após o 25 de Junho, ou passou a exigir salários que nenhum empregador podia satis­fazer, transformando-se a mão-de-obra moçambicana numa das mais caras do mundo.

Os mesmos problemas passaram a afectar a produção de chá, na mão de empresas do Gurué, de Licungo e de Milange, nomeadamente os importantes com­plexos agro-fabris dos grupos «Junqueiro», «Monteiro & Giro» e «Sena Sugar Estates». Todas estas empresas baixaram as produções pelos motivos apontados, e os mesmos problemas tocaram as concessionárias de algodão, de quenafe, de arroz, de caju, de tabaco e de copra, agriculturas exploradas, no tempo português, por importantes colossos económicos, que caminharam com rapidez após a Indepen­dência para o total abandono pelas entidades empresariais, não substituídas por competentes administrações estatais mas por oportunistas Grupos de Trabalhadores que as atiraram para a ruína.

As ricas terras moçambicanas voltavam a ser selva. Cobriam-se as ruínas e as dores do desemprego e da fome com a bandeira marxista. Sob as bênçãos de Moscovo, Moçambique afundava-se na mais confrangedora pobreza.

O que restou? Apenas aquilo que o povo cultiva junto ao casebre, produtos de consumo corrente, em quantidades muito inferiores às carências nacionais. Moçam­bique, considerado oficialmente como um país de agricultores, passou a importar todos os produtos agrícolas que consome.

E, enquanto o povo se compenetra da real ameaça soviética, o Governo segura-se à esperança das machambas colectivas, distribuídas por comunas huma­nas. Mas o povo não apoia nem aceita essa tão apregoada técnica comunista.

Ninguém pode, de certeza, adivinhar o futuro, mas a miséria e a fome actual são já importantes motivos de meditação.

OS EDIFÍCIOS

Serviu a nacionalização dos edifícios para uma melhoria de vida das popu­lações?

Em princípio cuidou-se que esta iniciativa do Governo moçambicano, que tanto prejudicou a colónia portuguesa, viria solucionar o problema habitacional das massas menos favorecidas economicamente, proporcionando a grande parte das famílias um lar. No dia 3 de Fevereiro de 1975 Samora Machel expressa-se neste sentido:

«Agora vocês não vão levar para os edifícios que eram dos colonizadores, para aqueles andares todos, para aquelas casas que foram vocês com o vosso tra­balho que os construíram, com o vosso trabalho forçado e desumano, não vão levar para lá as vossas galinhas, os vossos cães, os vossos cabritos, os vossos porcos. Ë ou não é?...»

E apreensivo:

«...Nem vão levar para lá o pilão. Não vão levar para lá o pilão e bater com o pilão lá em cima. É ou não é?... Vocês a bater no pilão as casas vinham todas cair cá em baixo. Ë ou não é?...»

Eram, pois, para o povo as casas nacionalizadas sem qualquer indemnização aos antigos proprietários (falou-se nela, é verdade!), e assim pensou o povo, ainda pouco acostumado às manobras políticas do Partido. A Imprensa, na sua boa fé fez-se eco dessa opinião, e o «Notícias da Beira», em preâmbulo a uma espécie do inquérito público, publicou o seguinte:

«O direito ao alojamento, que corresponde à satisfação duma necessidade essen­cial e elementar de cada cidadão e da sua família, é objecto de uma especulação sem limites, que conduz ao enriquecimento escandaloso de um certo sector da burguesia colonial, eis uma das razões da recente nacionalização dos prédios de rendimento, expressa num comunicado oficial, no dia seguinte à medida ter sido anunciada pelo camarada presidente. Por outro foram objectivos concretos daquela decisão governamental liquidar o racismo, a discriminação racial e social que ainda existem na nossa sociedade, acabar com a divisão para criar uma verdadeira unidade de todo o povo sem distinções de espécie alguma e permitir ao povo tomar a cidade, vivendo nela, deixando esta de ser propriedade de um certo número de explora­dores que desprezam os trabalhadores.

Um outro objectivo da recente nacionalização, igualmente importante, é poder-se agora organizar no seio da cidade uma verdadeira vida colectiva, isto é, organizar a democracia no seio da cidade, de modo a que todos participem na discussão e resolução dos problemas da vida colectiva, criando assim as bases para o exer­cício do poder popular democrático, o alicerce político da nossa sociedade, tal como também vem expresso naquele comunicado da Presidência da República.»

É isso? ... Pois bem:

Cerca de um ano volvido, as rendas continuam elevadas, algumas até subi­ram de custo, e os edifícios vagos continuam sem inquilinos para os habitar.

Apenas mudou o senhorio, que agora é o Governo da República Popular de Moçambique, por intermédio de uma nova repartição que ofereceu lugares optima­mente remunerados a um grupo de protegidos do Partido — na maioria familiares dos membros do Comité Central — e que foi denominada Administração dos Prédios do Parque Habitacional do Estado, embora efectivamente a administração seja exer­cida pelo Montepio de Moçambique ... umas das estruturas colonialistas.

Mas não só:

Os atrasos nos pagamentos de rendas são punidos com multas, e, sendo o senhorio apenas uma entidade, as bichas nos dias de pagamento ocupam quiló­metros de artérias citadinas.

O povo foi traído pela demagogia governamental e continua a viver onde sempre viveu, sentindo nos bolsos a mesma ausência de dinheiro para habitar a residência que deseja. O direito ao alojamento continua a ser comprado ao capitalista, só que o capitalista agora è o Estado, que baseia a cobrança das rendas no seguinte:

«Tornar possível recuperar parte do dinheiro aplicado na construção ou com­pra de prédios, conseguidos através de empréstimos feitos pelos bancos estatais e que ainda estão por amortizar, possibilitando, por outro lado, a construção de novas habitações, valer aos encargos das obras em curso dos prédios em construção, que estão a ser levados a cabo sob a responsabilidade do Estado a partir da estatização dos prédios de rendimento...»

Estas afirmações não podem em hipótese alguma responder às interrogações do povo ludibriado.

Quanto gastou o Estado na aquisição dos imóveis?

A resposta é: Nem um chavo!

Os antigos proprietários devem aos bancos estatais?

Mas que bancos estatais? Não passaram eles para o Estado sem que este investisse na sua aquisição?

E onde estão os capitalistas, se o próprio Governo reconhece que os imóveis, por ele nacionalizados sem dispender qualquer indemnização, pertenciam a pessoas que para os adquirirem, ou para os construírem, necessitaram de apoio da banca? Que capitalistas eram então?

Sabe-se que os revolucionários moçambicanos desprezam a bagagem embaraçante da interrogação do povo, de que se dizem parte integrante, mas o povo moçambicano, sabendo que não houve na revolução do seu país um revolucionário que soubesse prever as consequências, até ao pormenor, da revolução que dirige, continua a perguntar:

Quais foram os capitalistas abrangidos pelas nacionalizações?

Noventa por cento dos proprietários perderam o fruto do esforço dispendido durante grande parte da existência. O que o Estado abocanhou era o produto de economias trabalhosamente adquiridas. Assim, à luz da opinião generalizada, não deveria o Governo de Moçambique reavaliar os seus actos, cingindo-se aos princípios de justiça tão apregoados pelo socialismo? ...

