PRIMEIRA  PARTE

OS «PRAVDAS» DE MOÇAMBIQUE

(prólogo à reportagem que ides ler)

 

1.     UMA   REDACÇÃO  EM   EFERVESCÊNCIA

O clima emocional de quantos se encontravam na Redacção do «Notícias da Beira» era caldeira prestes a estoirar.

Estava-se na noite de 7 de Setembro de 1974. Eu, que então chefiava uma delegação do jornal em Tete, próximo da guerra e de Cabora Bassa, viera, em visita particular, à sede. Chegara na véspera, num dia de muito sol, de calmaria absoluta. Entretivera-me, logo que pusera os pés na cidade, num restaurante batido pela brisa do Indico, na companhia de camarões grelhados, cerveja fresca, mulher e filho.

A cidade, que percorreria depois do anoitecer, era a cidade que sempre conhecera, com os seus coloridos «néons» e os cafés repletos, viva àquela hora. Os restaurantes mostravam o que de melhor, mais atraente e caro, poderia satisfazer o gosto dos turistas rodesianos. Automóveis corriam no asfalto para um destino qualquer, uns mais apressados que outros. Nos cafés os homens falavam do Acordo de Lusaka, que seria assinado no dia seguinte entre a Frente de Libertação de Moçambique e Portugal.

Pela Colónia apenas um homem aporia o seu nome no documento — Samora Machel — tornando mais fácil e menos extensiva a responsabilidade do seu não cum­primento. Por Portugal o peso era dividido por oito homens, uns conhecidos outros saídos do anonimato com o 25 de Abril. Eram ministros com e sem pasta; conse­lheiros de Estado; um membro português do Governo Provisório de Moçambique; e oficiais das Forças Armadas de Portugal. Os seus nomes andavam de boca em boca, tanto os jornais neles haviam falado nos últimos dias: Melo Antunes, Mário Soares, Almeida Santos, conhecido ex-causídico de Lourenço Marques, Vítor Crespo, Antero Sobral, Nuno Lousada, Almeida e Costa e Casanova Ferreira.

         Todos os que, nos cafés, falavam do Acordo denunciavam medo e incerteza em quanto diziam. Que se podia saber então? Que o Acordo da Independência de um país, que mais interessava a moçambicanos que a portugueses, ia ser assinado numa cidade estrangeira, sem que o povo moçambicano fosse consultado. Ë pouco provável que alguém, nesta noite de incerteza, tivesse podido reagir de outro modo. Sabia-se, pela História e pelos exemplos africanos, que seria em vão que um país economicamente débil e com grande parte da população por alfabetizar, procuraria garantias duráveis de liberdade e de independência. A que novo senhor iria servir Moçambique após dez anos de desgastante luta com Portugal? Não se tornaria Moçambique o rastilho de um conflito internacional por ordem de Moscovo (o capitalista da guerra de libertação moçambicana) por forma a ser silenciada qualquer voz discordante à penetração comunista na África Austral?

Eu tinha as minhas ideias próprias sobre o problema pois sou contra todas as formas de agressão, contra todas as guerras, contra todas as ocupações, contra todas as interferências de um país em qualquer outro. Sou contra todas as guerras por convicção. Entendo, sobrepondo a todas as ideologias políticas, que os con­flitos entre países não devem ser resolvidos através da guerra, através da utilização da força ou da ameaça pela força. E talvez por eu pensar assim, agora, um dia volvido sobre a minha chegada, o clima emocional dos meus colegas na Redacção, nesta noite de 7 de Setembro de 1974, não me contagia.

— O que querem os tipos?... A coisa está mais do que resolvida e o Acordo assinado! ... O que desejam esses loucos agora?... Mais sangue? ... — estribilha, pela terceira ou quarta vez, o Heleodoro Baptista, um redactor.

A Redacção estava superlotada. Duas mulheres, a D. Lídia, tradutora e chefe da secção de Estrangeiros, e a Odete Carreio, uma repórter; quase a totalidade do quadro redactorial masculino: O Heleodoro Baptista, um mestiço da Zambézia, espaIhador de propagandas comunistas de duvidosa sinceridade ideológica; o Jorge Figuei­redo Jorge, português maoista; o Armindo de Sousa, negro zambeziano; o José Rui Cunha, repórter sem política; o Castro Lobo, comunista e militante da Frelimo, mais tarde um dos chefões da Polícia de Investigação Criminal (P.I.C.) em Quelimane, e autor da maioria das perseguições e assassinatos de que foram vítimas bons portugueses; eu, uma visita apenas; a minha mulher; e a totalidade do pessoal das oficinas e das diversas secções do jornal, em funcionamento àquela hora, todos atraídos pelo receptor que não deixava de nos atirar frases excitadas. No outro lado estava a voz da «Rádio Moçambique Livre», emissão fantasma de um grupo de homens e de mulheres que, horas antes, havia tomado de assalto os estúdios do Rádio Clube de Moçambique.

