SEGUNDA PARTE
UM MOÇAMBIQUE A DESTRUIR
9.
A GERALDINA FRANCISCA
E AS
CONTRADIÇÕES DE SAMORA
Corria a manhã de 10 de Dezembro de 1975, uma manhã quente e húmida, do mais tórrido verão moçambicano.
Chovera durante a noite, e as terras ressequidas retiveram a água que, evaporando-se com o calor da manhã — quarenta graus marcava o barómetro—, formava uma pegajosa humidade que me molhava o corpo.
No meu gabinete da Delegação eu dava por finda a tarefa do dia, adiando uns trabalhos que tinha entre mãos, pois o aparelho de ar condicionado avariara uns dias antes e o ambiente sufocava. Tete, cidade que sempre afligiu os europeus, punha mais uma vez em experiência a sua resistência a climas do Inferno.
Preparava-me para sair quando uma mulher ainda jovem, de olhar assustado, molhado por lágrimas recentes, me travou o passo. Contou-me uma longa história e, pediu-me que a publicasse no jornal.
Chamava-se Geraldina Francisca e era parteira do Hospital da ZAMCO, no Songo, o consórcio empreiteiro construtor da barragem de Cabora Bassa.
Meses antes, e depois de ter sido perseguida por um comandante da Frelimo, e chefe do Corpo de Polícia de Moçambique naquela localidade, que a desejava para amante, passou a ser vítima de diversas injustiças permitidas pelo poder do jovem comandante. Eram perseguições exercidas por todos os meios, difamações e insultos, sem que ela — dizia-me — lhe retrucasse qualquer palavra, ou gesto, que a ele desse oportunidade de a deter.
— Eu enojava-me o homem. Era um mulherengo e eu sou uma mulher séria. Não quero dizer que já não tivesse tido um marido, mas desse gostava. Mas o comandante queria-me para amante, mesmo havendo em Cabora Bassa uma porção de mulheres mais bonitas e mais novas do que eu, que não se importavam de pôr-se à disposição dele ...
— E depois? — pergunto apressando o seu relato.
— Como nunca me conseguiu convencer — continuou — atirou-se a uma colega minha, mulher que mais tarde fez barulho e foi presa. Mandaram-me chamar para depor e, pelo caminho, quando seguia no jipe da Polícia, que era conduzido por um guarda embriagado, o jipe chocou com outra viatura. Fui transportada para o Hospital do Songo e dali fui evacuada, em perigo de vida, para a Rodésia, por via aérea. O tratamento custou-me quinze mil escudos.
Eu vou tomando notas por força de hábito, pois sei que a história daquela mulher dificilmente poderá ser publicada na imprensa moscovita de Moçambique.
— Quando regressei ao Songo, já restabelecida, soube que a Polícia tinha retirado o «processo» do Tribunal e tudo ficara em nada. Como o comandante soube que o guarda é que fora o culpado do acidente levou o tribunal «à certa» e eu fiquei a perder o meu dinheiro. Comecei a falar por fora, a dizer a toda a gente que iria contar o facto ao Joaquim Chissano de Lourenço Marques. O comandante da Polícia teve medo e aproveitou-se das rusgas, feitas agora contra a prostituição, e mandou-me prender. Antes enviou ao meu quarto alguns guardas, durante diversas noites, para espiarem se eu dormia com algum homem, mas a sua acção foi inútil porque eu sou uma mulher séria. Veja lá que numa dessas noites encontraram um homem no quarto de uma colega minha e não a prenderam. A mim é que me queriam. Ela passou a ser amante do comandante da Polícia.
E prossegue:
— Ele de mim não levou nada, nunca me viu com um homem, e prendeu-me como prostituta. Estou na cadeia há um mês e não me querem ouvir. Quero ir ao Partido e não me deixam ir. Agora eu ia a caminho do Hospital e lembrei-me de lhe contar a história. Publique-a por favor. Eu quero que em Lourenço Marques saibam destas injustiças...
Digo-lhe para escrever tudo o que me contara numa carta, que depois eu publicaria quando escrevesse.
Abandonei o jornal durante cerca de uma hora, tempo que ocupei a me informar dos antecedentes da mulher que me procurara. Quando regressei o rosto da jovem negra estava diferente. Os seus olhos brilharam. Onde eu vira o medo, antes de partir, eu lia agora confiança.
Fiz-lhe ver que depois da publicação da sua carta ela seria perseguida pelo Partido e pela Polícia e ela respondeu-me:
— Eu não tenho medo. Não me podem fazer mais mal do que já me fizeram. Eu quero que em Lourenço Marques saibam isto ...
A carta foi publicada no dia 13 de Dezembro a abrir uma página intitulada «Participação Popular», com o seguinte teor:
UMA INJUSTIÇA
Camaradas do Notícias da Beira:
Vou contar um caso que se passou comigo c que interessa à Participação Popular, porque se trata de uma injustiça. Fui a vítima, mas no nosso país pode haver mais raparigas honestas, solteiras, vítimas como eu.
Camaradas: No dia 19 de Abril fui chamada ao Posto de Polícia do Songo, para esclarecer um assunto de que estava inocente. Um polícia, por ordem do chefe Manjate, foi-me buscar de jipe. No caminho do Posto houve um desastre muito grande, eu tive de ser hospitalizada no Hospital do Songo, onde sou parteira. Dali fui evacuada para a Rodésia, e o tratamento custou-me 15.000$QO, dinheiro emprestado pelas minhas colegas do Hospital. Ninguém me pagou nada e o processo não chegou a ir para Tribunal. Sou pobre, trabalhadora, honesta, e fui vítima duma injustiça.
No dia 8 de Novembro, porque uma colega minha era desonesta e morava no Lar do Hospital como eu, foram-me buscar numa rusga feita para as mulheres desonestas, que não é o meu caso. Sou séria e posso provar com muita gente. Mesmo assim continuo presa hoje, dia 10 de Dezembro, um mês depois. Só por ser solteira? Mas as outras solteiras não foram presas. Sou séria e quero justiça.
Obrigada, camaradas do «Noticias da Beira», por olharem para o meu caso.
Viva a justiça popular!
Viva a FRELIMO!
Geraldina Francisca — Parteira do Hospital da ZAMCO — Songo
Pode parecer exagerado ao leitor que vive num regime democrático de características ocidentais o receio que eu manifestei em publicar, de minha lavra, a história contada por esta mulher. Porém, as prisões arbitrárias que se vinham efectuando em Moçambique, e que diariamente chegavam ao meu conhecimento, eram lições que se impunham com a força da evidência, dando-me o sentido exacto do que era ou não era tolerado pela Frelimo. Conhecia, ainda, as reacções do Partido, pois a História ensina-nos que um regime, ou um movimento político, nascido da violência apenas se pode perpetuar pela violência.
Era desta roupa que a Frelimo se vestia aos olhos do povo moçambicano, razão do meu receio de que a carta da Geraldina Francisca viesse levantar, entre as massas silenciadas pelo terror, um precedente de queixas, de lamentos e de acusações, que irritassem os dirigentes do Partido.
É certo que se sabia que a corrupção minava todos os sectores, e que a Polícia não era, nem podia ser, um quadro de excepção. Era o próprio Samora Machel que pedia ao povo, sempre que tinha oportunidade de o fazer, para exercer uma vigilância activa sobre o comportamento de cada militante, contribuindo, deste modo — dizia ele — para que a linha política da Frelimo fosse salvaguardada, e para que as fileiras estivessem purificadas de qualquer elemento nocivo, embora se soubesse que estas afirmações se destinavam a disfarçar os saneamentos que o grupo intelectual que dirigia Samora Machel se preparava para fazer, entre os dirigentes e combatentes menos receptivos ao comunismo, e ainda leais às directrizes do primeiro presidente, dr. Eduardo Mondlane.
De qualquer modo, porém, a publicação da carta na Participação Popular do «Notícias da Beira» ia ao encontro desse apelo. No «Notícias da Beira» escrevia-se, constantemente, ser aquela página um meio do povo colaborar na feitura de um jornal que era seu, de apontar desvios, de criticar atitudes menos correctas.
Era certo, ainda, que Ornar fuma, um membro do Comité Central da Fre-limo, denunciara publicamente, e com dureza, ao ocupar o cargo de governador da província de Sofala, a corrupção que minava todo o aparelho de Estado, falando da indisciplina, da anarquia, do relaxamento que se verificava em todos os sectores governamentais, quedando-se mais agressivamente nas críticas ao quadro policial, textualmente nestes termos:
«Nós temos de disciplinar o aparelho do Estado, em primeiro lugar a Polícia de Moçambique, que é um instrumento que deve servir as massas e manter uma ordem pública para defender os interesses da maioria e fazer justiça pública. Já falámos com eles, não é segredo, por isso queremos dizer aqui publicamente: Muitos tinham amantes, mas foram os primeiros, quando da ordem de 30 de Outubro, a mandarem prender prostitutas e deixarem prostitutas. Primeiro queremos através da Polícia estabelecer a ordem pública. Mas para estabelecermos essa ordem pública e toda a gente respeitar a Polícia, deve-se tomar nova medida em relação ao seu próprio Corpo, internamente. Eliminando o quê? Eles têm muitas amantes nos nossos bairros. Comem com a nossa farda. Eles têm uma farda. Bebem com a nossa farda. E usam a nossa farda para exibirem o seu poder, mas estão a representar o Governo Popular de Moçambique. Temos de impor a disciplina na Polícia...» (sic)
Estavam na verdade os grandes da Frelimo de parabéns com as teorias lançadas em discursos e na Imprensa, mas tudo isso fazia parte de uma acção teórica apenas, com os fins já apontados e de natureza estritamente política. A manifesta indignação era pois falsa. Não sabia o povo moçambicano que quanto era afirmado pelo presidente Samora Machel, ou por qualquer membro dos Comité Central ou Executivo da Frelimo, era desmentido na prática?