Não deveria proceder a humanas indemnizações?

A MEDICINA

O país possui cerca de nove milhões de habitantes espalhados pelos seus quase 800 mil quilómetros quadrados. Ao serviço do povo ficaram, depois da naciona­lização da medicina, menos de duas dezenas de clínicos, o que dá, na melhor das hipóteses, um médico para 450 mil pessoas. Como todos eles habitam cidades é fácil de estimar, «à priori», o número de habitantes desprezado pela assistência médica.

As bichas de doentes nos hospitais têm início às primeiras horas do dia e prolongam-se pela noite adiante, levando muitos doentes à morte antes de receberem a marcação da consulta. A consulta, porém, apenas é conseguida entre três e quatro meses depois de marcada, mesmo para os casos mais graves. Muitos doentes desistem e aguardam calmamente a morte, ou recorrem às manigâncias dos curandeiros e dos feiticeiros.

Entre os poucos doentes felizes, que à altura da consulta lhes é facultada hospitalização, aumentou de forma assustadora a percentagem de mortalidade. Em Julho de 1976 o número de doentes hospitalizados, que tinham baixa para os cemitérios, havia aumentado de 2,4 por cento (Janeiro de 1976) para 41,6 por cento, números que retratam o descrédito em que caiu, para não mais se erguer, o serviço hospitalar do país, que passou a estar nas mãos de para-médicos chineses, coreanos e cubanos que cumprem escrupuloso horário de trabalho como o mais vulgar manga de alpaca burocrático.

Para onde foram os médicos de Moçambique? Claro que regressaram à Europa, pois eles próprios foram vítimas de perseguições e o povo passou a recorrer à Rodésia até ao encerramento das fronteiras. Samora Machel sabia isso ao rigoro­samente cumprir as instruções de Moscovo, mas, mesmo assim, condenou à morte grande parte do seu povo.

A solução de emergência encontrada por Samora Machel foi atrair ao país médicos coreanos, chineses e cubanos que não falam a língua, e que na prática têm demonstrado serem possuidores de pequena experiência de enfermagem e de socorros. E é sintomático ver-se que nenhum membro do Governo recorre ao serviço destes clínicos; vai ao estrangeiro em busca de medicação, podendo-se assinalar, para já, a saída dos ministros Joaquim Cabaço e Graça Simbine, em busca de medicina estrangeira, recurso que não pode ser seguido pelo povo moçambicano.

A afirmação de Samora Machel de que o povo passou a ter ao seu serviço uma medicina verdadeiramente popular é desmentida pela negra realidade: O povo sabe que deixou de contar com a medicina.

AS  AGÊNCIAS  FUNERÁRIAS

Passou o Estado a ser o enterrador mas não baixou os preços dos funerais. As tabelas anteriores são respeitadas, no que se refere aos enterramentos popu­lares, e ao povo de menores recursos económicos foi retirada a possibilidade de recorrer aos carpinteiros de «biscate». Nestes, o povo pagava uma bagatela por um caixão, mas essa actividade passou a ser considerada criminosa por ser concorrente a uma receita estatal.

Morre-se, pois, mais, pelo mesmo preço.

 

A  ADVOCACIA

O povo deixou de ter direito à defesa experiente de um advogado. Mas para que o queria, se a Justiça é praticada pela Frelimo, por intermédio dos seus agen­tes de confiança?

E quem se defende?

— E onde se pode defender?

Algum dos prisioneiros portugueses que enchem as cadeias do país, foi pre­sente a julgamento? E o povo necessita de quem o defenda com base na lei, se a única lei em vigor são as determinações do Partido, quantas vezes em contraste com quanto se encontra legislado?

A  EDUCAÇÃO

Também a educação é estatal. Mas como é ela processada? A resposta é simples: A preocupação do Ensino é política. Ela tem por finalidade construir o homem novo. E como se constrói esse homem?

O meu filho, de cinco anos, frequentava a pré-primária. Ia todas as tardes para a Escola, situada num edifício ao lado do que eu habitava, uma Escola do Povo, colégio particular antes das nacionalizações.

Da janela da minha casa via-o no terreiro antes de entrar nas aulas, formado em regime militar com outras crianças da sua idade. Eram centenas de miúdos de todas as raças.

Em correcta posição de «sentido» entoavam, durante cerca de meia hora, can­ções revolucionárias que não entendiam, mas que lhes iam ficando grudadas aos pequenos cérebros.

Davam «vivas» à Frelimo e a Samora Machel, faziam muitos «abaixos» e só depois começavam as lições sem livros, sob rigorosas instruções do Partido. As lições eram políticas e o tema principal era a vigilância. Ou melhor: A denúncia.

O meu pequeno filho chegou a afirmar, sem entender a maldade que pra­ticava:

— Se falar mal da Frelimo eu vou dizer à Polícia.

Era isso, exactamente, o que ele aprendia. E era isso, exactamente, o que mais vezes lhe ensinaram. E isso continuarão ensinando até a criança entrar na adoles­cência e dela passar à maturidade.

Nenhum dos futuros homens novos terá a possibilidade de escolher a sua carreira, fazer a vontade aos pais, ou seguir uma vocação. O seu futuro é marcado, desde o início, pelo Partido, até à sua formatura. E os protegidos, tão condenados pêlos revolucionários extremistas, passam a existir, mas como protegidos pela Frelimo.

          O leitor pode pensar que eu dramatizo a situação, que também contribuiu para o afastamento de Moçambique de muitos portugueses. Em defesa da minha a mação transcrevo, sem comentários, uma entrevista concedida por Samora Machel ao «Tercer Mundo»:

«Tercer Mundo» — Quais são as relações actuais e o projecto de relações futu­ras, da Universidade com a Frelimo? Conhece certamente as dificuldades que têm surgido em muitos países revolucionários do Terceiro Mundo com a Universidade?

Samora Machel — Já temos a nossa política a esse respeito. A Universidade será dirigida pelo Partido. De futuro os que irão para a Universidade serão indicados pelo Partido. Estudarão para ter capacidade de realizar as tarefas que a nação exigir.

«Tercer Mundo» — Não para realizar uma aspiração pessoal.

Samora Machel — Não, não absolutamente. E isso não o escondemos. Dize-mo-lo. É o que temos feito ao longo dos treze anos de experiência da Frelimo. O Partido é que indicava quem devia prosseguir os seus estudos na Tanzânia. E chegámos a um ponto de desenvolvimento em que os próprios colegas era quem decidia quem devia prosseguir os estudos. Cremos que esse método deve continuar. E esse método democrático, assinalámo-lo, existe também a nível militar.

É pois esta a Educação que espera a juventude moçambicana. Samora Machel tenta justificar a sua teoria absurda num moralismo hipocritamente democrático, ao colocar a Universidade — e toda a Educação — não ao serviço das ciências mas unicamente da política, fazendo dela o espelho de uma sociedade escravizada, com­posta por homens de carregar no botão, de cães de guarda de uma ideologia importada.