— Vão atacar a Redacção!... não sei quem afirmou, ao tempo que buzina-delas de automóveis penetravam pêlos buracos vazios, que serviram para acomodar os aparelhos de ar condicionado.

É preciso lembrar que este grupo de jornalistas, durante muito tempo privado de qualquer opinião política, aproveitou as «perspectivas» criadas com o 25 de Abril, e, numa brusca inversão, saneou a administração do jornal, passando a empresa a ser administrada por uma comissão de trabalhadores. Entrara, deste modo, a «liber­dade» no jornal, saudada com orgulho por todos, e que se mostrava, flagrante, nos bonecos, gatafunhos e dizeres libertinos, que se espalhavam pelas paredes sujas da Redacção. Viera, na peugada da liberdade, a falta de dinheiro para os venci­mentos, para a tinta de impressão, para o papel e para os credores, e ficaram tam­bém vagos os lugares dos aparelhos de ar condicionado, que agora serviam de vigias na fortaleza onde nos barricávamos, pois davam directamente para a rua.

O cortejo de viaturas ia engrossando, e, sem se deter, passava junto à Redacção, contornava a rua, cruzada pelo restaurante «Kanimango», e vinha aparecer, sempre mais reforçado, no lado oposto do quarteirão. Era um espectáculo bonito mas baru­lhento. Os homens gritavam de dentro das viaturas, de punhos ameaçadoramente erguidos, dizendo coisas que não se entendiam, podendo cada um de nós interpretá-las como quisesse.

— Eu vou para férias!... — afirma, nervoso, o Jorge Figueiredo Jorge, esque­cendo-se de arrumar os poucos cabelos loiros no comprimneto luzidio da cabeça oval:

          — Vou desaparecer por uns tempos! ...

E sai, deixando o nosso grupo enfraquecido com a falta do mais fluente repre­sentante do comunismo. Do quadro redactorial éramos agora cinco homens e duas mulheres, além do pessoal oficinal. Mas entre o último nasce burburinho:

— Vocês é que são os comunistas. Vocês é que são os corajosos, os revolucio­nários ... defendam-se agora. Quando nós dizíamos para serem mais moderados cha­mavam-nos reaccionários!... — diz uma voz excitada, a que outra acrescenta: — Eu tenho mulher e filhos. Vou embora! ...

O pessoal negro das oficinas olha em silêncio e não arreda pé. O José Rui Cunha, de sacola ao ombro, no estilo mais perfeito de turista rodesiano em semana de Rhodes and Founders, passeia de um extremo ao outro da sala. Excitado, retira da sacola uma arma de pequeno calibre, enquanto afirma que venderá cara a vida, que esvaziará o minúsculo carregador nos ventres anafados dos reaccionários beirenses. O Armindo de Sousa, negro que tinha contra si a cor da pele, na hipótese dos sitiantes serem apenas brancos, e que ocupava a primeira secretária, muda-se para o lugar mais afastado da portaria. Nas secretárias da frente arrumam-se as mulheres, e todas elas parecem calmas. Só então se dá pela ausência do Heleodoro Baptista, o outro comunista do quadro redactorial.

Desço ao primeiro piso. Um polícia português, de arma aperrada e costas aper­tadas ao umbral da porta, por forma a confundir-se com as sombras da noite, segreda-me com humor: — O senhor parece que tem medo! ... A observação enerva-me mas ele não entende tudo o que respondo pois o buzinar, que só tem início junto ao edifício do jornal, abafa-me a voz. Subo à Redacção ao encontro de um ner­vosismo crescente. O Frederico, chefe das oficinas no turno da noite, com os seus cabelos brancos e cara escarlate, gesticula, exaltado, dominando o tumulto.

— Os heróis cavaram. Só falavam mal de Portugal... Frelimo para aqui, Frelimo para ali... Agora o que é feito deles?... Não sabiam que tinham a população farta dos seus insultos? ... Eu vou embora imediatamente ...

E foi, forçando com a sua atitude a partida de muitos dos seus colegas. A entrada do chefe da Revisão for oportuna. Vinha excitado e exclama mal encara os presentes:

— Onde estão o Heleodoro, o Jorge Figueiredo Jorge e o Castro Lobo? Quero-os aqui imediatamente. Todos imediatamente. Só eram corajosos quando insul­tavam os portugueses, quando lhes chamavam colonialistas e exploradores?...

Uma cortina de silêncio cobre todas as vozes, deixando do lado de fora apenas a sua. Para nós, os «sobreviventes», a sua presença valia mais do que a dos três comunistas amedrontados que se puseram em fuga, depois de excitarem ao rubro a população beirense.

Mas seriam eles, na realidade, comunistas?