Não sabiam os prisioneiros que enchiam as prisões do país, os campos de trabalho, as pestilentas enxovias dos isolamentos políticos, que oficialmente não existem em Moçambique?
Não deu toda a Imprensa moçambicana o maior destaque à entrevista de Samora Machel, concedida à revista «Tercer Mundo», onde o dirigente moçambicano negou a existência de castigos corporais no país? Vejamos a «claridade» da entrevista deste turbulento marxista:
«Tercer Mundo» — Deve-se entender, então, que a auto-crítica é feita depois que cada um reconhece o seu erro, que o reconhece honestamente e sem coacção...
Samora Machel — Sim, honestamente e sem coacção. Nós
rejeitámos durante a guerra utilizar castigos corporais. Enterrámo-los. Começámos
por nós mesmos, pois o castigo físico diminui a capacidade intelectual do
indivíduo. Rejeitámos, também os insultos no seio do exército. Na Frelimo não
há insultos nem castigos corporais. Existe a crítica, que é muito séria. Ë tão
séria que é possível que alguns preferissem
os castigos corporais.
«Tercer Mundo» — E prisões?
Samora Machel — Sim, podemos fazer, mas não lhe chamamos prisões. Não existe prisão alguma. Existe reeducação.
«Tercer Mundo» — Realmente encontrámos alguns jovens portugueses que estiveram envolvidos em atentados subversivos em Lourenço Marques que, em princípio, estavam «presos» na Base Central. Contudo, encontrámo-los vivendo como os militares que estão ali.
Samora Machel — Produzem como nós produzimos.
Produzem nos campos de morte; e quantos deles não regressam! ...
Conhece o Presidente Samora Machel a história daquela rapariga, de nome Maria Fernanda, que, sobrevivente de um desses campos de trabalho e de produção, foi hospitalizada no Hospital de Lichinga (Vila Cabral), durante um mês, em estado de coma?
Sabe o Presidente Samora Machel que essa rapariga, após regressar a Tete voltou a ser internada no Hospital daquela cidade, recebendo soro duas vezes por dia, e durante um longo período?
Desconhece o Presidente Samora Machel que essa rapariga após todos os tratamentos a que foi submetida no campo de produção, incluindo o tratamento de chicote que lhe deixou indiscritíveis vergões nas costas — vistos por dezenas de pessoas de Tete — dos ultrajes ao seu pudor, pois era obrigada a trabalhar nua da cintura para cima e apenas com um minúsculo trapo a lhe cobrir o sexo, recebeu uma Guia de Marcha onde era considerada inocente da acusação de prática de prostituição, quando já era impossível devolver-lhe a saúde, a confiança na justiça humana, e a fé na existência de Deus?
Mas como pode o Presidente Samora Machel desconhecer estes factos se o próprio secretário do ministro do Interior a foi retirar ao Hospital de Lichinga, onde ainda se encontrava sob prisão, compadecendo-se do seu estado de extrema debilidade? Se foi o próprio secretário do ministro do Interior que lhe examinou o corpo, ferido pela marca da bestialidade dos carrascos frelimistas, e, envergonhado, condenou junto de quatro testemunhas, o comportamento dos sádicos carcereiros dos campos de «reabilitação», reverberando os processos de tortura ali usados, aprendidos numa escola de terrorismo argelina? ...
Desconhece o Presidente Samora Machel os sofrimentos infligidos a um homem de nome Amorim, gerente de uma importante empresa distribuidora de óleos em Tete, apenas porque possuía na sua residência uma bandeira portuguesa?
Desconhece isso?
Eu conto:
Amorim havia pertencido à direcção de uma agremiação de caçadores civis, e, na dissolução da colectividade, fora nomeado fiel depositário dos bens existentes. Entre eles encontrava-se uma bandeira portuguesa.
O espírito de «vigilância do Partido» detectou-a. Foi preso e transportado para uma cela situada no recinto do comando provincial em Tete. Os homens que o arrastaram entregaram-no a outros que o agrediram à coronhada, a murro, a pontapé, sendo depois atirado, autêntico farrapo humano, para o cimento de uma acanhada e imunda cela.
Por uma janela sem grades foi insultado durante o longo decorrer da negra noite. Por ela os guerrilheiros enfiaram as pontas aguçadas de baionetas ferindo-o, embora ele se esquivasse, como lhe era possível, aos golpes dos assanhados e enraivecidos algozes. Por ela ouviu-os afirmar que «haviam de picar aquele porco português como se pica um chouriço».
Durante toda a noite ele esperou a morte e foi vítima das maiores e mais desumanas sevícias.
Sua mulher, entretanto, esgotadas todas as esperanças de conseguir a libertação do marido, procurou-me percorrendo toda a cidade. O Amorim havia sido aprisionado às três horas da tarde, e cerca da meia noite, quando eu abandonava uma sessão de cinema, fui abordado por ela que me implorou que, como jornalista português, usasse os «contactos» do jornal a favor do marido que, afirmava-me desvairadamente, já deveria encontrar-se morto.
Seguimos para minha casa, e enquanto a São tudo fazia para a acalmar eu, em nome do jornal, tentava alertar as mais gradas figuras do Partido.
Ninguém, porém tinha conhecimento da captura. Nem o comandante Neves, à frente do Corpo da Polícia de Moçambique, com quem falei pessoalmente, nem o comissário político Mexila, a quem expus dramaticamente a situação, nem o governador da Província Gomes do Amaral — o último governador provincial branco — a quem telefonicamente, e depois frente a frente, acompanhado de testemunhas, apresentei o problema do Amorim.
Veio-se a saber, mais tarde, que a detenção e as inevitáveis agressões eram da responsabilidade dos homens de serviço no Comando e que estes só entregaram o prisioneiro aos seus chefes ao fim da tarde do dia seguinte. Até esse momento ele fora um simples objecto de diversão para os soldados, mas ninguém afirmou que o agredira. Os ferimentos apareceram-lhe no corpo assim mesmo.
Três dias depois, o Amorim saiu da prisão por influência do comandante provincial, rendido ao apelo humanitário de diversos residentes portugueses e moçambicanos, destes últimos se destacando um negro de nome Paulo.
Não houve culpa formada contra o Amorim.
Ninguém o julgou.
A população portuguesa, que viu no rosto chagado e pisado da última vítima da Frelimo a imagem segura do que a todos aconteceria, começou a acomodar a um canto, junto ao leito, uma pequena maleta com os objectos necessários para uma viagem aos calabouços, incluindo nela os utensílios necessários para curativos de emergência.
A Frelimo sabia que a confiança que nela havia sido depositada pela colónia portuguesa tinha declinado, e que ao clima de confiança substituirá o de medo. O clima psicológico que afastou de Moçambique mais umas largas centenas de portugueses, com rumo à Europa ou aos países vizinhos, neles se incluindo o próprio Amorim e os seus familiares.
De nada valia a ninguém as palavras mansas dos dirigentes da Frelimo, tragicamente desmentidas pêlos seus actos.
10. A DUPLA PERSONALIDADE DO PRESIDENTE
Este clima de terror teve início com a entrada em Moçambique de Samora Machel, ainda apenas como presidente da Frente de Libertação de Moçambique.
Penetrando no futuro país pelo Norte, em todas as cidades e grandes centros onde discursou não poupou insultos ao povo português, ameaças veladas que fizeram renascer, em alguns sectores da população, velhos ódios rácicos que haviam sido enterrados pelas teorias humanistas de Eduardo Chivambo Mondlane, o fundador da Frelimo.
Devido às insidiosas afirmações de Samora Machel o povo negro, menos evoluído, começou a olhar o branco com desconfiança, vendo no seu afastamento da colónia a extinção do trabalho e a distribuição de riquezas sem esforço.
Parte dos quadros da própria Frelimo passou a ver no branco um inimigo em potência. O ódio ao colonialismo português transformava-se, mercê da campanha do Presidente, em declarado ódio ao português. A cultura lusitana foi levada para as ruas da amargura como cultura de prostituição e de vícios. A Igreja foi condenada desde os seus alicerces. As instituições humanitárias foram difamadas e encerradas.
De discurso em discurso, e conforme as conveniências de momento e a qualidade dos seus ouvintes, todos os alicerces da cultura ocidental foram danificados, minados, destruídos, chegando os insultos à causa portuguesa a causar pânico nas fileiras da própria Frelimo, pânico que culminou com a partida apressada de Joaquim Chissano, então primeiro ministro de Moçambique, a Quelimane, logo após o Presidente da Frelimo ter naquela cidade, mais uma vez, insultado a cultura portuguesa.
Nas palavras de crítica respeitosa ao Presidente, pronunciadas na presença de Gideon Ndobe, então ministro da Educação, e ouvidas por alguns portugueses, notava-se que Joaquim Chissano desconhecia no actual Samora Machel o antigo guerrilheio, descoberta que quebrara repentinamente o endeusamento que dedicara ao antigo companheiro de armas.
Desconhecia Chissano a lavagem ao cérebro a que fora sujeito Samora Machel, em Dar-es-Salam, pelos verdadeiros dirigentes de Moçambique, o grupo intelectual--marxista da Frelimo, dirigido por Marcelino dos Santos. Mesmo assim, apreensivo, notou a falta grave do Presidente, dessa atitude emergindo o óvolo das dissidências que, dia após dia, amadurecia dentro do cada vez mais pequeno e desunido Comité Central da Frelimo.
Mas a Imprensa moçambicana apenas levava às rotativas quanto não comprometesse o Presidente Samora junto dos observadores internacionais, silenciando grande parte das suas afirmações ou distorcendo-as. Saliente-se que todos os discursos de -Samora Machel eram — e são ainda — censurados pelo Departamento de Informação e Propaganda, mas, mesmo assim, nos trechos publicados verifica-se a sua exaltada perseguição aos símbolos, charneira da sua luta política, como se fosse o único criador da História.