Esta é uma apreciação realista da situação das nacionalizações em Moçam­bique que contribuiu para a queda da Frelimo no crédito popular. Vistas assim, em retrospectiva, fazem ver claro as dádivas do Céu que caíram sobre o povo moçambicano e sobre os estrangeiros que confiaram na linha política do Partido, naquela linha que foi mostrada nos dias que antecederam a Independência e nas palavras encorajantes que partiram dos membros do Governo de Portugal, que acusaram de cépticos e de pessimistas quantos, a tempo, passaram as fronteiras, levando consigo ainda alguma coisa de seu. E é nos que regressam agora, transpor­tando histórias tristes, que os governantes portugueses sentem as consequências da sua atitude.

17.     SAQUE   AOS   BENS   DOS   PORTUGUESES

Desloquei-me ao aeroporto da Beira para assistir à partida de mais um nume­roso contingente de portugueses, vendo-me no rosto de todos eles, no desespero dos semblantes enlutados, no medo dos olhos que fitam, com alarme e desgosto, quanto as mãos dos agentes da Frelimo vão retirando das malas que contêm o pouco per­mitido para a viagem sem regresso.

Não há em nenhuma das vítimas resistência declarada ao terror e ao arbítrio. Apenas tremem, justificam-se, imploram.

— Por favor não me tirem isso. É do meu nétinho! diz uma mulher de pele enrugada.

No chão avisto dois pequenos lençóis de berço e um fatinho de malha para criança.

— É do meu nétinho. Deixem-me levar! — continua a velha, como se rezasse uma comprida oração há muito tempo decorada, perante o galhofar ostensivo de dois homens fardados.

Sinto que as minhas mãos se apertam enclavinhadas uma na outra e olho um homem a meu lado, como eu na parte de fora da divisória limite aos não passageiros, formada por uma corda. Ele faz um pequeno gesto de reprovação que foi notado pêlos agentes do Partido.

— Não pode estar aqui! — empertiga-se um deles.

— Estou dentro do limite permitido!—responde o homem.

— Amarra o tipo. Não vês que ele está a discutir? Amarra o tipo. Eles têm que aprender a falar com as Forças Populares. O tempo do Marcello Caetano já acabou ...

Levam-no. Eu fico a olhar. A anciã, involuntária causadora da prisão, fica a olhar. Todos os portugueses ficam a olhar. E ninguém diz nada.

No chão amontoam-se os objectos retirados das malas dos passageiros: Cami­sas, calças, camisolas de lã, revistas, um cobertor, brinquedos ...

Subo ao primeiro andar do edifício, ao restaurante. Dezenas de portugueses, futuros passageiros, olham da sacada os roubos efectuados pelos homens da Frelimo e ciciam coisas que não oiço. Uma mulher fala mais alto do que os restantes:

— Mas não é só aqui. Uma rapariga minha amiga despachou pelo correio uma saia que ela própria bordara. Assim de lado, com uma flor. Qual não foi o espanto dela quando, ao passar no dia seguinte na rua, encontrou uma mulher negra vestindo a sua saia.

— E depois? — interroga a outra, com visível curiosidade.

— Foi um milando do Diabo. A moça não se calou e tiveram que levar a coisa para a frente. Foi ao director e o homem devolveu a saia. Aqui no aeroporto não há directores e estes malandros fazem o que querem. Para que serve a gente se queixar? ...

Peço um café, que me sabe a mofo e se me enrola na garganta. Abandono-o sobre a mesa e volto a espreitar o monte de roupas e objectos furtados que se espalham no chão, em baixo. O monte crescera. Cada soldado das Forças Popu­lares tirava o que lhe apetecia, o que em seguida iria oferecer às suas manacages e amantes, ou usar como se o tivesse adquirido com dinheiro seu. E sem notar que estava a ser ouvido, sussurro:

— É fartar, vilanagem! ...

— Ainda hoje isto não é nada! ... — respondem a meu lado. Sobressalto-me mas de imediato acalmo. O homem que falara era um português e aceno-lhe com a cabeça.

Volto à cidade e encontro amigos que me trazem notícias:

— Sabes que está um barco russo no porto? Vê lá que no registo de chegadas tem um nome e no casco apresenta outro. Adivinhas que carga trouxe?... Cubanos. Foram camiões militares e maxibombos da «Auto Transportes» buscá-los ao porto e seguiram para os quartéis de Matacuane. Os tipos vinham à paisana, e traziam uns sacos grandes, verdes! ... Irão atacar a Rodésia?

Digo que não sei e o meu amigo prossegue:

— Vê lá que o Governo de Moçambique voltou a pedir trigo à Rodésia depois de fechar as fronteiras. Isto não parece uma anedota? Mas olha que todos os jornais de Salisbúria trouxeram a notícia e parece que é verdade. Tu quando vais?...

A pergunta colheu-me de surpresa e repito-a de forma pessoal a mim próprio. Sim, e eu quando vou? ... Teimarei em ficar em Moçambique? ...

Afasto-me apressado do meu amigo e entro numa Agência de Viagens. Tinha lugares para Setembro, para o dia 3 de Setembro. O meu gesto, que a São classi­ficaria de impensado, aliviou-me os nervos. Entro num café e compro um jornal.

Leio-o sem interesse, até ser atraído pelas declarações de Samuel Simbine, director nacional de Cultura, irmão de Graça Simbine, a última mulher de Samora Machel, a respeito da partida de portugueses, referindo-se especialmente aos pro­fessores:

«Muitos professores estrangeiros estão na eminência de abandonar o país, o que resulta, muitas das vezes, pelo crédito ao boato por um lado, e à falta ou recusa de compreender a clareza dos objectivos do Partido e do Governo da República Popular de Moçambique. Essa deserção começou a verificar-se, com maior intensi­dade, após as recentes medidas de nacionalizações, verificadas no dia 3 de Feve­reiro findo, deserção que atingiu diversos níveis de produção.»

Mas será desertar fugir a uma perseguição sistemática, diária, dirigida espe­cialmente contra a cor e contra a nacionalidade portuguesa?

Desertava a pobre velha, vítima até à partida das arbitrariedades da Frelimo? Desertará o homem que, apenas por assistir no aeroporto às injustiças praticadas nos bens de seus patrícios, é preso e insultado ao manifestar um gesto silencioso de protesto?

Mas alguém pode desertar do Inferno?

Que inversão de valores se realizou em Moçambique, com o patrocínio do Partido, que o carrasco lamenta-se quando a vítima quer sobreviver longe dos seus aparelhos de tortura?

E a que boato se referiria o cunhado do Presidente da República? Será boato o que é visto com os olhos, sentido com a carne, vivido com os nervos? Ou quererá a Frelimo mostrar ao mundo uma face acomodada da sua política, expulsando para a seguir se mostrar queixosa de abandono, na intenção de não alarmar, por enquanto, os brancos progressistas, irradiando para o exterior, cobiçado por Moscovo, as cir­cunspectas opiniões que antes do 25 de Junho convenceram muitos portugueses?

Será essa a intenção manifestada pêlos porta-vozes do Governo e desmen­tido pêlos operantes fardados desse mesmo Governo?

Mas a quem podem ainda enganar?