2.     DOIS   HERÓIS   DO   JORNALISMO

Ë necessário que o leitor tenha em mente que não fazíamos parte de uma Redacção dependente de uma administração organizada; que não possuíamos um director, pois o último afastara-se voluntariamente após os saneamentos na adminis­tração; que fora nomeado um sub-director, de nome Evo Fernandes, que sofrera a sorte comum — o saneamento; que o director interino era o chefe da Redacção, Henriques Coimbra, mas encontrava-se como observador em Lusaka, nas cerimónias de assinatura do Acordo.

A força que existiria no jornal era uma força clandestina, camuflada. Ela estava nas mãos do Heleodoro Baptista, por ser comunista e da Frelimo; do Jorge Figueiredo Jorge, por ser comunista e da Frelimo; do Castro Lobo, por ser comu­nista e da Frelimo.

Claro que tinha havido dissidências mas elas não partiram, embora fossem perfilhadas em silêncio por alguns elementos, do sector da intelligentsia, mas dos operários das oficinas. Esses queriam o pão para a boca e para os seus, e viam ele fugir-lhes com os consecutivos saneamentos na classe que o proporcionava. E essas dissidências chegaram ao paroxismo com o aparecimento, nas ruas da cidade, de um panfleto, impresso no «Notícias da Beira», aconselhando as massas populares a não comprarem o jornal. Esse panfleto, por mais paradoxal que pareça, era assi­nado pêlos operários do «Notícias da Beira». Esses mesmos homens ousaram ainda, e com o apoio do então secretário de Informação, dr. Willem Pott', sair para a rua com um pasquim, em tudo igual às edições normais do jornal, com a Redacção encerrada e sem director. Todo o trabalho partira do sector oficinal e da iniciativa dos operários, sem auxílio dos intelectuais.

          Julgamos serem estes dois flagrantes actos de resistência do proletariado do «Notícias da Beira» um interessante tema de estudo da penetração da ideologia social-marxista na Imprensa moçambicana. Por onde penetra o comunismo numa sociedade? Melhor, por onde tem penetrado o comunismo nos países de política ocidental? Diversos exemplos apontam-nos que ele penetra pela classe operária e pêlos pequenos camponeses, só a seguir pêlos funcionários, médicos, engenheiros, advogados, intelectuais, em resumo pela intelligentsia burguesa, se quisermos usar terminologia esquerdista. No «Notícias da Beira» ele penetrara pela última e não era apoiado pela primeira.

À juventude intelectualizada, especialmente à ligada às Redacções dos jornais, fora permitido o acesso à Imprensa estrangeira, e a que mais lhe interessava vas­culhar era a que então era considerada inconveniente. O quotidiano contacto com as agências noticiosas internacionais — mesmo as ocidentalizadas — trazia-lhes «meias verdades» desconhecidas, pequenas aberturas por onde o pensamento se expandia, embora desorganizado.

Durante muito tempo, como intelectual pequeno burguês, o redactor dos jor­nais pôde comprazer-se com a atitude, repleta de comodidades, de simples obser­vador privilegiado, pois o Governo concedia à sua classe a maior liberdade de con­tacto com o «mundo proibido», permitindo-lhe uma imersão, cada vez mais pro­funda, numa ideologia que apenas conhecia de algumas obras medrosamente che­gadas às livrarias, consideradas não demasiadamente alienatórias.

Esses pequenos encontros com as ideias moscovitas não ultrapassavam as paredes das Redacções, sendo, deste modo, mercadoria de consumo exclusivamente interno.

A ideologia onde tentavam a imersão não era, porém, pêlos jovens inte­lectuais assimilada pela base, mas empurrada de qualquer modo, apressadamente. Eles não tiveram oportunidade de a aprender com as famílias, a maioria da média burguesia, e isso marcara, em quase todos, uma ruptura com a sua classe de ori­gem, fazendo-os penetrar num mundo que lhes pareceu confuso.

Entretanto a política russa apregoava ostensivamente a sua luta pela igualdade das nações, pêlos direitos à liberdade individual e dos povos, quesitos que iam ao encontro das propagandas políticas mastigadas pêlos profissionais de Imprensa, na clandestinidade permitida das Redacções.

A coexistência pacífica soviética era o cavalo de batalha de todos os comu­nicados, reportagens e crónicas, das agências noticiosas contratadas após o 25 de Abril, na intenção de que os desconfiados ficassem tranquilos e que as massas não poli­tizadas recebessem melhor a propaganda soviética do que até então sucedia.

Os jovens redactores agarravam à letra os textos para alimentarem a sua ilu­são de liberdade esquerdista, ilusão tanto mais tenaz quanto, para a maioria, esta era a sua primeira experiência política, uma experiência em que muitos, viciadamente alimentados de ideologia personalista, procuravam uma realização pessoal.