Eu gravei, na íntegra, o discurso pronunciado pelo Presidente em Tete, na sua primeira visita de contacto com o povo moçambicano, e a Imprensa apenas referiu pequenos trechos que falsearam a verdade, pois eram as afirmações decepadas pela Informação que retratavam a personalidade de Samora Machel.
Nesse discurso, e numa conversa que nesse mesmo dia com ele manteria, ficou-me a convicção de que o Presidente da Frelimo mostrava possuir duas personalidades distintas, que se substituíam e alternavam.
Por vezes o seu único credo político era o poder, e as palavras que exprimem emoções humanas não faziam parte do seu dicionário; por outras mostrava-se humano. Qualquer observador teria dificuldade em o classificar, por as suas atitudes e afirmações fornecerem um terreno favorável ao erro, mas muitos consideravam-no um resultado do fenómeno social da guerra.
Samora Machel penetrou na luta de libertação nacional sem ideias políticas. O seu ideal era a liberdade, o desejo de fugir ao jugo colonialista e um inconfessável ódio ao colonizador branco.
Pouco inteligente, mas corajoso em combate, era o homem indicado para ser apresentado como símbolo de chefia aos verdadeiros nacionalistas que lutaram no interior, e fácil palhaço político nas mãos dos camaradas intelectuais que esperavam, no momento propício, empurrá-lo para as ideias socialistas do Kremlin.
Esse momento só apareceu com o 25 de Abril, quando a Frelimo viu que Portugal lhe oferecia o Governo de Moçambique, pois já não era mais necessário iludir o Ocidente — fornecedor de importantes meios económicos para a existência do Partido — nem os chefes dos governos negros da África Austral.
Saliente-se que Keneth Kaunda, presidente da Zâmbia, em diversas declarações pronunciadas até à independência moçambicana, se afirmou convicto de que Samora Machel não conduziria Moçambique para a constelação moscovita, e o próprio auxílio chinês indica idêntica suposição do império comunista amarelo do Oriente.
Trabalhado apressadamente pelos persuasivos processos moscovitas, usados pelos seus camaradas, e convencido pelas mais amiudadas visitas a Moscovo, onde era rodeado de especiais honras e adulações, que apraziam a sua vaidade pessoal e a sua sede de Poder, do homem apolítico nasceu o dirigente comunista condutor de massas. Mas diversas situações permitiam que o primitivo homem se manifestasse em algumas atitudes, daí derivando a sua aparente dupla personalidade. O seu apoliticismo anterior, e a sua sobrepolitização repentina, operaram nele o fenómeno da dupla personalidade. Os exemplos que mostro, a seguir, provarão como é fácil de distinguir os seus dois contraditórios comportamentos.
Retiro do gravador parte do discurso
proferido em Tete, no dia 10 de Junho de 1975, o suficiente para ilustrar a
forma pouco usada por outros políticos para atrair a atenção das massas e a sua
simpatia!
«Vocês já viram um turra?» (risos nos milhares de assistentes ao comício). «Nunca viram um turra?... É ou não é?» (silêncio). «Mas é, ou não é?» (vozes que gritam «É», vozes que gritam «Não é»). «Eu sou um turra! Eu sou um turra! ... Viva o turra! ...» (o povo grita «Viva»). «Eu sou um turra... É ou não é?» (a multidão grita «Ë»). «Então eu vou-vos apresentar mais turras. Está aqui este que é o turra Marcelino dos Santos, vice-presidente da Frelimo e membro do Comité Central. Viva este turra!» (o povo grita «Viva»). «O Marcelino dos Santos é um turra. É ou não é?» (o povo grita «É»).
Marcelino dos Santos ergue-se majestosamente e sorridente grita estridentemente «vivas» à Frelimo, a Samora Machel, a Eduardo Mondlane, e Samora prossegue:
«Temos aqui mais turras. Este é o Mariano Matsinha. Conhecem este turra? Ë membro do Comité Central da Frelimo. Viva este turra!» (o povo grita «Viva» e Mariano Matsinha repete os «Vivas» de Marcelino dos Santos).
Samora Machel continua:
«Este é o turra Joaquim de Carvalho, membro do Comité Executivo da Frelimo. É um turra. Ë ou não?» (o povo aplaude e grita «Ë», repetindo-se os «Vivas»). «Mas é ou não é?» (o povo grita «É»). «Pois bem foram estes turras que vos trouxeram a liberdade. É ou não é?» (a multidão grita «É»). «Foram estes turras que venceram os miseráveis e assassinos soldados de Portugal, o exército colonizador. Foram estes turras que ganharam a guerra e fizeram com que os portugueses fugissem como galinhas para Portugal. Ë ou não é?» (a multidão grita «Ë»). «Então vivam os turras! Vivam os turras!» (o povo grita «Vivam»). «Agora vamos cantar! ...».
E todos cantam alto e bom som, estando conseguida a comunicação entre o dirigente e as massas. Uma comunicação ridícula mas no momento útil aos homens que o manobram. Homens que sabiam que no momento oportuno Samora Machel seria uma figura para queimar.
Mais tarde, nesse mesmo dia, eu falo com Samora Machel nos jardins do Palácio do Governo de Tete, durante uma recepção oferecida em sua honra. Conversa informal a princípio, eu encaminhei-a para entrevista, forçando Samora Machel a mostrar-se a si próprio sem as orientações do seu grupo de conselheiros, obrigando-o, deste modo, a combater desarmado. Interroguei-o:
— Presidente Samora, qual é a sua impressão pessoal a respeito do professor Marcello Caetano?
O grupo de meus colegas aproxima-se, interessado na resposta que sairia de Samora Machel, e eu, no curto intervalo, tento descortinar, inutilmente, surpresa ou outro sentimento qualquer no rosto do meu interlocutor. Vejo nele apenas o ar apagado de um homem vulgar e pouco inteligente.
— Somos inimigos políticos. Ele representava o colonialismo, força opressora contra a qual nós lutávamos pela Frente de Libertação. Isso não impede, porém, que, pessoalmente, o admire como homem...
Reparando, sem dúvida, que esta última afirmação era um bocado ousada tempera-a imediatamente:
— Ele era um
homem sério, honesto, íntegro. A sua política é que estava errada.
A opinião pública moçambicana em geral fora agredida com uma acesa campanha contra o general Kaúlza de Arriaga, e grande parte dos «posters» da Frelimo mostravam o general português em atitudes ridículas, fazendo nascer a impressão de que os dirigentes da Frelimo sentiam um especial rancor ao estratega da operação «Nó Górdio», denominada pela Frelimo como «A Grande Ofensiva». Por isso perguntei a Samora Machel:
— E Kaúlza de Arriaga?... Consta que o vai convidar para as festas da Independência ...
Rui, agarrou-me amistosamente por um braço, e respondeu:
— O camarada diz isso em forma de anedota, mas olhe que ele foi um razoável colaborador da nossa luta. Quando actuava contra nós havia sempre processo de, com uma semana de antecedência, sabermos a sua estratégia. Geralmente era o «bocas» (Samora Machel referia-se a um avião munido com um alti-falante integrado na luta psicológica contra a Frelimo) ou a Imprensa portuguesa que nos alertavam. Nós sabíamos sempre quando ia ter lugar uma operação de vulto por parte do inimigo, e até a Grande Ofensiva nos encontrou precavidos. Porém, como estratega, era um grande general, era um inimigo à nossa altura. Admiro-o.
Samora Machel referia-se à humana actividade do general Kaúlza de Arriaga, que sempre evitou o sacrifício de inocentes. Deste modo tentou sempre — e essa justiça ninguém lhe pode negar — afastar das zonas de morte mulheres, crianças, velhos e quantos não apontavam armas à presença portuguesa em Moçambique. O «Grande Comandante», como era conhecido em Moçambique por militares e civis, fez uma guerra humana, o que por vezes permitiu à Frelimo prever uma «operação» pêlos preparos de segurança oferecidos à pacífica população civil. Mas a Frelimo sabia que nunca derrotaria o «Grande Comandante», e disfarçava os seus desaires inventando na sua propaganda hipotéticas vitórias. Nelas se incluem o ataque a Tete, com edifícios destruídos — pura mentira — e destruição de aviões na Base Aérea de Tete — outra indesmentível invenção.
Neste ataque, efectuado infantilmente com foguetes de 122 milímetros, a Base não foi atingida, as pistas não foram violadas, e tudo não passou de aparato. Dirigi-me para a Base Aérea ainda durante o ataque, desencadeado ao pôr do sol de um dia calmo. E como eu, muita gente civil. A actividade bélica da Frelimo apenas fora espectáculo agradável de ver, desperdício de munições, e prova de inépcia militar. Mesmo assim, os calendários vendidos pela Frelimo, depois desta ter derrotado Portugal, apresentavam o ataque como uma sua vitória, aviões destruídos, e outras afirmações destituídas de verdade. E o que mais espantava as gentes era o impudor com que essas mentiras eram vendidas às gentes sorridentes de Tete.
Esse motivo reforçara a minha curiosidade sobre a impressão de Samora Machel a respeito do general Kaúlza de Arriaga. Samora volta a sorrir e prossegue:
—
Admiro o general Kaúlza de Arriaga; agora o outro, o que o substituiu, esse era perigoso. Chegou a fazer infiltrar nas
nossas fileiras homens cegos e aleijados. Até paralíticos, veja
bem. Espiavam os nossos movimentos e informavam O inimigo. Esse era
perigoso. Chegou a
fazer penetrar traidores
no nosso seio...
Samora Machel referia-se ao general Bastos Machado, e os meus camaradas, que assistiam à conversa, estranhavam o atrevimento das minhas perguntas. Eu queria pôr nelas o ácido miraculoso que dissolvesse as páginas mais escondidas da personalidade daquele homem, de que se dizia ter a guerra dado a oportunidade de demonstrar os seus dons de organizador eficiente. Até num estado totalitário comunista é necessário tempo para construir um mito e impô-lo às massas, e eu queria, olhando a figura vulgar que tinha a meu lado, descobrir, por mim próprio, os motivos da sua meteórica ascensão e do seu aparente retumbante êxito político, tentando afastar por momentos, a certeza que já possuía de que ele era um homem dominado por outros cérebros. A impressão, porém, que me causava de já visto não me permitia tirar nenhuma conclusão.