Não têm os observadores internacionais, aqueles que não dependem do D.I.P. nem alinham no mercenarismo informativo, atirado aos quatro ventos a verdade da política da Frelimo, desmentindo as regras e premissas difundidas por todos os actores do cenário político moçambicano? Onde reina o boato, então? E terá ele lugar quando a realidade é já tão trágica e a desesperança de todos tão aflitiva?

Entro no jornal e subo à Redacção. É o José Quatorze que me recebe com um sorriso. Cumprimenta-me efusivamente. Eu fora transferido para a sede, após cinco anos de trabalho jornalístico na área de guerra, depois do «Notícias da Beira» encerrar todas as suas Delegações.

— Ora então vamos trabalhar?... Você descanse uns dois ou três dias para esquecer Tete, está bem? ...

Volto dois dias depois e ele diz-me:

— Há aqui uma forte corrente contra o seu regresso à Redacção. Estamos a viver uma Revolução e temos contra nós uma grande campanha... Até nos têm prometido agressões, um Inferno. Você pode ser politicamente um elo fraco. Nós formamos um grupo ... Não quero dizer que sejamos uns revolucionários excepcio­nais ... Mas houve aquela carta da prostituta ... Está fora de jogo a sua competência profissional, mas nós achámos que era melhor ficar uns tempos fora da Redacção ... Ficar a chefiar os Serviços de Revisão ... até isto acalmar...

Eu  tinha  muitas  coisas  para  dizer.  Mas   seria  mesmo  necessário?

Eles pensavam que venceriam o povo por terem nas mãos a excessiva força da Imprensa e as armas da Frelimo. Mas não venceriam, ou pelo menos não con­venceriam as massas, pois convencer significa persuadir e para persuadir necessita­vam de esgrimir com a única arma que não possuíam — a razão. Era, porém, inútil exortá-los e sinto-me feliz ao responder, pois a minha decisão estava tomada:

— Eu tenho cinco meses de férias acumuladas. Entro de férias. É uma situa­ção que me é agradável, depois de tantos anos de guerra, e é um alívio para a vossa luta que em consciência não aprovo ...

Lembro a reserva de passagem que havia feito e sinto-me feliz, mesmo quando a Comissão de Trabalhadores me informa que o Ministério da Informação queria que eu entrasse imediatamente ao serviço da Redacção, sendo precipitada a atitude medrosa de José Quatorze. E a nota do Ministério trazia a assinatura de Jorge Rebelo, o próprio ministro.

Mas eu já me encontrava de férias  e nessa  situação me  mantive.

Sabia que o Ministério procuraria no meu trabalho um motivo para me atirar às feras, pois o quadro redactorial do «Notícias da Beira» era composto pela escória do jornalismo moçambicano. Além de dois estagiários — cartas sem valor no bara­lho redactorial — dele faziam parte como vigilante do Partido o Heleodoro Baptista, O Mário Ferro e o José Quatorze, e todos eles liam na cartilha que o próprio jor­nal denunciava: «Não nos perguntem quem escreveu este ou aquele artigo no jornal.

          O nosso trabalho é um trabalho colectivo, sem elitismo, feito por uma Equipa ao serviço da Revolução», e era essa equipa revolucionária a responsável moral pela maioria das perseguições movidas aos portugueses e ao próprio povo moçambicano.

Passeio pela rua. Compro cigarros num restaurante bem afreguesado. A meu lado um jovem negro, envergando um esfarrapado camuflado, pede uma laranjada. Fala a língua inglesa. A farda que enverga é idêntica à usada pelos homens da Frelimo, mas ele é rodesiano. É guerrilheiro do Zimbabwé.

Moçambique transformara-se numa base militar internacional no coração de África, para permitir, com a força das armas russas e cubanas, a expansão do mono­lítico império comunista. O eixo de todos os esforços da expansão imperial comu­nista em África situava-se, sem disfarces, na antiga colónia portuguesa, enfraque­cida por uma longa luta de libertação nacional.

O guerrilheiro do Zimbabwé terminou o seu refrigerante e bebe um copo de cerveja que lhe é oferecido pelo dono do estabelecimento, um português, que puxa conversa, tacitamente, por forma a que eu oiça quanto se diz. Está a convalescer no Hospital do Macuti e a sua base situa-se no Chimoio, junto à fronteira rodesiana, mas bem dentro do solo moçambicano. São muitos e esperam reforços. Quantos?... Muitos, confirma sem elucidar. E cubanos? ... Não sabe.

Por quanto tempo conseguirá Moçambique camuflar os ataques à Rodésia, mostrando-se internacionalmente como vítima para ser alvo da comiseração mundial e de subsídios? ... Por quanto tempo pode espalhar as suas convenientes mentiras, se os próprios soldados agressores passeiam fardados numa cidade moçambicana, e afirmam que as suas bases se encontram em Moçambique?

Ou estará certa a afirmação, que soe dizer-se, de que as árvores, muitas vezes, não deixam ver as florestas? ...

18.     ONDE   SE   ENCONTRAM   AS   GARANTIAS?

Uma nova onda de desalento percorre os portugueses. Espoliados de todos os seus bens era-lhes, porém, permitido fazerem-se acompanhar, no seu regresso definitivo a Portugal, por uma viatura automóvel com mais de um ano de sua propriedade, pagando, ao Estado de Moçambique, cinquenta por cento do seu valor nos primeiros quatro anos de vida da viatura, diminuindo sucessivamente a per­centagem a pagar consoante o tempo de uso.

Uma nova Portaria deu à República Popular de Moçambique o direito a se apropriar, sem quaisquer indemnizações, de qualquer automóvel que deseje, sendo atirado para o cesto dos papéis mais um dos direitos garantidos pelos Acordos que dizem haverem sido assinados entre Portugal e Moçambique.

         A Portaria a que me refiro, que viria depois a ser substituída, mas que teve força legal durante os meses principais do êxodo dos portugueses, reza que, para efeitos de exportação definitiva ou temporária, são atribuídos aos veículos ligeiros de passageiros, importados até há quatro anos, o valor actual de venda praticado pêlos agentes, e que para os importados há mais de quatro anos o valor C.I.F. actual.

Deste modo, para que qualquer português se fizesse acompanhar da sua visita teria que fazer os seguintes pagamentos aos cofres da República Popular de Moçam­bique: Para os veículos importados até há dois anos, 90 por cento ad valoren; com mais de dois anos e até três, 70 por cento ad valoren; com mais de três anos e até quatro, 60 por cento ad valoren; com mais de quatro anos, 50 por cento ad valoren.

Como se nota «à priori», e tendo em vista que os cálculos são efectuados respectivamente sobre o valor de venda efectuada pêlos agentes, ou o seu valor C.I.F. actual, a viatura, especialmente na primeira situação, pagará mais — mesmo tendo em conta que apenas é devedor de 90 por cento do seu valor — do que custou ao proprietário quando foi adquirida, olhando-se ao valor actual praticado pelos agentes.