A Imprensa moçambicana, assim dominada por jovens inexperientes e ambi­ciosos, passou a encher-se da propaganda socialista soviética, ficando os poucos espaços vagos ao dispor das teorias produzidas por Cuba, pela China e pela Alema­nha Democrática, mesmo que essas teorias fossem repetição da propaganda soviética. E, claro, se bem que a princípio isto acontecesse sem ordens expressas da Frelimo, essa iniciativa das massas teve, a curto prazo, obrigatoriedade exigida pelo Partido, que lhe deu, ainda, os necessários impulsos.

         No mundo germinava o vírus da contestação e as Redacções acolheram mais jovens contestatários, que, depois de enfastiados das leituras de Marx-Engels, se espraiaram pelos trabalhos de Roberto Guillain, Domenach, Marty e outros, conscientes de que, após absorverem a mais completa cultura revolucionária, eram, na verdade, intelectuais revolucionários.

A maioria dessa nova escola do jornalismo moçambicano era composta por rapazes portugueses, vindos em criança para Moçambique, e os primeiros contactos com a política foram efectuados junto às máquinas de telex dos jornais. Mas era moda ser-se revolucionário e teriam de sê-lo de qualquer modo. E o que para eles representava obstáculo era mostrar que o eram, para não merecerem a recusa de um lugar na sociedade contestatária intelectual, tão em moda, afundando-se por vezes, para o conseguir, no burlesco.

Um colega do «Notícias», de Lourenço Marques, sem grande mérito profissional, receando não ser readmitido naquele matutino após o abandono do serviço militar — estava no activo da tropa «colonizadora» — recorreu ao truque vítima, influenciado pela série, suspeita, de agressões de carácter político que proliferava na capital. Uma noite tombou numa artéria citadina, vencido pelo excesso de álcool que ingerira. Feriu-se na queda. Era de madrugada e ninguém assistira ao acidente. Socorrido e transportado ao Hospital, adormeceu entre bocejos de ébrio e vómitos de etilizado.

Ao outro dia o seu jornal noticiava que o redactor fulano de tal fora barba­ramente agredido por inimigos da liberdade. O tal colega acordou com direito a ser comunista após a ressaca, mas o pessoal do Hospital não colaborou na comédia. O «Notícias», porém, nunca rectificou a local, agarrando com unhas e dentes a oportunidade de possuir nos seus quadros um jornalista que não podia ser acusado de fascista. E, dias após, comunista respeitável e frelimista da primeira apanha, o «nosso» herói teve a honra de ver em todas as montras e paredes de Moçambique um poema seu, dedicado a Samora Moisés Machel, servindo de legenda a um gigan­tesco «póster» do presidente da Frelimo.

Meses depois, a mulher do herói discursava em Tete, do alto de um púlpito e em nome de todas as mulheres de Moçambique. O futuro estava assegurado ao jornalista Guilherme da Silva Pereira e a sua mulher. E estávamos ainda sob o domínio do Governo de Transição.

Outros aderiram ao G.U.M.O., partido político criado após o 25 de Abril e chefiado por Joana Simeão, evitando, deste fácil modo, a denominação de fascista tão em moda, verificando-se, a curto prazo, que em Moçambique não existia um único jornalista das «direitas», e que fora da Imprensa só haviam sido fascistas o Governo Geral e os seus secretários provinciais. E os jornalistas provavam que nunca o haviam sido pois todos sabiam recitar Lenine ou Mao-Tsé-Tung, para parecerem progressistas, como definiria mais tarde Fernando Barradas esta estranha fauna «como cordeiros amestrados atrás do prémio, da segurança, de serem desde pequeninos, comunistas».

         Os mais directos colaboradores da Imprensa moçambicana do tempo de Marcello Caetano apareceram como agressivos defensores da Frelimo, sujeitando-se às mais escabrosas traições ao povo português para agradarem ao Partido. Outros, ainda, não tendo a sorte de serem agredidos numa rua da capital, nem meios económicos para irem a Dar-es-Salam abraçar Samora Machel e pregoar a sua militância à Frelimo, publicando-a em letras gordas nos seus jornais, tentaram ser os primeiros a contactar os guerrilheiros em pleno mato — mas sem arriscarem a pele — para em seguida, com os seus escritos, reclamarem o preço merecido pelo seu gesto tradutor de militância — um tacho.

Um pequeno exemplo:

Algum tempo depois do 25 de Abril, e quando a população não sabia, ainda, se a guerra havia terminado, fui informado, por um meu contacto habitual, de que um grupo de guerrilheiros da Frelimo se encontrava nas proximidades de Tete. Para o encontrar teria de seguir em viatura cerca de sete quilómetros, na estrada Tete-Beira, e depois caminhar mais cerca de quatro quilómetros por picadas de difícil acesso.