Mário Ferro, da Redacção do «Notícias da Beira», toca-me no braço e dir-me-á a seguir:
— Se lhe dás trela nunca mais te larga.
Foi, porém, Nini Vieira, pessoa das minhas relações pessoais, mãe de Sérgio Vieira (um dos manobrados de Samora Machel, secretário da Presidência da Frelimo e mais tarde director do Gabinete da Presidência da República) que atraiu o Presidente Samora, afastando-o das perguntas que eu já engatilhara e estavam prestes a ser disparadas.
Como era de supor, nenhum jornal referiu as afirmações do discurso pronunciado em Tete — e que transcrevi do meu fiel gravador — nem a conversa que comigo teve e que foi ouvida e anotada por diversos jornalistas. Tudo isso não interessava ao Departamento de Informação e Propaganda nem à maioria dos meus colegas que representavam o «Notícias», o «Tempo» e o «Notícias da Beira», além da Imprensa tanzaniana, e que, acompanhando o Presidente na sua viagem de cerca de um mês, como enviados especiais, mais não haviam feito do que receber do D.I.P. parte das gravações censuradas, aquela parte considerada digna de merecer publicidade. E essa forma de actuação do D.I.P. obrigava a que os próprios discursos, os célebres improvisos de Samora Machel, não fossem radiodifundidos em directo, mas algum tempo depois, o tempo suficiente para receberam o bisturi dos escrupulosos e politizados funcionários do Departamento, encontrando-se entre estes o jornalista português Santos Martins.
O clima de terror alastrava, porém, por todo o Moçambique e tocava-me especialmente após ter sido publicada a carta da enfermeira Geraldina Francisca. Assim, tendo-me deslocado à Beira na quadra do Natal, uma quadra morta sem as alegrias do passado por ser condenada pelo comunismo internacional, e que apenas mereceu uma contrafeita tolerância de ponto aos funcionários cristãos, recebi, no meu regresso, a 30 de Dezembro, uma ordem para me apresentar com urgência no Comissariado Político do Partido.
Tratando-se de um dos últimos dias do ano protelei o meu julgamento, fazendo com que todas as chamadas telefónicas, e buscas pessoais, não me encontrassem. Apenas no dia 2 de Janeiro compareci no Comissariado Político, após mais uma vez ter tido conhecimento de que me convocavam com urgência ao Partido.
Cerca das quinze horas penetrei num gabinete acanhado, cheio de fumo de cigarros, de onde apenas sairia sete horas e meia depois, exausto e com o medo redobrado. Era a primeira sessão de crítica e auto-crítica onde entrava como intérprete, embora tivesse assistido a outras e soubesse com o que me era permitido contar.
Eu vira as máscaras de terror das vítimas sujeitas a esta espécie de sádicos julgamentos, e prometia a mim mesmo ser forte, baseando muitas esperanças na minha profissão, pois na verdade ainda nenhum jornalista havia sido intimidado. Mas eu sabia que os que poderiam ter vindo a sê-lo tinham inteligentemente virado as costas a Moçambique e, por outro lado, não me identificava com nenhum dos que ficaram e que era a escória do jornalismo moçambicano.
Eu tinha voluntariamente adquirido — ao querer permanecer em Moçambique após a Independência — um bilhete para o Inferno. O que teria de fazer, com todas as forças, era proporcionar-me o direito ao regresso, mesmo sabendo que um indivíduo isolado não vale grande coisa. Eu sabia que o terror é sempre igual seja qual for o pretexto, seja quem for que o exerça, e queria sair do teatro do medo prometendo a mim mesmo que tomaria as mais duras atitudes, que usaria as mais agressivas respostas, consciente de que a humildade é a menos inteligente arma que se pode levar para uma sessão de crítica e auto-crítica.
E foi pensando deste modo que me sentei diante dos meus julgadores.
11. EU, INIMIGO CAMUFLADO
Um trio formava o estranho tribunal. Chefiava o grupo o comissário político provincial, Eusébio Nenhum Fica, homem sem escrúpulos que merecera, devido às injustiças e aos crimes que cometera durante a guerra, a alcunha de Nenhum Fica, a qual orgulhosamente viera a adoptar como nome.
Dois dos restantes indivíduos apenas conhecia um, de nome Cândido, a quem apontavam façanhas de imoralidade. O outro, de palavras mansas, havia de manifestar-se durante o interrogatório como uma espécie de advogado do Diabo.
Eu estava ali, pois, para uma sessão de auto-crítica numa reunião do Comité Provincial da Frelimo, diante deles, na frente de uns miseráveis patifes que sustinham nas mãos o poder. Eu estava ali com a certeza de que ninguém me defenderia, de que não encontraria da parte deles uma só palavra de compreensão, e que o meu destino mais próximo seria a cadeia, a machamba, os maus tratos, as agressões, o inferno.
O mecanismo estava preparado e pode-se resumir desta fácil
maneira: Façamos o tipo falar e depois é a nossa vez. Competia-me a mim, se me
fosse possível, avariar uma das peças do maquinismo.
Foi o Cândido que abriu a sessão:
— O camarada está presente perante o Grupo Dinamizador Provincial da Fre-limo e este gabinete é o do Comissariado Político Provincial. O comissário político quer fazer-lhe umas perguntas ...
Olho a secretária e avisto o jornal dobrado, mostrando o motivo da acusação— a carta da Geraldina Francisca. Eles notam a direcção do meu olhar e escondem-no. Ficam-me fitando durante minutos sem nada dizerem, na intenção clara de me gelarem o sangue, de me aturdirem, forma clássica de tortura aprendida sabe-se lá aonde.
Eu sei que eles vêem em mim mais uma oportunidade de amesquinharem um português, e que isso lhes traz uma satisfação íntima, um prazer que me tentam ocultar, mas que eu espreito no olhar de cada um deles, na ânsia que não podem disfarçar em iniciarem a investida.
— Quais são as estruturas do jornal em Tete?
Perguntou-me o comissário Nenhum Fica e eu, ficando a interrogar-me sobre o que ele queria definir com estruturas, respondo descrevendo as funções do jornal, as pessoas que o servem, a distribuição dos trabalhos por cada um dos funcionários, elucidando-o na forma mais coerente possível, fugindo à possibilidade, creio que por eles desejada, de lhes permitir um duplo sentido a qualquer das minhas afirmações.
A atenção com que me escutam faz nascer em mim um sentimento de atracção que alterna com o de repulsa, e este impulso dirige-se efectivamente na direcção de Nenhum Fica, na minha frente.
— Anh, anh, camaradas. Estão a ouvir? Foi ele que mandou a carta da Geraldina para o jornal. Leia a carta a este camarada... a este senhor... — e sibila palavras em forma de bofetadas que eu não entendo.
Recordo-me de uma entrevista publicada, nessa mesma semana, na revista «Tempo», concedida por Nenhum Fica ao jornalista Santos Martins, onde ele afirmava, ao referir a actividade política na província de Tete, que haviam sido detectados diversos reaccionários e punidos severamente, uns por crime de sabotagem económica, outros por não aceitarem o tratamento de «camaradas». Era isso, então. Ao me agredir com o tratamento de senhor, Nenhum Fica estava a cimentar sobre mim a acusação de reaccionário. Penso nisto enquanto o Cândido faz esforços para ler sem erros a carta, que eu sei de cor, e espero a continuação do interrogatório.
Nenhum Fica pergunta com ênfase:
— Esta carta desta... mulher, passou-lhe pelas mãos? Mandou-a para o jornal, einh?...
Respondo afirmativamente, dizendo-lhe que apenas cumpri a minha obrigação profissional. Digo-lhe que a carta não me era dirigida pessoalmente mas ao jornal, não sendo eu mais do que uma peça da gigantesca máquina do «Notícias da Beira».
Interrompe-me, erguendo-se da secretária:
—
Este senhor é um reaccionário. Ë um inimigo do povo. Há três espécies de
inimigos, os directos, os indirectos e os camuflados ...
E prossegue durante cerca de uma hora, repetindo, palavra por palavra, um discurso de Samora Machel, publicado com destaque dias antes na Imprensa.
Já ouvira o Nenhum Fica repetir este discurso em duas sessões distintas: Uma, numa reunião do bairro a que eu pertencia, onde, sem qualquer motivo aparente, começou a falar dos inimigos directos, indirectos e camuflados. Recordo-me que dessa vez distraí o cérebro olhando o cabecear sonolento do meu vizinho Carreira, que aproximava a cabeça, cada vez mais perigosamente, do vão da janela que dava para a rua.
A segunda vez fora no átrio da Escola Técnica, quando se dirigia aos alunos, numa reunião convocada para que fossem analisados os motivos de uns distúrbios, causados por um grupo irreverente de estudantes.
Nessa ocasião a minha curiosidade fora atraída para uma conversa entre duas estudantes, bem mais interessante do que a divagação científica de Nenhum Fica. Agora nem uma palavra ele acrescentava ao seu improviso e repetia textualmente as palavras de Samora Machel como se fossem suas, como se fossem subtraídas, naquele momento e naquele lugar, aos seus pensamentos. Ele falava pela boca do chefe, do raciocínio do chefe, numa autêntica afirmativa de submissão.
Nenhum Fica, transpirado e cansado, acabou finalmente de redizer, de fio a pavio, tudo aquilo que no jornal havia ocupado duas páginas completas a oito colunas, e ainda uns restos de outras páginas ...
—
Por que não veio trazer aqui a carta antes de a mandar para a Beira? Por que
não denunciou a Geraldina Francisca como era seu dever? Esquece-se da linha de Ordem: Vigilância. Vigilância! ...