Não está aí, porém, a armadilha governamental, mas numa alínea que reza que «os veículos automóveis a exportar definitivamente poderão ser adquiridos pre­ferentemente pelo Estado, pelo valor que lhes foi atribuído». E como era a P.I.C. que lhes atribuía o valor, e à sua resolução não era consentida controvérsia, criaram-se as mais desumanas situações, que formariam um longo e cansador filme de imagens documentais de saques aos bens de portugueses.

Um homem de nome Anezula Ramos Aba, oriental de ascendência portu­guesa, tinha o seu automóvel, um «Mercedes», já despachado no cais, com praça num navio português com destino a Leixões.

A viatura fora avaliada em 220 mil escudos e liquidara 50 por cento do seu valor, exigência até então legislada.

Dias volvidos, após a publicação de novo Decreto, foi chamado às autori­dades, sendo-lhe comunicado que o automóvel teria de ser novamente avaliado, e desta vez por funcionários da P.I.C. Aquela Polícia considerou que o valor não excedia 90 mil escudos, mas como poderia ser adquirida preferentemente pelo Estado passaram-lhe um documento para levantar essa importância, quando existisse verba, para o efeito não orçamentada.

O homem reclamou. Disse que havia pago de direitos de exportação a quan­tia de 110 mil escudos e que queria que essa importância lhe fosse restituída. Foi--Ihe respondido:

— O que pagou, pagou. Não é connosco. O Estado deve-lhe 90 mil escudos, que liquidará quando houver disponibilidade financeira.

— Mas eu vou-me embora! — lamentou-se o homem.

— O problema é seu! — responderam-lhe.

Anezula Ramos Aba embarcou para o Porto, por via aérea, levando no bolso um papel sem valor como recordação da terra onde viveu durante meio século. Em poder do Governo da República Popular de Moçambique ficaram o seu auto­móvel e 110 mil escudos.

         Um facto idêntico aconteceu a uma professora — de que não publico o nome por ainda se encontrar em Moçambique, sustida por um contrato que levianamente assinou. Tentou levar o seu problema ao conhecimento das altas estruturas do Par­tido, mas ninguém a quis ouvir.

Aproveitando-se de uma reunião com grados elementos da Frelimo, realizada na Beira no edifício da Escola Preparatória, quando um dos dirigentes do Partido interrogava os professores sobre os motivos que os levavam a abandonar Moçam­bique, ela contou a sua história, descrevendo minuciosamente o roubo de que fora vítima por parte do Governo.

Impertigado o presidente da reunião, interrompeu-a:

Isso é um assunto pessoal. Queremos assuntos colectivos. Abaixo o elitismo. Viva a Frelimo! ...

E todos, contrafeitos, fiscalizados por dezenas de olhos avermelhados por ódios — os olhos da vigilância — gritaram «abaixo», e aplaudiram o «viva». Mas, também, todos saíram da reunião com mais vontade de abandonar definitivamente Moçam­bique. O assunto pessoal daquela professora era assunto pessoal de centenas de portugueses, mas mesmo assim não era colectivo. Uma outra educadora presente à reunião confidenciava depois:

— Por enquanto deixam-nos levar a vida!

Pode o Governo da República Popular de Moçambique desconhecer todos estes saques aos bens dos portugueses, se é ele próprio que legisla e relegisla, e define as atitudes de todos os seus agentes?

Não tem o Governo conhecimento de que as viaturas, que eram propriedade particular de portugueses, são passeadas escandalosamente por agentes e graduados da P.I.C., que se dão ao luxo de usar uma diferente de cada vez que saem à rua, e ainda as emprestam aos seus familiares mais chegados e as oferecem às amantes?

Onde se encontram, então, as garantias anunciadas pelo ministro português Almeida Santos, que afirmou textualmente ao «Século Ilustrado» que parte das garantias individuais, nomeadamente as relativas à segurança das pessoas e ao res­peito dos bens, só ao nível dos acordos de cooperação podiam ser negociados, afirmando, a seguir, com convicção, que os tais acordos já começaram a sê-lo com confortável êxito!?

Que êxito? ...

Quando as cadeias se encontram repletas de portugueses; quando os campos de trabalho vão minando a saúde dos homens que nenhum crime cometeram além de teimarem em continuar na terra para onde vieram há vinte ou trinta anos? ...

Que  garantias  foram  asseguradas  em   Lusaka,  ou   acordadas   posteriormente?

Não terão os portugueses, espoliados dos seus bens, da sua dignidade, da sua segurança pessoal, o direito de exigirem que esses acordos de garantia sejam tor­nados públicos? Não sentirão força moral para pedirem que os ajustes de contas sejam efectuados entre os mesmos homens que jogaram os destinos de Moçambique e dos portugueses ali residentes, para que os danos — morais e materiais — sejam compensados com humanas indemnizações?

Não terão força moral, todos os portugueses retornados de Moçambique, para exigirem, com voz digna, a Melo Antunes, a Mário Soares, a Almeida Santos, Vítor Crespo, a Antero Sobral, a Nuno Lousada, a Almeida e Costa e a Casanova Ferreira, que consigam da Frelimo a reparação que lhes é devida, visto que nenhum deles pode exigir algo a Samora Machel?

O direito à permanência na História não se adquire com o simples rabiscar de uma assinatura sobre um documento dactilografado sem erros ortográficos, mas nas consequências dessa assinatura. E as consequências estão à vista de todos.

19.     O   MARXISMO   MACHELISMO

Desço à cidade com um destino fixo: assistir ao movimento de contentores no cais e à forma como são fiscalizados pela Polícia Aduaneira e pelas forças da Frelimo.

Vou a pé.

Percorro o longo trajecto do Esturro aos Bombeiros, onde o trânsito acusa uma hora de ponta diferente da de meses atrás. Passo a ponte sobre o Chiveve e curvo pela rua dos indianos, no sentido da velha Marisqueira, na intenção de ir desembocar, finalmente, na antiga Praça do Município.

Desconheço o nome das ruas que tuteei em reportagens anos atrás. Samora Machel despersonalizou-as e ninguém as trata pelas novas denominações moscovitas. Praças de Lenine, de Karl Marx, de Moscovo, de Lumumba, e outros nomes quejandos, apagaram as recordações portuguesas, como se a raiva de um homem e a sua obediência a Moscovo fossem capazes de riscar do pensamento dos homens, das paredes das casas, das ruas que trilho, dos passeios das avenidas, as recorda­ções, boas e más, de cinco séculos de presença portuguesa.

No passeio da Marisqueira depara-se-me, porém, um insólito espectáculo: Seis soldados da Frelimo, de farda verde azeitona e capacetes de aço, montam uma metralhadora pesada no solo, apontando-a para um edifício em frente. Estão no passeio que eu trilho e vacilo se devo ou não prosseguir o meu caminho.

Um medo — que reconheço ridículo — acompanha-me desde que comecei a compilar estes apontamentos, como se todos os homens da Frelimo tivessem conhe­cimento de que eu, um jornalista português há cerca de vinte e dois anos a residir em Moçambique, iria dar publicidade a parte dos seus crimes.

Mas quem é que jamais saiu de uma arena sem ter antes sentido um arrepio de medo? Ora eu estava ainda no seu interior, desafiando, na clandestinidade, as iras da Frelimo.