— Vale a pena — dissera-me o meu interlocutor, acrescentando: — O coman­dante desse destacamento é um guerrilheiro célebre, indivíduo muito humano, de nome Raimundo Dalepe, um maconde.

Eu encontrava-me no aeroporto de Tete, prestes a tomar o avião para a Beira; adiei a viagem para o dia seguinte e segui o meu informador. Percorremos o caminho indicado e contactámos os guerrilheiros. Nada havia sido preparado; a minha visita fora uma surpresa para eles. No dia seguinte o «Notícias da Beira» publicou o meu encontro com a Frelimo e uma pequena entrevista que o Raimundo Dalepe me con­cedeu. Poucos dias depois uma equipa da Televisão Portuguesa, chefiada por Serras Fernandes, procurou-me. Queria contactar com os guerrilheiros e pedia a minha cola­boração. O encontro foi conseguido mais perto da cidade e tive tanta confiança nele que a minha mulher nos acompanhou.

Os guerrilheiros foram filmados no seu «habitat» sem qualquer preparação, sem o mais pequeno embuste, e eu fui colhido pelas objectivas da T.V.P. em diversas imagens, dialogando com eles. O filme correu mundo. Um amigo viu-o com surpresa em Paris. A Televisão Portuguesa apresentou-o para todo o Portugal. Mesmo assim, bastante tempo depois, a revista moçambicana «Tempo» publicava uma extensa e especulativa reportagem da autoria de José Quatorze, colhida no Màzoe, pacífica zona próxima de Tete, quando em todos os cafés, bares, ruas, cinemas, jardins e em algumas casas particulares de Tete e da maioria dos centros urbanos do Norte, se encontravam guerrilheiros fardados, armados e desarmados, confraternizando com civis e com as Forcas Armadas Portuguesas. A reportagem, que se rodeara de ridículo cenário a que não faltou uma patética caminhada a pé, não se esquecia de sublinhar, em «caixa alta», que «Tempo», por intermédio de José Quatorze, fora «o primeiro órgão de Informação a contactar os heróicos guerrilheiros da Frelimo».

A revista foi entregue pessoalmente a Samora Machel em Dar-es-Salam, e José Quatorze viu o seu futuro assegurado na Imprensa de Moçambique. Era mais um homem de confiança no país que ia nascer, sob os auspícios de uma ditadura socialista, para a comunidade das nações.

Algum tempo depois foi nomeado pelo Partido para o cargo de chefe de Redacção do «Notícias da Beira», incrementando esta sua nomeação a luta e os insultos à colónia portuguesa, o que levou à demissão ou ao afastamento a maioria dos jornalistas, que, lutando contra a maré, ainda se conservavam íntegros.

De notar que a nomeação de José Quatorze para chefe de Redacção do «Notícias da Beira» seguiu-se à escolha pela Frelimo do advogado Afonso dos San­tos para director do jornal, como recompensa pêlos seus esforços de «democrata liderante» ensaiados na Beira em Janeiro de 1974, com a presença naquela cidade do general português Costa Gomes. Recorda-se, apenas como nota elucidativa, que este advogado fora mais tarde enviado, com outros suspeitos «democratas», a Dar--es-Salam, na intenção de preparar o encontro entre a Frelimo e as autoridades portuguesas, atitude que teve a iniciativa do general Costa Gomes e foi jocosa­mente criticada por Samora Machel.

Lá chegaremos, porém.

3.     MOÇAMBIQUE   COM   A   FRELIMO

Os manifestantes abandonaram as viaturas e concentraram-se em frente da Redacção. Desconhecíamos o que tencionavam fazer, e eu pensava que eles pró­prios não traziam programa definido.

Proibir a publicação da edição de 8 de Setembro?

Agredir os jornalistas?

Acreditávamos que entre a compacta multidão existissem extremistas. Existem sempre em todas as manifestações de carácter político ou de desforra, mas con­fiávamos, não sem algum receio, que a maioria — especialmente os indivíduos mais influentes do numeroso grupo — apenas desejasse pregar um pequeno susto aos fabricantes do jornal, que diariamente e na intenção de agradar à Frelimo, viravam as suas armas mais envenenadas contra Portugal e contra o povo lusitano.

Jorge Figueiredo Jorge atrevera-se, no seu entusiástico maoismo despoletado, a amesquinhar e ridicularizar a cultura portuguesa, atitude que Samora Machel tomaria imensas vezes depois. Era necessário agredir de qualquer modo, e creio que pouco do que existe em .Portugal se esquivou às seringadelas de veneno dos seus escritos. E o que por ele foi poupado não teve a mesma sorte na prosa do Heleodoro Baptista e do Castro Lobo.