A pergunta ficou no ar, gritada, e ele olha-me agressivamente.
—
Por diversas razões —
respondo —. A primeira e a principal é existir na sede do «Notícias da Beira» uma Censura na
Redacção. Deste modo uma carta dirigida à Participação Popular é censurada. Se
os elementos do quadro da Redacção, que têm o apoio da Secção de Informação e
Propaganda da Província de Sofala, a acharam publicável, o que eu acho também,
sabiam o que faziam. Outro motivo é o facto de que silenciar uma injustiça é
cometer uma injustiça maior. O terceiro motivo, e que para mim é o que mais
importa, é o facto de eu não ser um delactor, mas um jornalista ao serviço do
povo...
Interrompeu-me, parecendo-me enfraquecido na sua cólera.
— Camarada Cândido, o que é isso de
delactor, ou coisa parecida?
— Parece-me que é a mesma coisa que denunciante! — elucida o Cândido.
— É isso mesmo — confirmo —. Era isso exactamente o que eu queria dizer.
—
Povo... Povo... — diz
Nenhum Fica —. Tu não és do povo. És um
burguês ... Tu és um intelectual! ...
— Nós não temos pressa. Ë ou não é, camaradas? Podemos estar aqui até de manhã, até resolvermos isto. Ele nem sequer é um ignorante... — e aponta-me com desdém.
O Cândido interrompe:
— Se lhe aparecesse na Redacção uma carta a dizer que o Comissário Político de Tete era um ladrão, que andava a passear num bom automóvel, como um burguês, enquanto o povo passa fome, o camarada publicava?
Percebendo a maligna intenção da pergunta respondi:
— Não me apareceu nenhuma carta com esse teor, pelo que está fora de propósito a pergunta. Não respondo.
— Oh camarada! — diz Nenhum Fica para o terceiro juiz — Escreva isso, sim? Escreva isso! ...
O outro procura papel, não o encontra, e vai buscá-lo a uma sala ao lado. Quando regressa já Nenhum Fica havia mudado de ideias:
— Não escreva, camarada. Essa coisa do Comissário Político ser ladrão, e de andar a passear de automóvel pode causar confusão. Ë ou não é?...
Concordam ambos e eu fico a pensar, mais uma vez, no Presidente Samora e nos seus É ou não é? que Nenhum Fica imita tão bem.
Qual seria a personalidade daquele homem raquítico, inculto, a quem ofereceram os poderes de um Comissariado Político, esses poderes ilimitados que manejam a liberdade de qualquer cidadão nacional ou estrangeiro?
Via-se que lhe entregaram uma cartilha a soletrar e que a decorara sem a compreender.
Nenhum Fica retorna a falar nos inimigos do povo, nos inimigos directos, indirectos e camuflados, e repete a parte do discurso que lhes é dirigida. Não o oiço e remexo-me na cadeira, nauseado com tamanha farsa.
A que conduziria aquela comédia?
O que me aconteceria após o discurso bisado daquele actor semi-consciente, semi-lider improvisado ao serviço de uma ideologia esquerdista trabalhada, reelaborada, que lhe fora injectada em doses maciças superiores à sua capacidade de entendimento?
Olho o relógio e penso que a São deveria estar aflita com a minha demora. São seis horas da tarde, e já haviam decorrido cerca de três horas desde que ali entrara, todas elas preenchidas com os discursos de Samora Machel recozinhados na boca de Nenhum Fica.
Mostro o meu desejo de telefonar para casa para dar umas instruções urgentes sobre o jornal. Autorizam-me mas sou acompanhado por um elemento da Frelimo, um homem ridículo, antigo comerciante dos arredores de Tete nos anos da guerra, e que, por ter alimentado os guerrilheiros nessa fase crítica do Partido — o mesmo que fazia aos soldados de Portugal — merecera o lugar de relações públicas do Comissariado Político, uma mistura de carcereiro para os criminosos, e de mesureiro para os patriotas. Um guerrilheiro armado também me acompanhou ao telefone num outro compartimento, e sinto, mesmo sem olhar, o cano da sua Kalashnicov apontado na minha direcção.
Informo a São, como disfarce, que preste atenção e grave um programa do Partido, que iria para o ar, como todos os dias, pelas 18,30 horas na voz do jornalista Santos Martins, e afirmo-lhe que estou no Comissariado Político, que não existem problemas, e que quando saísse seguiria directamente para casa ou lhe telefonaria.
Abandonei contente o compartimento de onde telefonara, pois tinha informado a família do lugar onde me encontrava.
Mal penetro no gabinete volto a ser interrogado por Nenhum Fica:
— O camarada... o senhor... acha que procedeu bem ao enviar a carta para o jornal?... Acha que prestou um bom serviço ao Partido e a Moçambique?... Ou, pelo contrário, fez o jogo do inimigo da Revolução Socialista?
— Cumpri apenas o meu dever — respondo—. Estas cartas destinadas à Participação Popular nem sempre passam pelas minhas mãos. Podem ser remetidas directamente pelo Correio, bastando apenas que o seu autor se identifique. A carta da enfermeira Geraldina passou por num, mas podia não ter passado. Era publicada na mesma.
Interrompeu-me:
— Estão a ver?... Ele está a... Como se diz Está a...
Quero ajudar o meu juiz mas receio que a minha interferência seja mal interpretada. A ajuda partiu do seu camarada Cândido:
— A divagar ...
— Isso mesmo. Sempre gostei muito desse termo. Divagar... Ele está a divagar, não é isso camaradas? Ë ou não é?...
Escreve a palavra divagar num bloco que lhe é posto sobre a secretária e usaria esse termo mais dezasseis vezes durante a reunião, olhando sempre para o bloco antes de o pronunciar.
— Camaradas — diz o Advogado do Diabo—. O camarada Passos parece que está nervoso. E falando para mini: Alguma vez ouviu falar que aqui batiam, amarravam ou prendiam? Responda com franqueza! — e sorriu-me piscando um olho.
Atribuo um preço à minha resposta. O que me valeria a mentira, se afirmasse que desconhecia as arbitrariedades de que muitos meus conhecidos foram vítimas, ali mesmo, no lugar onde eu me sentava, abandonando aquele gabinete repleto de sangue?
Lembro, só para mim, a agressão bárbara de que foi vítima José Manuel, um moço português empregado do Bar Pic-Nic. Por uma denúncia não confirmada, de uma mulher qualquer, que afirmara ser ele possuidor de armas, foram buscá-lo à sua residência. Mal abandonaram a zona mais povoada da cidade amarraram-no, por forma a que as cordas, apertadas com rancor, lhe dilacerassem as carnes. Colocaram-no sobre um camião, e para que ninguém se apercebesse da carga que a viatura transportava obrigaram-no a deitar-se sobre o chassis, ao mesmo tempo que os homens que cumpriam a horrível missão de captura colocavam os pés sobre o seu corpo.
No Partido — onde eu agora me encontrava — e como recepção, perguntaram aos seus captores quem era a vítima. A resposta foi curta:
— Não vêem que é um cão de um português?
Foi ouvido pelo mesmo trio e novamente agredido. Levaram-no para o Batalhão, nas proximidades do Aero Clube — a agremiação mais sofisticada da cidade — e todos os guerrilheiros, em número de dezenas, o pontapearam e agrediram, deixando-o bastante ferido.
Uma semana depois, e por não se provar a acusação, o José Manuel foi posto em liberdade.
Pediram-lhe desculpa. «Fora um erro» — disseram-lhe. Mas ele trazia nos ouvidos os enraivecidos insultos de que fora alvo, por ser português, e as cicatrizes dos maus tratos que recebera.
— Responda de qualquer modo! — diz o Advogado do Diabo, e eu já atribuirá o preço à minha resposta:
— Já ouvi... e vi marcas nos corpos de pessoas que caíram como eu nas vossas mãos. Fotografias e depoimentos gravados estão em lugar seguro, e serão vistos e ouvidos se eu desaparecer ou quando algo de anormal me aconteça.
Pareceu-me ser ódio, espanto, o que vejo no olhar de Nenhum Fica. Ele estava de tal modo seguro na pele de inquiridor que não desejava, nem a sua formação política lhe permitia, ver em mim mais do que uma massa informe, despersonalizada, esmagada ao peso da culpa e do medo.
— Tem então medo de ser preso? Não respondi.
— Fizeram-te uma pergunta! — empertiga-se Nenhum Fica.
— Ele está nervoso. Deixe-o lá, camarada! — interveio o Advogado do Diabo. Nenhum Fica rectifica-o:
— Não podemos ser comedidos com os inimigos do povo, especialmente com os inimigos camuflados. Esses estão no nosso seio e atiram-nos balas de açúcar, que ferem mais do que as balas dos inimigos directos — os soldados do exército colonialista que derrotámos. Parecem ser dos nossos e não são ...
E voltei a ouvir, tim-tim por tim-tim, as palavras do discurso de Samora Machel, sentindo que tudo aquilo era de mais para os meus nervos submetidos a tensão. Tornam a ler-me a carta da Geraldina Francisca, a fazer sobre ela reparos, e ordenam que fizesse a minha auto-crítica.
Respondo que mais nada posso acrescentar. Que cumpri o meu dever de jornalista. Que me era impossível proceder de outro modo. Que em idênticas circunstâncias voltaria a proceder assim ...
Sou interrompido:
— É uma ordem. A partir deste momento tudo o que escreveres terá de passar primeiro por este Comissariado. Ouviste? É uma ordem minha... Ë uma ordem do Comissário Político Nenhum Fica...
E iniciou um discurso:
— Escreva aí, camarada! ...
Pela primeira vez o Cândido pega na caneta e preparou-se para escrever numa folha de papel virgem:
— O jornalista Inácio de Passos... como é o nome todo dele, como é?