Rodeara-me de todas as precauções, não falando do meu trabalho a ninguém, o que mais ridicularizava o meu medo, mas eu sentia que os dias dramáticos que vivíamos me modificaram.

Sigo e entro na Marisqueira, não querendo perguntar, mal chego, o que se passava ali. Alguém me informa, porém: Foram nacionalizados os clubes recreativos. Era esse o justificativo para tamanho aparato bélico! ...

Dois dos soldados carregam cadeiras para o passeio e sentam-se, preparando-se para uma cómoda e demorada operação. No solo, pronta a disparar, continua apon­tada a metralhadora pesada, e cada homem transporta consigo uma Kalashnicov que deixa brilhar, à distância, com os reflexos do sol a pino, a folha da baioneta desembainhada que se prolonga da nervura recta do cano da arma.

A metralhadora está apontada para um edifício onde se situa a mesquita muçulmana, que sobressai, em contraste, como símbolo de paz, com os seus res­plandecentes quarto crescente e estrela virados para Meca.

Às portas das residências aparecem, espreitando, medrosas mulheres vestidas de garridos saris que deixam a descoberto pedaços frescos e morenos de corpo, à altura das cinturas. Os homens espalham-se em grupos, mas parecem desinteres­sados do que está a desenrolar-se a seu lado e que afronta a religião que seguem por tradição e fé.

Nos estabelecimentos, indianos na maioria, o labor comercial prossegue com a entrada constante de mercadores. Só o rosto do passeio é diferente dos outros dias, e triste, fazendo lembrar uma daquelas imagens da propaganda política que enxameia agora os jornais com o beneplácito da Frelimo, e que serve para documen­tar qualquer notícia, de qualquer país do mundo não progressista, onde convenha mostrar opressão, medo, morte ou guerra. Só que a imagem ali era real e paletava uma rua pacata de uma cidade de uma República Democrática, de uma República Popular.

Os clientes da Marisqueira, familiarizados com o espectáculo, fazem comen­tários jocosos que são mal interpretados por um homem asiático que se afasta. Parecera-me que alguém dissera que a Frelimo ia derrubar a tiros de metralhadora, o símbolo da religião, a lua em quarto crescente, para no local colocar uma foice e um martelo. Eu pergunto quando tivera início o aparato bélico e elucidam-me que, minutos antes, todos os clubes, agremiações e sociedades culturais, recreativas ou de benemerência, haviam sido tomadas pela força por homens da Frelimo. E dizem-me que a coisa vem no jornal...

— Parece que se trata de um Decreto! ...

Consulto o jornal e lá vem, em destaque na primeira página, a notícia enca­beçada por este título: «COMBATE AOS VESTÍGIOS DO COLONIALISMO — EXTINTAS AS ASSOCIAÇÕES DE CARÁCTER DIVISIONISTA».

Estará certa a atitude do Governo  de Moçambique?

Já não opino; ninguém opina mais. O que não concordo, por mais pedradas dialécticas que me atirem ao cérebro, é com o aparato de guerra usado pela Frelimo, contra o edifício onde apenas se situam uma mesquita e uma escola, quando uma acção policial comedida não alarmaria a população, nem ridicularizaria o Partido.

Estávamos, porém, na época em que surgia fortalecida por um discurso qual­quer atitude, por demais condenável do Partido; em que os discursos abundavam pelos comícios de ruas, pelas reuniões de bairro, pelos comités de círculo ou de localidade. E quanto se dissesse ali apoiava quanto estava feito, fosse quem fosse o orador, bastando, antes e depois dos disparates apregoados, saber gritar, a bons pulmões, meia dúzia, senão mais, de «vivas» à Frelimo. Que interessava, pois, a discordância massiva a esta ou a outra arbitrária atitude do Governo de Samora Machel?

Penetro no porto com as facilidades concedidas ao cartão do jornal, depois de diversas diligências junto dos elementos do portão de acesso. Um aglomerado de portugueses junto de contentores indica-me que ali termina a minha digressão. Fico vendo e ouvindo quanto ali se diz e faz.

Os agentes da P.I.C., que mais tarde seriam substituídos por forças da Polí­cia Aduaneira, vão escolhendo os objectos que não podem seguir nos contentores. Uma mobília de quarto, aparentemente nova mas com sete anos de uso — segundo declara com provas a proprietária — é refugada. A mulher observa aos agentes que, não tendo filhos, o aspecto dos móveis foi perseverado, mas é interrompida:

— Por que mentes? Ganhas alguma coisa com isso?... Só segue se nós qui­sermos ... e como não queremos...

O homem da P.I.C. afastou-se e decretava as suas leis a outro português. O objecto em discussão era um «bar» em talha:

— Não pense em levar isso. Faz falta à economia de Moçambique. Quer ir para a jaula acusado de sabotagem económica? ...

Um homem algarvio, das minhas relações, diz-me:

— Tudo o que para aqui vem já foi vistoriado. As pessoas chamam a casa as autoridades administrativas e elas inventariam o que pode seguir. O que é auto­rizado vem para o porto, mas aqui os homens da P.I.C. fazem nova selecção, deixando no cais mais mobiliário, que ninguém sabe para onde vai. Será o Governo o ladrão? ... Serão eles? ...2.

Regresso a casa. O Presidente Samora Machel estava desde manhã discursando em Lourenço Marques. Virão mais nacionalizações?

Mas o que falta ainda roubar aos portugueses?

Ligo o receptor no momento em que Samora Machel passa em revista a posição dos organismos recentemente nacionalizados e a imoralidade que penetrou nesses sectores após as nacionalizações. Ele dirige-se às mulheres moçambicanas, pois a cerimónia a que preside assinala a inauguração das comemorações da Orga­nização da Mulher Moçambicana.

Capto as suas mais interessantes afirmações:

«Assistimos ao nível dos hospitais, a fins-de-semana... há um nome, como se do sexo, cigarros nas escolas, e alguns professores também fomentam isso, porque é Governo da Frelimo. E o Governo da Frelimo, a sua característica é a indisciplina. Assistimos a professoras que fazem dos alunos seus amantes. Assistimos também a alguns professores que fazem das alunas já crescidas suas mulheres e suas amantes. Assistimos a situações bastante vergonhosas, que humilham, desprestigiam a Frelimo, desprestigiam a mulher moçambicana.»

«Assistimos ao nível dos hospitais, a fins-de-semana... há um nome, como se chama... bailes organizados com muita bebida alcoólica, dançam, vão apagando as luzes e vão tirando as roupas, dançam, bebem nus. Como é que se diz isso?... Bacanais. Existe no nosso país, deixado pêlos colonialistas. Ao nível dos hospitais gostam, fazem. Existe essa prática. Vocês viram alguma vez? Mas existe nos hos­pitais, [untam bebidas, juntam-se lá todo o pessoal dança e vai bevendo e quando chegam aí por duas horas da madrugada começam a tirar a roupa, vão diminuindo as luzes, e, finalmente, todos ficam nus e bebem. São civilizados. A isso chama-se orgia.» (sic).