         A atitude destes jornalistas, seguida mais medrosamente por outros, espan­tava os portugueses. Eles tinham conhecimento das palavras de Eduardo Mondlane, muitas vezes divulgadas pela Imprensa após o 25 de Abril, pronunciadas na Con­ferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas e da África Austral, realizada em Janeiro de 1969, em Kartum: «O povo português deve compreender que o povo moçambicano é um povo fraterno. Nós, moçambi­canos, nada temos contra o povo português nem contra a cultura portuguesa. Ao con­trário». Samora Machel, seu seguidor na presidência da Frelimo, discursando no Norte no seu primeiro contacto com as populações do Niassa, diria que a cultura portuguesa «começa às dez da noite e termina de madrugada. Ë uma cultura de cabarés, de álcool e de prostituição», o que mostra o contraste flagrante da forma de pensar dos dois dirigentes a respeito de Portugal. Na verdade, nada já existia de comum entre a Frelimo de Mondlane — nacionalista — e a de Samora — escrava do imperialismo soviético.

O telex chama. Era de Lisboa a Emissora Nacional, tentando informar-se sobre a situação em Lourenço Marques. Marcam novo contacto e damos-lhes um código para que soubessem que era connosco que contactavam, pois receávamos, tão grande era o alvoroço no exterior do edifício, que o que de melhor nos poderia acontecer era sermos desalojados.

Oiço com mais atenção a voz do locutor. Diz que junto a «Rádio Moçambi­que Livre» se encontram centenas de mulheres e de crianças, apelando, imediata­mente a seguir, a mais mulheres e crianças para que se juntem à multidão.

«A cidade de Tete aderiu em pleno. Somos de minuto a minuto mais e melhores. Automóveis percorrem todas as ruas daquela cidade, buzinando, chamando a população que já se está a concentrar. Um grupo de nossos irmãos tentou sabo­tar as antenas do Emissor Regional, não sabemos se com sucesso. Aquela Emissora ainda não aderiu ao nosso Movimento...»

E logo a seguir, em tom convincente:

«Fala-vos Rádio Moçambique Livre. Saiam para as ruas. Venham para junto de nós. Apoiem-nos com a vossa presença física. Tragam cigarros e café que a noite está fria. Tragam cobertores. Há mulheres e crianças junto de nós, em toda a rua. Seremos mais. Temos de ser todos. Venham para junto de nós...»

Os meus camaradas na Redacção fitam-se lívidos. Era isto a descolonização? Se o era não condizia com as declarações de Vítor Crespo, um dos homens que assinara o Acordo: «Descolonizar significa entregar os poderes de soberania sem que haja convulsão social, em paz e harmonia entre os diversos sectores da popu­lação, para que se possa criar o clima de reconstrução nacional, essencial ao pro­gresso do povo até agora colonizado...».

Aceito o risco de me censurarem por afirmações que não são admitidas por alguma gente: A nação moçambicana encontra-se preparada para receber a Inde­pendência; a Frelimo, não. Não sendo, portanto, contra a Independência, penso, e pensarei até me provarem o contrário, que a maioria dos observadores sabiam que Moçambique com a Frelimo não sobreviveria. O Partido estava preparado para uma luta demorada de guerrilha e não para dirigir um país.

Em todos os sectores da actividade económica e administrativa não existiam quadros, nem em quantidade nem em qualidade. Os quadros teriam de ser, forço­samente, por tempo ilimitado, de nacionalidade portuguesa, os compostos por moçam­bicanos não militantes do Partido, mas isso não interessava aos comunistas — o pequeno grupo que rodeava e amestrava Samora Machel. Para eles a Frelimo teria de sobre­viver por si própria e apenas com o auxílio do eixo comunista, seu importante credor das despesas de guerra. Moçambique estava preparada para a Independência e a Frelimo não.

O 25 de Abril e as resoluções apressadamente tomadas prejudicaram a Frelimo nacionalista — beneficiando o sector extremista — e precipitaram os acontecimentos. Samora Machel, num dos seus poucos momentos de verdade, quando a vigilância dos «cérebros» que o rodeiam afrouxou, confessaria no Niassa — declarações trans­critas na revista moçambicana «Tempo» — que «foi pena que a guerra contra o colonialismo português não se tivesse prolongado por mais cinco anos».

Mesmo assim, as negociações decorreram apenas com a Frelimo, tal a acele­ração pretendida por Melo Antunes para a descolonização. Melo Antunes soube aproveitar-se da situação política e social de carácter anarco-populista que adoentava as estruturas governativas portuguesas, e da intensa campanha movida contra o Ultramar pelas forças progressistas a nível popular, aliciamento a cargo da Inter­nacional Comunista. Ele foi, apenas, um intérprete, tipo «roberto de feira» do «entreguísmo» das colónias portuguesas ao imperialismo soviético.