Dito-o para o papel. Ele prosseguiu:
—... é um reaccionário e um inimigo do povo. Provou-se que lhe foi possível evitar a publicação da carta da camarada Geraldina. Com a sua atitude... Está bem atitude, camaradas? ...
Há gestos de apoio.
—... com a sua atitude beneficiou os inimigos da Revolução. É um inimigo camuflado, mais perigoso do que os inimigos directos e indirectos. £ um desses inimigos que estão no nosso seio e que nos atiram balas de açúcar que ferem mais do que as balas dos inimigos directos. Camarada, escreva isso tudo. Ë muito importante... Parecem ser dos nossos e não são. Estão camuflados no nosso meio. Imitam os nossos gestos, as nossas atitudes... Ganha a batalha e conquistada a independência, total e completa...
Interrompeu-se:
— Está a escrever tudo, camarada Cândido? Está? ... O outro respondeu afirmativamente.
— ...aparece um novo inimigo. O inimigo que ontem nos atacava de uma forma, ataca-nos hoje de outra, procurando destruir-nos através dos seus agentes. Quem são esses agentes?...
Vejo que a pergunta não me é dirigida e o Cândido e o Advogado do Diabo olham um para o outro. Nenhum Fica levanta-se, querendo parecer imponente, e, dirigindo-se na minha direcção mas olhando além do meu corpo, como se falasse para uma multidão de ouvintes entusiasmados pela sua dialéctica, terminou, de braço erguido e punho fechado:
— É a burguesia! ... É a burguesia! ... Ê ou não é? ...
Dão-me a liberdade depois da interminável lenga-lenga, sublinhando Nenhum Fica que por ora estava livre mas que não me era permitido abandonar a cidade.
Reencontro a rua e respiro com sofreguidão o ar cheio de perfumes da noite. Apetece-me beber um copo de cerveja em qualquer lado, como se uma febre interior me queimasse as entranhas. Dirijo-me ao Bar Pic-Nic, mas já se encontra encerrado. Eu perdera a noção do tempo. Pergunto as horas: Passa das dez e meia da noite. Haviam decorrido cerca de oito horas desde que me sentara no gabinete do Comissário Político da província de Tete.
A cidade parece-me menos feia. O ar quente da noite é absorvido com prazer pelos meus pulmões saturados do fumo que receberam no gabinete acanhado de onde sairá.
Entro num café, ainda aberto, e tomo uma «bica» e um copo de água, quando o corpo me pede cerveja. Mas o Partido decretara a proibição de venda de bebidas alcoólicas depois das vinte e uma horas. Sorrio para toda a gente, sentindo que todos conheciam a minha história como se ela pudesse ser lida no meu rosto. Repito o café com prazer, com deleite, com sofreguidão.
Uma criança da idade do meu filho passa junto de mim, aproxima-se da minha mesa e acaricia-me com o olhar. Sinto que a minha mão é atraída para os seus cabelos loiros e evito o gesto, começando a morder dentro de mini uma saudade imensa da família.
Saio e caminho apressado pelas ruas sem gente.
Uma neblina de poeira cresce do solo, das ruas esburacadas e sujas feridas pelas obras de saneamento. Fica pairando junto aos candeeiros que despejam para as artérias uma luz frouxa e indecisa. Tudo quanto me irritava tem outro sabor, outra cor, e martelo, enquanto caminho, até cansar o cérebro, as palavras ouvidas pouco antes.
Eu tivera sorte?
O comportamento dos outros acusados, dos que me antecederam e dos que me seguiriam, seria idêntico ao meu?
As atitudes dos meus inquiridores, as afirmações ridículas do Nenhum Fica imitando os gestos, a voz e as palavras de Samora Machel, a importância sofisticada do Cândido e as suas intervenções maliciosas, as contradições do Advogado do Diabo, ter-me-iam arrancado gargalhadas se eles não fossem tão perigosos e o poder não estivesse nas suas mãos.
Mas agora era-me permitido rir e soltei uma gargalhada que ninguém ouviu, e que a noite me devolveu inteira.
12. NUM CLIMA DE TERROR
O clima de terror propagava-se por todo o país.
Duas sobreviventes do campo de torturas de Luatize haviam regressado a Tete, foram hospitalizadas e eu queria ouvi-las.
Sabia que me vigiavam, que trazia na minha sombra um ou mais bufos escravos à vigilância ideológica, prontos a me lançarem definitivamente às feras. Diversas vezes verificara que os mesmos rostos me fitavam nos mais diversos lugares e a horas diferentes. Mesmo assim, eu queria ouvi-las sem me comprometer e sem lhes arranjar, a elas, mais sofrimentos.
Entrevistei-as com precaução. Guardei a bom recato os apontamentos coligidos, pois toda a cidade estava a ser vasculhada de cima abaixo pêlos homens do Partido. Eles entravam nas residências, estivessem nelas os moradores ou não, e algumas mulheres foram obrigadas a abandonarem as casas de banho, apenas envoltas em toalhas, para permitirem que toda a casa fosse revistada sem darem tempo a que escondessem qualquer coisa. E eu temia que a minha residência sofresse igual sorte.
Guardava, num recanto qualquer da despensa,
os meus camuflados, as fardas que envergara inúmeras vezes nas reportagens que
efectuei ao teatro das operações de guerra, e sabia que bastaria esse pequeno
pormenor para que me remetessem, por longa temporada, para os calabouços.
Possuía vasta documentação, acumulada no decorrer de anos, e centenas de
fotografias amontoavam-se, também, na despensa.
Encarreguei a São de destruir tudo o que me comprometesse. Com a colaboração * de um moleque de confiança, há muitos anos ao serviço do meu lar, foi aberta uma cova no quintal — a que o meu filho de cinco anos chamou latrina — e os objectos comprometedores foram atirados para ela e regados com petróleo.
Em poucos minutos, importantes pedaços da minha carreira profissional, arquivados com entusiasmo, foram pasto das chamas.
A São atirara também, ingenuamente, para o braseiro outros objectos inúteis — lâmpadas velhas, frascos de «spray», etc., que encontrara na despensa, motivando um inofensivo mas barulhento tiroteio.
Pode parecer ridícula esta descrição mas ela é necessária para retratar o clima de terror que se vivia, pois as prisões sem motivo sucediam-se indiscriminadamente. E essas ocorrências, que nunca tinham honras de Imprensa, eram contadas entre amigos aumentando o cenário onde o pânico se expandia em campo propício.
Um mestiço de Moatize, de nome Áfrico, afirmara junto de uma roda de amigos que não acreditava na Imprensa moçambicana e dera um exemplo:
— Vocês já viram que os jornais só falam do M.P.L.A., dando a impressão de que em Angola não existem uma U.N.I.T.A. e uma F.N.L.A.?... Já repararam que se eles tivessem o povo a seu lado não necessitavam dos cubanos? ...
Foi preso e colocado incomunicável numa sela. À noite sua mulher caminhava na rua transportando numa marmita o jantar do detido, quando foi abordada por) um amigo a quem contou a detenção do marido.
Não se abriu em pormenores e o amigo afirmou-lhe que daí a pouco levaria um pacote de cigarros à prisão.
Esse indivíduo, de nome Loures, levando ao prisioneiro um pacote de cigarros e uma cerveja entra na área da prisão mas só a abandona quatro dias depois. Todo o tempo passou-o descalço a «capinar» uma vasta área, cumulado constantemente com ofensas e insultos. E não foi agredido por ser proprietário de um bar onde os comandantes guerrilheiros se embriagam, liquidando as contas com «vales» que nunca satisfazem em dinheiro.
Tudo isto se sabia, e quantos chegavam do Sul transportavam consigo muito mais para contar na roda de amigos, ocorrências que acabavam por percorrer todos os ouvidos dos assustados portugueses. Por outro lado, proliferavam os assaltos e o Corpo de Polícia de Moçambique olhava indiferente quem se atrevia a participar o roubo de que fora vítima.
Os alvos dos larápios, como é óbvio, eram as residências portuguesas, os bares, os restaurantes, os estabelecimentos comerciais, ainda propriedade de lusitanos. A estes assaltos, de que nunca eram descobertos os autores, não escaparam em Tete a Recebedoria de Finanças, O Banco de Moçambique, e o Instituto de Crédito, mostrando o à vontade com que as quadrilhas actuavam.
As mulheres temiam sair à rua para não chocarem com esbirros da Frelimo, e receavam ficar em casa para não serem agredidas pelos larápios. A cidade rés pirava medo e via-se na forma de falar, nos gestos, nas reacções de todos os habitantes, que se estava às portas do pânico.
As rusgas prosseguiam não sendo poupada nenhuma residência e os guerrilheiros apropriavam-se de diversos objectos sem passarem recibo. Os bens dos portugueses estavam a saque, e eram os agentes fardados da Frelimo que retiravam aos legítimos proprietários, ensimesmados cada vez mais nos seus dramas individuais, na sua frente, binóculos, armas de pressão de ar, calçado civil tipo militar, e muitas coisas mais.
Um técnico português ao serviço da Câmara Municipal de Tete, especializado na colocação de asfaltos, dirigia os trabalhos numa das artérias mais movimentadas da cidade, calçando botas que havia adquirido dias antes num estabelecimento comercial. Uma força da Frelimo considerou que as botas se assemelhavam ao calçado militar e obrigou-o a descalçar-se na via pública e a acompanhar descalço os agentes da autoridade.
Foi o presidente da Câmara Municipal, um negro de nome Corda, que, com a sua influência, o retirou do calabouço. Esse técnico era um dos dois únicos da especialidade ao serviço de Moçambique, e regressou a Portugal.
As mulheres portuguesas sofriam, porém, maiores vexames, fossem elas quem fossem. Uma saía de casa na companhia da filha para fazer compras quando, ainda no passeio da sua residência, foi abordada por dois comandantes da Frelimo que abandonavam um jipe. Este foi o diálogo testemunhado por outros portugueses:
— És
casada? Mostra os documentos!...