«Façamos esse combate e a mulher não faz combate contra isso. Cabarets e boites, aqui ao nível do Maputo, Beira, Nampula, onde havia concentração da tropa colonialista, da tropa de agressão e os nossos moçambicanos, as nossas moçambi­canas, continuam. Têm saudade, porque se foram embora aqueles que traziam a civilização avançada. Encontramos a nossa mulher rodeada de três homens, quatro homens ao mesmo tempo. Existe ou não existe? Como é que vamos lutar contra isso tudo? As nossas moçambicanas agora vão para Portugal. Vão atrás dos seus amantes, dos quatro ou cinco homens que tinham ao mesmo tempo. E depois dizem que a Frelimo lhes tira as roupas no aeroporto, lhes tira tudo. Então elas vão nuas para Portugal? É ou não é?...» (sic).

Samora Machel refere a seguir o estado caótico em que se encontram alguns sectores de actividade, nacionalizados pela Frelimo, com as seguintes palavras:

         «Nos hospitais, porque nacionalizamos a medicina privada, sabemos que já não há mantas para dar aos doentes. Já não há lençóis, é preciso levá-los de casa. £ preciso levar a manta de casa, que é para provar que quando havia hospitais privados, isso sim, havia higiene. E nós dizemos que isso é falta de organização, é falta de planificação, incapacidade dos dirigentes nos hospitais. Nos nossos hospitais não tínhamos sabão, nas zonas de guerra não tínhamos lençóis, não tínhamos nada. Mas mantinham-se limpos os hospitais, havia higiene nos hospitais. Porque, primeiro, o enfermeiro e o médico sabiam o valor da vida de uma pessoa e estes só sabem o valor do dinheiro e não da vida da pessoa. E dissemos que a terra pertence ao povo. Parece que todos já têm terra. É por isso que esses vossos irmãos querem ir para Portugal. Com o vosso dinheiro, que roubaram durante muitos anos, querem  comprar terrenos em Portugal, porque aqui não há compra de terrenos. Hoje nacionalizamos os prédios. Quem é que ficou ofendido? Quem é que ficou preju­dicado? Quem tinha prédios? Levantem a mão. Agora vocês vão para os prédios, não vão? Já leram o jornal? Irão ou não irão para os prédios? Mas mantenham a cidade limpa. Cabe às mulheres organizarem-se para ver como fazer limpeza às cidades. Higiene na cidade, higiene nas vossas residenciais. Manter a cidade limpa. Isso cabe às mulheres. Vamos desligar os homens que estão nas fábricas para virem varrer? Por isso, termino aqui, para escutar as vossas intervenções, porque eu vim para aprender convosco.» (sic).

É deste modo que a política marxista-machelista se esforça para ser acolhida favoravelmente por aqueles que a detestam. É assim que ela é apresentada ao seu próprio povo, uma sociedade plenamente amorfa e insatisfeita que se vem sentindo traída e segregada. Esta é a máscara do socialismo científico machelista, que trans­forma Samora Moisés Machel numa espécie amodernizada de bombeiro incendiário que postula uma unidade perdida.

É seu dever, perante Moscovo, dar provas de imaginação, com o fito de trocar as voltas à vontade do povo que lhe é impossível controlar, lançando palavras de ordem aventureiristas disfarçadas de um moralismo hipócrita.

Mas perto o seu grupo de intelectuais vigia-o. Todos sabem, menos Samora Machel, que o Presidente da República Popular de Moçambique é uma figura para queimar, e que quanto mais ridícula e estúpida se mostrar melhor servirá os intui­tos moscovitas.

Por ora é necessária, enquanto no pensamento dos verdadeiros guerrilheiros, dos que apoliticamente lutaram nas matas pela liberdade moçambicana, se conservar a imagem endeusada do Chefe Samora, do Comandante Samora, dos seus tempos apolíticos, antes de se deixar desinteligentemente dominar e politizar pêlos cérebros comunistas do Partido. Depois o seu afastamento será fatal. Mas só então.

Por isso, talvez, a Imprensa, ao contrário do seu costume, publicou este ridí­culo discurso, que retrata o desastre verificado nos organismos nacionalizados pela política de Samora Machel. Da Imprensa o transcrevi sem lhe acrescentar uma vírgula, respeitando, assim, a forma ortográfica dada pelo «Notícias da Beira» às palavras de Samora Machel.

Cerca de um ano depois, em Março de 1977, Samora Machel voltaria a abordar os mesmíssimos problemas, pelos vistos sem resolução, num comício realizado no estádio da Beira, usando desta vez, porém, expressões mais agressivas mas não menos ridículas. Do «Notícias da Beira» extraio integralmente:

«Sabemos que ainda vivemos num estado quase primitivo: poligamia. Vivemos neste estado em que criámos um curral, metemos lá um bode e pusemos lá vinte cabras. Correcto? Correcto?... Ë assim quando queremos criar animais. Compramos mais cabras do que bodes. Não é verdade?... É ou não é?...»

Referindo-se mais uma vez à nacionalização dos edifícios, afirmaria:

«Alguns já levaram dez mulheres para o prédio. Outros deixaram as mulheres porque não eram compatíveis com o prédio... É ou não é?... Ir para o prédio significa produção. É uma conquista. Uma conquista que ganhámos através de com­bates sucessivos. Agora como tratar o prédio? Essa tarefa pertence particularmente às mulheres.»

            «A partir de agora vamos formar com a O.M.M. comissões para de 15 em 15 dias fazer uma vistoria a todas as residências. Quem for encontrado a manter mal a manutenção da casa, falta de higiene, vamos expulsar do prédio. É xiconhoca, está a destruir a vitória do povo. Portanto aqueles que forem encontrados a sujar as portas, partir os vidros, deixar as torneiras estragadas, sujar as paredes, os vidros, as portas, o Estado vai arranjar pedreiros, carpinteiros, consertam tudo... e será des­contado. Directamente lá do seu vencimento. Descontado. Ouviram? Ouviram?...»

«Outros levaram cabritos para os prédios. Outros galinheiros nos prédios. Outros muita terra ali no terraço para semear batatas. Outros nas banheiras puseram terra para plantar cebolas. Vamos tirá-los do prédio também.»

«Podem pilar lá em baixo amendoim... Não é verdade?... Mas levam para o prédio, começam a bater, pilar todos os dias... e começam a rachar o prédio. Ouviram?...»

Aparecerá um chefe de Estado, neste mundo tão confuso, com discursos, sempre muito aplaudidos, mais ridículos? Mas é ou não é?...

20.    O   PREÇO   DA   LIBERDADE

Deslocava-me, de quando em vez, à Redacção do jornal, não para matar saudades nem para alimentar amizades, mas por questão económica.

Era credor de cerca de uma centena de milhar de escudos de vencimentos, além de outras centenas de milhar de escudos de comissões, acumuladas em Tete nos últimos cinco anos. Mas a Comissão de Trabalhadores, chefiada por Mário Ferro, que dependia do Grupo Dinamizador do jornal, de que também fazia parte Mário Ferro, quebrara pelo canto mais vulnerável, o económico. As edições dimi­nuíam de tiragem de dia para dia, pois o leitor alfabetizado era cada vez em menor número. O «Notícias da Beira», que perdera o combate, continuava & dis­cussão com o povo, querendo impingir as suas ideias desacreditadas.