Portugal e a Frelimo não permitiram a presença de observadores moçambi­canos, não afectos ao Partido mas simpatizantes da libertação nacional, de homens que, no contacto directo com as realidades moçambicanas, tivessem conhecimentos e força moral para aconselhar, para orientar Portugal e a própria Frelimo, mesmo sabendo-se que as autoridades portuguesas, representadas em Lusaka, desconheciam as gentes e as terras moçambicanas, as reivindicações honestas e humanas do povo, as suas necessidades reais, os seus anseios, a forma de liberdade pela qual lutavam. Mas sabia-se, também, que a Frelimo, com uma dezena de anos de luta, período de tempo em que apenas contactou as zonas do interior, que pouco ou nada repre­sentavam no contexto económico, político e humano de Moçambique, vivendo com sede no estrangeiro e visitando clandestinamente a parte mais desértica e menos civilizada da colónia, desconhecia, do mesmo modo, a realidade moçambicana.

Pode-se, assim, afirmar que o Acordo de Lusaka foi negociado entre duas entidades estranhas a Moçambique: o Governo de Portugal com sede em Lisboa, e a Frelimo com sede em Dar-es-Salam.

Mas era com a Frelimo que Portugal teria forçosamente de negociar a des­colonização segundo a pusilanimidade dos então governantes de Portugal, aberrativamente exposta por Vítor Crespo:

«Descolonizar é transferir os poderes que o Estado Português detém para a Frente de Libertação de Moçambique. E porquê a Frelimo? Porque foi o Partido, a Frente, que manteve a luta armada pela independência nacional durante dez anos e tem o apoio generalizado. Por isso a única força política em Moçambique.»

A opinião de Vítor Crespo era a da maioria dos dirigentes portugueses. As suas palavras eram as do Governo de Portugal, dominado, na sombra, pelo general Costa Gomes, que se acobertara sob o prestígio do general António de Spínola. Eram a própria opinião do mal informado povo português, logrado pelo chavão da solução política que o Acordo de Lusaka parecia representar.

O povo moçambicano e os habitantes portugueses de Moçambique, subjugados pelas armas dos dois negociantes, iam ser entregues, sem remissão, à vontade mos-covita representada pela Frelimo, mesmo circulando de boca em boca, medrosa­mente, a afirmação de que um ano antes, no dia 12 de Setembro de 1973, o Pre­sidente Kaunda da Zâmbia havia-se debruçado sobre o problema moçambicano, apresentando um programa intitulado «Plano de Lusaka», onde era prevista a par­ticipação da Frelimo no futuro Governo de Moçambique, mas não em regime exclusivista.

A solução, programada então, da qual o Governo Português tivera conheci­mento pelo então cônsul do Malawi em Portugal, eng.° Jorge Jardim, antes de 7 de Setembro de 1974, definia que os movimentos nacionalistas, tais como a Frelimo, deveriam ser reconhecidos como importante factor político, cuja partici­pação no formular da futura estrutura política não podia ser ignorado.

Saliente-se importante; não exclusivo.

De notar, porém, que este «Programa», cujo cumprimento honraria Portugal e as suas Forcas Armadas, aquelas que o 25 de Abril afirmou representar, estava em vésperas de ser integralmente aceite. Já o fora por Nyerere, Presidente da Tanzânia, pelo dr. Hasting Banda, Presidente do Malawi e o mais inteligente e lúcido dirigente da África Austral, e assinalava-se, com optimismo, a adesão incondicional de Samora Machel, ainda não manobrado completamente pelo seu grupo intelectual--comunista. Ao contrário do Acordo de Lusaka, apenas um ano depois assinado, Moçambique não era entregue a Moscovo mas ao povo moçambicano. Recorde-se, ainda, que o professor Marcello Caetano afirmara, também, pela mesma altura, ao definir a sua política de «Autonomia Progressiva e Participada» que «não recusava a Independência, se esta traduzisse a vontade local, autenticamente expressa».

Não era, pois, a Independência que estava em jogo. Jogava-se o «processo», e venceu o engendrado pelos extremistas. Havia apenas necessidade de lhe criar ambiente propício, e os oficiais comunistas portugueses, e os pseudo-democratas moçambicanos, que hoje, após terem atirado Moçambique às feras, passeiam por Lisboa, criaram esse ambiente acelerando o Acordo, para que este não fosse ultra­passado pelo Programa.

A Frelimo comunista vencera a Frelimo nacionalista. As ideias de Mondlane foram espezinhadas pelo grupo que domina Samora Machel. E é dentro desta pers­pectiva, onde existe apenas um substracto comum — a Independência — que Samora Machel exerce o seu papel de ditador, dirigido pelo seu grupo de intelectuais extre­mistas, e organiza o seu novo Estado segundo as concepções comunistas. Dois elementos fundamentais simbolizam o poder moçambicano: O Partido e o Chefe. O terceiro elemento fundamental foi esquecido: O povo.