A
senhora mostrou.
— Não tens cara de casada. Tens cara de prostituta. Onde está o teu marido?
— Está a trabalhar! — respondeu pacientemente a senhora.
— Vamos para dentro de tua casa a ver se ele está lá. Tu praticas prostituição. A mim não me enganas. É ou não é?...
A senhora convenceu-os pacientemente de que estavam equivocados e nesse mesmo dia o marido, importante industrial de transportes rodoviários, marcou as passagens da mulher e da filha para Portugal. Ele próprio fugiria dias depois, conseguindo, depois de viver uma rocambolesca aventura, passar parte das suas viaturas pesadas para fora das fronteiras moçambicanas.
Estas perseguições tiveram, porém, motivos cómicos que causaram hilariedade geral quando foram conhecidos, e que os portugueses iam guardando dentro de si como ligeiras compensações de desforra:
Na Beira, as rusgas — as primeiras, realizadas em Outubro — foram efectuadas por Brigadas de Vigilância nomeadas pêlos Grupos Dinamizadores dos bairros, que acompanharam elementos armados da Frelimo. Para que não fossem praticadas injustiças as brigadas foram espalhadas por bairros opostos àqueles onde viviam.
Deste modo, os elementos do Esturro
actuavam nas Palmeiras, os das Palmeiras na
Manga, os da Manga no Estoril, os do Estoril em Matacuane, e assim acontecendo em todos os bairros e células da
cidade.
Findo o trabalho os vigilantes regressavam às suas casas, onde alguns deles encontravam as mulheres. Ouviam dos moleques a explicação:
— A senhora foi presa patrão. A Frelimo disse que era prostituta...
Um caso de flagrante desumanidade ocorreu também na Beira: Um casal português dirigiu-se à Pastelaria Riviera para adquirir bolos. Eram nove horas da noite. O automóvel que os transportou estacionou a poucos metros do estabelecimento e deixaram no seu interior, dormindo, um filho de cerca de dois anos.
O casal foi abordado no interior da pastelaria pêlos componentes de uma rusga. Disseram-lhes que os documentos se encontravam na viatura e que os iriam buscar. Eram meia dúzia de passos mas não foram autorizados.
Levaram-nos à força.
Cerca da meia noite a criança chorava no interior do automóvel estacionado. Juntaram-se populares que se dirigiram, em grupo, à residência do Governador.
Contaram-lhe o que se estava a passar, e a influência do maior dirigente de Sofala concedeu a liberdade ao casal que ia ser remetido para um campo de trabalho, ambos acusados de corruptos. A mulher baixou ao Hospital em estado de choque.
A Imprensa relatou, disfarçadamente:
«O comissário da província de Sofala, camarada Ornar Juma, detectou durante uma visita que efectuou a um Campo de Reabilitação para homens, na região da Gorongosa, a presença de cerca de uma dúzia de prisioneiras, para ali conduzidas por engano...»
As mulheres foram detectadas cerca de dois meses depois de terem sido capturadas. Entre elas encontrava-se uma rapariga de catorze anos, ao dispor das sevícias dos bárbaros carcereiros e dos seus camaradas de cativeiro.
Pode-se, depois das perseguições enumeradas, e de outras de maior gravidade que revelarei ainda, procurar qualquer justificação, além da evasiva de um reino de terror, para o êxodo dos portugueses?
Pode-se entender as opiniões de alguns governantes portugueses, que, por obrigação dos cargos que ocupam, deveriam estar mais bem informados do que demonstram ao falarem para a Imprensa comprometida?
Pode dizer-se Amen à teoria do almirante Rosa Coutinho, que não satisfeito com a sua vergonhosa actividade em Angola, tenta justificar — e tentará mesmo? — a saída dos técnicos portugueses em actos de pura inconsciência?
Vejamos o que diz o senhor almirante:
«Eu tive a noção, embora não oficial, de que bastantes técnicos portugueses actualmente a trabalhar em Moçambique, estão de mala aviada para regressar a Portugal. Lamento e considero que isso é exactamente consequência do clima de desinformação que se gerou. Se num ou noutro caso representa uma inadaptalidade de classe à nova sociedade, na maior parte dos casos representa uma incompreensão e até uma consequência de desorientação e falta de esclarecimento.»
Claro que estas afirmações de Rosa Coutinho, produzidas para a revista moçambicana «Tempo», e que caíram muito mal entre os portugueses residentes em Moçambique, são bem o testemunho da sua desorientação e falta de esclarecimento, devido a se ter entregue, de inteligência e alma ao acorrentamento da ditadura comunista. Deve-se ainda — e nisso dou-lhe razão — à desinformação portuguesa e moçambicana, que ele na referida entrevista critica. Mas preocupou-se o almirante em descortinar as causas dessa voluntária desinformação nos atoleiros políticos onde penetrou após — e antes? — o 25 de Abril?
Vou dar um exemplo do motivo real do abandono de técnicos, como prova do engano do senhor almirante:
O Partido estipulou o dia 25 de Setembro como data em que o povo voluntariamente abriria, em cada localidade, uma machamba colectiva. Os portugueses foram obrigados a destroncar, a capinar, a cavar grandes espaços de terreno virgem, quando as directrizes do Partido haviam falado em voluntariado.
Os técnicos da Companhia Carbonífera de Moçambique, sediada em Moatize, negaram-se a seguir para a machamba quando, pela madrugada, os foram arrancar às camas.
A maioria destes técnicos é portuguesa, sendo os restantes de origem belga.
A recusa foi colectiva.
Foram levados à força por guerrilheiros da Frelimo, armados de kalashnicov e simonov. Caminharam a pé com as armas apontadas. E cavaram. E desbravaram a terra. E trabalharam numa machamba que apenas será símbolo de amesquinhamento de estrangeiros, de manifestação de puro racismo, pois nada produzirá por falta de continuidade e técnica.
Ao outro dia todos pediram demissão da Companhia para regressarem aos seus países.
Foram-lhes prometidas condições especiais, entre elas a transferência de cinquenta por cento dos vencimentos para as suas pátrias, e negaram-se, mesmo assim, a continuar em Moçambique.
Foram enviados ministros, secretários do Governo e todos quiseram saber os motivos do abandono. E eu ouvi as respostas dos técnicos portugueses. Eles foram sinceros e concisos ao dizerem a verdade:
— Não estavam na disposição de serem amesquinhados pêlos homens da Frelimo, pêlos dirigentes de um país onde não mais queriam viver.
Chegará esta justificação para minorar a desinformação do senhor almirante?
13. NENHUM FICA
E O JORNALISTA REACCIONÁRIO
Eu temia a cada momento a prisão.
A ordem para não abandonar a cidade era para mim a certeza de novas represálias.
Abafava os meus receios e ia acumulando,
consciente e metodicamente, os escândalos e as injustiças de que o povo
português ia sendo alvo.
Muitas vítimas vinham voluntariamente ter comigo e relatavam-me as injustiças praticadas pela Frelimo. Todos estes homens estavam ligados entre si e se apoiavam. O terror tinha detonado.
Sob uma roupagem imediatista a Frelimo apregoava a sua protecção aos portugueses e a sua voz chegava ao Governo de Portugal semi-comunista. Este, dominando a parte principal da comunicação social levava ao povo português imagens deturpadas do sofrer dos portugueses, forçando-o a não compreender, e a condenar, a leva de retornados que desembarcavam em Lisboa.
Mas em Moçambique, as perseguições prosseguiam:
Um homem ainda jovem, de nome Silva, técnico de uma empresa empreiteira de estradas, relata-me após abandonar o Hospital, onde permaneceu durante doze dias, depois de sofrer as maiores privações num imundo cárcere:
— Fui preso por ter mandado vir dinheiro de Portugal para a minha passagem de regresso.
E entra em pormenores:
— Eu antes de me empregar na S.C.P.E.L. trabalhei como técnico em Cabora Bassa. Dali transferia parte dos meus vencimentos para Portugal, legalmente. Ao me ver sem emprego pedi para que me enviassem um cheque de Lisboa. Aguardei inutilmente uns dias, e depois fui preso. A princípio desconhecia o motivo da minha captura. Por mais que perguntasse ninguém me queria responder.
Prossegue, como se revivesse cada uma das imagens que descreve e que gravará para sempre:
— Davam-me uma refeição por dia e era composta de uma mixórdia tipo sopa, feita à base de farinha de milho apodrecida. Dormia no solo sobre o cimento húmido e não me deram o mais pequeno cobertor ou trapo para me embrulhar, sentindo durante a noite os membros enregelarem.
Levantava-me e passeava na cela, dormindo apenas em curtos intervalos. Mesmo assim o contacto com o solo, durante os catorze dias que ali estive, a fraqueza e os maus tratos, enfraqueceram-me. Já não movimentava as pernas, e uma forte dor nos rins não me permitia respirar sem gemer. O meu estado de exaustão levou os carcereiros a temerem pela minha vida e fui hospitalizado.
Estive a soro. As enfermeiras foram incansáveis e, alimentando-me de um restaurante a crédito, recuperei parte da saúde. Mas não volto a ser o mesmo homem.
Pergunto-lhe o motivo por que o soltaram e se justificaram de algum modo a captura. Respondeu-me:
— Fui ouvido pela P.I.C. quando me encontrava no Hospital. Aquela polícia reconheceu que eu não cometera crime algum, pois a minha atitude não podia ser considerada como tentativa de sabotagem económica. Pelo contrário, eu mandara vir para Moçambique divisas estrangeiras. O resto sabe como é: Pediram-me desculpa e entregaram-me o cheque que haviam apreendido. Não sei se desconhece que toda a correspondência vinda para portugueses é violada... Eles disseram lá isso e eu ouvi...
A meados de Janeiro, cerca de quinze dias após a sessão de crítica a que fora submetido, sou abordado por um amigo:
— Ouviste a Rádio hoje? Chamam-te tudo. É melhor fugires porque vais ser preso. Pega na mulher e no filho e põe-te a andar...