Passava os dias junto à máquina de escrever, e, à noite, ao penetrar no quarto para dormir, o sono era-me retirado pêlos ensaios de guerra praticados na minha rua, em todas as ruas, por parte dos habitantes menos evoluidos dos bairros.

Marchavam dirigidos por vozes avinhadas de comando, e eu vinha para a janela unir-me ao escuro para espreitar a rua. Os recrutas eram homens e mulheres esfarrapados e descalços, e o treino destinava-se a reforçar os quadros para a guerra. Samora Machel queria transformar cada homem num guerrilheiro, num combatente contra o imperialismo capitalista e os ensaios dessa gente processava-se entre as 22 horas e o badalar da uma da madrugada, com muitas marchas, cor­ridas, canções.

A minha posição política, de não concordância com a destruição de Moçam­bique ensaiada com sucesso pela Frelimo, trazia-me um sentimento de angústia física que me levava a, uma vez por outra, retirar de sob o travesseiro da minha cama os apontamentos desta Reportagem, como se alguém os pudesse surripiar, tal a sensação de ameaça permanente que eu vivia.

Quanto mais se afirmava a necessidade de vigilância contra a engrenagem que dificultava a destruição do país, maior era o meu terror, por eu me sentir uma peça importante dessa engrenagem.

Li, devorando as palavras, a carta do ministro de Informação e Propaganda, Jorge Rebelo, onde ele achava conveniente a minha entrada imediata ao serviço da Redacção, mas essas palavras não me traziam a cómoda segurança, necessária para que as minhas noites fossem preenchidas pelo sono, pois havia quem per­guntasse:

— Por que é que este indivíduo não foi ainda preso?

Mas eu não podia ver passivamente Moçambique correr para o suicídio que, mesmo inevitável com a política da Frelimo, estava ainda a tempo de ser refreado. Por isso me afligia, me interrogava e me amedrontava mais.

Quando se produziria qualquer coisa, mesmo insignificante, que fragmentasse o aparente poder da Frelimo?... Eu ouvia todas as noites as emissões radiofónicas ocidentais, onde as atitudes de Samora Machel eram criticadas abertamente, e esprei­tava nas informações a abertura que o povo desejava para se manifestar, pela primeira vez, com honestidade nos últimos meses. Espreitava essa abertura espe­rando assistir a ela antes de partir, olhando o riscar das folhas do calendário que me aproximava, cada vez mais, do início de Setembro, fronteira da minha liberdade.

Qual seria o preço a pagar ainda?

Restava-me colocar a bom recato, em Portugal, estes apontamentos. Quem os levaria? Toda a documentação em poder dos portugueses era examinada com a lupa do Partido, e nem recortes de jornais, mesmo favoráveis à Frelimo podiam sair do país. Que fazer, então? Recorrer às fronteiras moçambicanas e tentar uma curta e disfarçada fuga, com regresso ao país?

Opto por essa solução, e, numa manhã de princípio de Inverno, percorro as estradas que há tanto conheço, de regresso a Tete. Dali tento a passagem para o Malawi, por forma a que não seja necessária a apresentação de documentos.

Planeio o golpe, medindo os prós e os centras. A cidade malawiana que me promete solução ao problema, por fácil acesso, é Dedza, a uma milha da fronteira.

Tive de dissimular, de ser um actor de primeira classe na comédia que engendrei em noites sem dormir, actor que soube convencer os esbirros da Frelimo, com e sem farda, negros e brancos. Tive de dissimular, arriscando a liberdade e a vida numa aventura.

Passei os controlos de estrada. Ouvi as vozes que tantas vezes já ouvi e as mesmas palavras: «Dá-me um cigarro! Que levas aí no carro?» Vi-os remexer nos meus pertences, abrir malas, senti armas apontadas contra mim. Pediram-me os documentos uma, duas, dezenas de vezes, tornando mais comprido o asfalto. Olharam-me com desconfiança, exigiram-me uma Guia de Marcha que eu também forjei. Tentaram ler dentro de mim as minhas intenções mais íntimas, e esta viagem, de cerca de mil quilómetros, não se pareceu com nenhuma outra das que até então efectuei por aquelas terras que conheço e me conhecem, que se me mostraram familiares em cada curva que bordejava o caminho, em cada machamba que se estendia, a perder de vista, até o início das montanhas.

         Parei no Dondo, onde o cruel saudosismo me fustigou (trazendo até mim os anos da juventude, dos bailaricos no Clube, onde se furtavam beijos às moçoilas envergonhadas; segui pelas terras açucareiras, onde o asfalto é atapetado por folhas secas da cana sacarina; ultrapassei, em cómoda ponte, o Rio Pungué, que tantas vezes venci em almadia ou batelão ...

Fui mais longe, à velha Vila Pery que tanta gente orgulhou, e que hoje, como cidade do Chimoio, a todos enfastia; onde as prisões são ainda mais arbi­trárias; onde os cabouqueiros da agricultura evoluída abandonaram casas, armazéns, alfaias e toda uma vida, para que os seus nomes venham depois, ao abrigo de um Artigo qualquer de uma Portaria socialista, como autores de abandono de tudo, não sendo esquecido, no Inventário do que deixaram, um penico desprezado ao dispor de novos donos ...

Subi o Bárué até ao Guro, paraíso de verdeais perdido entre montanhas majestosas de altitude e de sossego, mas não me detive aí em contemplação. Fui à Changara, de onde quase podia avistar a Rodésia de lan Smith, e desci a Tete, primeira etapa desta tentativa de fuga que era demasiado bela por ser conseguida com sucesso ...

Respirei ali, abraçado às montanhas, aos vales, às planícies percorridas, um abraço que senti ser de despedida eterna, cruel, íntima. Revi amigos e olhei rostos que conheço, antes de rumar para a fronteira, onde se repetiram os mesmos «controlos» de estrada, as vozes que tantas vezes já ouvi, e as mesmas palavras. Vi remexerem-me nos meus pertences, abri malas e mostrei os mesmos documentos, cada vez mais cocados e cada vez mais necessários.

Tornei a ver as árvores da Picada da Angónia, as gentes de Ulongué, da velhíssima Vila Coutinho que vi crescer e espraiar-se no planalto. Bebi copos de cerveja gelados no «Dominó» de Bragança, com amigos. Olhei depois, com espe­rança, a grande montanha da Mesa, que significava finalmente a conclusão de todo o meu esforço, o desfecho feliz da minha grande aventura. E tive depois, nas mãos, o recibo de registo aéreo malawiano de um volume de documentos, com­pilados na clandestinidade, num país que nada tolera.

E a resposta do sucesso da viagem, leitor, está frente a teus olhos, pois esta Reportagem foi publicada.

2 Após Setembro, foi proibida a saída de Moçambique de quaisquer mercadorias. Os contentores, mesmo vistoriados e com frete marítimo pago, ficaram retidos nos portos moçambicanos, à chuva e ao sol, apodrecendo o seu conteúdo. A intenção não é ressalvar a economia moçambicana, mas, apenas, prejudicar os últimos portugueses que fogem da República Popular de Moçambique. (Nota do Autor)