— O que diziam? — interrogo.
— Tanta coisa. Chamavam-te inimigo do povo, jornalista reaccionário, e acabavam por dizer que ias ser entregue às altas estruturas do Partido. Sabes o que isso significa? Ou a prisão ou o vinte e quatro vinte! — uma interpretação generalizada entre os portugueses do Decreto que expulsa o estrangeiro em 24 horas, permitindo-lhe que transporte 20 quilos de bagagem.
Entro numa livraria de que sou cliente habitual e o proprietário olha-me com espanto e chama-me em particular:
— Você ainda aí anda? Porque não foge? ... Passe a fronteira para o Malawi, homem, antes que seja tarde. Você não ouviu o que eles disseram na Rádio?
E resume-me quanto ouviu da emissão das onze e trinta horas, uma emissão do Departamento de Informação e Propaganda do Partido.
Regresso a casa. Nada digo à São, e, após o almoço vou para o quarto.
Adormeço depois de lutar durante mais de uma hora com maus pensamentos. Necessito de dormir, repito a mini próprio, habituando-me à ideia da prisão, às noites de insónia* que me esperariam, ao solo frio de cimento do cárcere, às pancadas, à ordem de expulsão.
À tarde saio e dirijo-me a um Bar. Bebo um uisque e adquiro quatro pacotes de cigarros da minha marca favorita. Espreito os olhares de espanto dos frequentadores habituais, a maioria a ocupar lugares de gerência no comércio da cidade. Tomo lugar no grupo de companheiros do costume e, por fim, são eles que não aguentam a tensão nervosa e me interrogam:
— Mas tu não ouviste a Rádio?...
Respondo negativamente e afirmo que ouvirei o programa às seis e meia.
— Como sabes que irão repetir? — pergunta-me um bancário com as malas feitas para embarcar para Portugal.
— Sou tão importante para eles que um programa radiofónico é pouco. Vocês vão ver como o Nenhum Fica não se contenta apenas com uma emissão! — afirmo em ar de chalaça.
Um deles vai a casa e regressa com um receptor portátil. Não falámos mais no assunto até à hora da emissão do Programa do Partido, mas eu sinto dentro de mini os nervos a fervilharem como água em ebolição.
Emborco uisque após uisque, e, ao contrário dos outros princípios de noite, a mesa onde me sento é silenciosa, como se todos estivéssemos obsecados pelo mesmo pensamento.
Tenho a satisfação
amarga, mesmo assim consoladora, de sentir a amizade daqueles homens, de sentir o seu protestar
íntimo contra o regime de pavor que nos unia, numa irmandade perseguida pelo
comunismo machelista e todas as suas forças unidas para atacar a civilização e
a substituir pela barbárie.
O indicativo do Programa aumenta o nosso silêncio. Trata-se do Programa Oficial da Frelimo.
Nenhum ruído de discussão em todo o Bar, nem o bater de copos nas mesas, nem o som característico e quase eterno do Frank — o dono do estabelecimento — a lavar os copos em muito detergente. Um silêncio pesado que se pode cortar à faca e que aumenta o som do indicativo do Programa.
É iniciado com um Comunicado Oficial do Comissário Político da Província. Mas não é ele que o lê, nem talvez o tivesse redigido. Também não é o jornalista Santos Martins — justiça lhe seja feita — embora a prosa possa ter saído — não afirmo — da sua máquina de escrever. É, porém, suspeita, a sua invulgar ausência do programa.
Começa por tecer um demorado comentário, onde se afirma que no momento revolucionário que o país vive, os reaccionários manifestam-se das maneiras mais diversas com vista a travar os passos à gloriosa revolução nacional. E um caso flagrante era a posição assumida pelo jornalista Inácio de Passos, um comprovado inimigo do povo, que, lutando contra a Revolução, permitiu que o «Notícias da Beira» publicasse uma carta de uma declarada prostituta de nome Geraldina Francisca. Esse perigoso jornalista não merecia o perdão popular, e fora a vigilância do moçambicano que detectara os seus crimes contra Moçambique.
Iniciava a seguir uma espécie de interrogatório, com perguntas e respostas, lidas umas e outras pelo mesmo locutor:
«Foi perguntado ao jornalista Inácio de Passos se com a sua atitude serviu o povo moçambicano ou o inimigo e respondeu: Servi o inimigo e lamento. Foi uma precipitação. Não era minha intenção prejudicar Moçambique. Estou muito arrependido da minha atitude.
Interrogado se sabia o número de pessoas que teria lido a carta da prostituta Geraldina Francisca e a repercussão internacional de tamanho crime por ele cometido, disse: Não posso imaginar o número de leitores, mas infelizmente são muitos. O meu crime é muito grande e deve-se apenas a uma precipitação.»
Sinto-me corar de raiva ao ouvir tão ingénuo amontoado de mentiras. O próprio locutor parece-me envergonhado do que diz. Tudo aquilo me repugna, a ponto de sentir vir-me das profundezas do estômago um formigueiro que me traz saliva à boca.
Não me domino e afirmo:
— Canalhas. Mentirosos sem vergonha!...
Os meus companheiros aconselham-me calma e continuo a ouvir durante mais quinze minutos, as mais mal intencionadas afirmações. Poderia eu voltar a acreditar na Frelimo?
— Não era Nenhum Fica um dos elementos das estruturas políticas do Partido, sendo o Partido, portanto, o responsável pelas suas atitudes políticas?
Como por medida, era-me oferecida dezenas de vezes a acusação de reaccionário, termo que, subterrado sob a avalanche da imensa terminologia marxista, aparecia agora constantemente nos comunicados oficiais. Aguardei mais uma vez a acusação que não se fez esperar:
«O jornalista Inácio de Passos, perigoso reaccionário, disse depois: Lamento que os meus colegas da Redacção, na Beira, tenham permitido a publicação da carta que eu enviei precipitadamente. Sou responsável por ter causado um grande prejuízo a Moçambique e ao seu povo.»
O comunicado estendia-se ainda por mais afirmações emporcalhadas, terminando:
«Este jornalista reaccionário e inimigo do povo vai ser entregue às altas estruturas do Partido para futuros procedimentos. Este comunicado é assinado pelo Comissário Provincial Eusébio Nenhum Fica.»
Seguiu-se o Hino da Frelimo e eu sinto que todo o meu ódio, acumulado por meses de perseguições, petrifica-se e apela por exteriorização. Mas é passageiro este meu estado de espírito, tão passageiro que começo a rir, espantando todos os que me rodeiam.
— Vai-te embora Passos. Passa a fronteira enquanto é tempo! — dizem-me os companheiros e eu respondo com uma gargalhada. Não era aquele comunicado uma demonstração de fraqueza do Partido, de medo, de falta de alicerces ideológicos?
O que tinha a temer, então? A consciência deste facto estimula-me.
A São aproxima-se correndo e faz aflitivos apelos com gestos nervosos para a esplanada onde me encontro. Peco-lhe calma e acrescento:
— Eu ouvi a Rádio. Estive a ouvir agora mesmo.
O meu aparente estado de espírito acalma-a e conta-me que uns vizinhos a foram chamar a casa mal o programa começara a ser radiodifundido. Eles, alarmados, cuidaram que eu me encontrava na prisão.
A São ouvira o programa inteiro e correra à minha procura.
Ao outro dia de manhã diversas pessoas das minhas relações procuram-me no Corpo de Polícia, no Partido, nos calabouços. Eu continuava, porém, em liberdade.
Não fica por aqui a perseguição de Nenhum Fica, que deseja mostrar aos seus patrões um verdadeiro reaccionário a quem não seja necessário pedir desculpa ao conceder a liberdade, e envia um relatório, idêntico ao que fora radiodifundido, a todos os jornais do país. Nenhum o publica, mas o «Notícias da Beira», por instruções de José Quatorze, depois de se aconselhar com o Heleodoro Baptista, reenvia-o para o Ministério da Informação e Propaganda, iniciando-se, deste modo, uma acção inquiridora que, contra todos os prognósticos, apearia Nenhum Fica do pedestal de areia onde construirá o seu trono.
O Ministério faz um inquérito e Nenhum Fica desdiz-se, atrapalha-se, entra em pânico. Afirma primeiro que as declarações radiodifundidas foram prestadas pelo jornalista Inácio de Passos, declarando a seguir, perante elementos indesmentíveis, que tudo fora por si forjado. Tenta desesperadamente salvar a honra do seu convento e oferece a liberdade a Geraldina Francisca — já com o inquérito em curso — e coloca-a numa posição de destaque na Organização da Mulher Moçambicana, organismo feminino de grande influência política.
As mulheres protestam. Recentemente emancipadas, sentem-se senhoras da situação e exigem uma sessão de esclarecimento, onde Nenhum Fica acaba por ser forçado a fazer auto-crítica.
Nessa reunião, a que não assisto, sou defendido por mulheres que não conheço, pelas eternas defensoras do seu sexo que se viam na contingência de se colocar ao lado do jornalista que facultara a defesa de uma delas. E falam das que se encontram prisioneiras, dos atropelos dirigidos pelo estranho código de moral de Nenhum Fica.
Nenhum Fica sai da reunião depois de confessar as suas atitudes reaccionárias e prepotentes, ao mesmo tempo que é descoberto, perante o espanto geral, que o Comissariado Político de Tete, sob a sua orientação, era um antro de prostituição, e que grande número das camaradas suas colaboradoras se encontravam grávidas.
Uma das mulheres dizia-me dias depois:
— Veja lá o desplante. Um homem tão feio, tão ridículo e raquítico! ...
Nenhum Fica foi destituído das suas funções e enviado para o Bene-Tembué como militante a reabilitar, e os seus camaradas o Cândido e o Advogado do Diabo foram saneados. Parecia estar encerrado um capítulo da minha carreira que, num romance qualquer, seria denominado «Medo».