 

4      UM   ESTRANHO   FREMILISTA

O Machado, chefe geral das oficinas, entra na Redacção. Vem calmo. Junta-se a nós, que nos acocorávamos nas vigias deixadas pêlos aparelhos de ar condicionado.

O silêncio voltara à rua. Não era um silêncio pesado, mas apenas a ausência dos gritos que os nossos ouvidos captavam havia mais de duas horas, um murmúrio composto por conversas a baixa-voz, como se toda aquela plateia revolucionária se interrogasse. Fazia lembrar — e essa imagem me veio ao pensamento, ali e naquela hora — os décimos de segundo que antecedem o sinal de partida dos atletas numa prova pedestre de velocidade.

Desceu à portaria e eu acompanho-o. Centenas de pessoas acotovelavam-se em todo o comprimento exterior do edifício. A nossa defesa era assegurada por meia dúzia de agentes da Polícia de Segurança Pública, pois, embora a situação fosse dramaticamente comunicada às Forças Armadas, ainda nenhum militar comparecera.

Destacam-se quatro homens da primeira fila e dirigem-se-nos. Dois são brancos, um é goês e outro é negro.

A presença do último leva-me a olhar a plateia de manifestantes: Mais negros, muitos negros, em toda a parte. Por que se afirmava, então, que a Frelimo tinha o apoio total do povo negro?... Mas quem o afirmava? Não eram apenas o Governo de Lisboa e nós os jornalistas? ...

É um dos brancos que fala pelo grupo:

— Queremos dialogar com os jornalistas, mas com todos. O jornal tem que ser encerrado, a bem ou a mal. Ë melhor compreenderem a nossa posição e muito especialmente a vossa...

O Machado pede-lhes que subam à Redacção. Eles falam com alguns das primeiras filas. Há observações de apoio e de descontentamento. Existe quem pre­fira quebrar as montrarias, destruir as oficinas, arrasar tudo, silenciando, de uma vez para sempre, o único jornal beirense.

Os agentes da P.S.P. estudam a situação de armas aperradas. Parecem em menor número: Alguns haviam-se espalhado por pontos estratégicos, por forma a melhor dominarem a situação. O que está mais perto de mim sussurra-me que, em caso de emergência, tínhamos assegurada a saída pelas traseiras.

Acompanho o Machado e os quatro manifestantes. Penetrámos na Redacção silenciosa. Os restantes colegas rodeiam-nos e é o mesmo branco que fala. Calça chinelas de quarto e veste camisa vermelha de quadros, que lhe cai com sofisticado desleixo sobre os calções:

— O que queremos é que vocês fechem imediatamente o jornal. Não permi­tiremos que amanhã as vossas mentiras venham prejudicar o Movimento... Estamos dispostos a conseguir o que queremos pela força e sem olharmos a consequências.

O Machado responde-lhe, mas dirigindo-se a nós:

— Vamos rapaziada. Desliguem o quadro geral!...

O jornal é encerrado por uns dias, e os jornalistas comunistas hibernaram por mais um mês, não metendo as cabeças fora das tocas onde se encolheram, ruminando vinganças, nos intervalos das leituras dos clássicos do marxismo e dos seus discípulos modernos.

A multidão não dispersara ainda e comentários, e olhares de ódio e de desprezo, são dirigidos na nossa direcção. Quando abandono o jornal levo nos ouvidos, ressonando como matracas, as últimas palavras que ouvira ao locutor:

«Um grupo de nossos irmãos tentou sabotar as antenas do Emissor Regional de Tete, não sabemos se com sucesso. Aquela Emissora não aderiu ao nosso Movi­mento...»

O meu pensamento volta-se para a cidade que apenas no dia anterior deixara. E recordo:

Nos princípios de Abril de 1974, a poucos dias da queda do Governo de Marcello Caetano, encontrei sobre a minha secretária de trabalho uma carta muito mal redigida. Fora seu autor um comandante da Frelimo. Levei a missiva para casa e a São, minha mulher, falou dela, no intervalo de uma emissão, a alguns dos seus colegas de estúdio onde então trabalhava — o E.R.T. do Rádio Clube. O jornalista Santos Martins informou a D.G.S., chefiada pelo inspector Sabino, e eu e minha mulher fomos incomodados. Afirmava-se, à boca cheia que ele era, de velha data, informador da P.I.D.E. Eu, porém, via-o apenas como homem pouco culto que queria tirar partido de meios oportunistas para ocupar posições para que não lhe chegava o mérito. Mas foi ele próprio que na minha ausência, e por ordem do inspector da D.G.S., tentou convencer a minha mulher para que ela lhe entre­gasse a carta, afirmando-lhe que cumpria instruções minhas. Ela escondera a carta no corpete mas negou possuí-la.

Meses após, depois de curta passagem por um grupo fantoche de Democratas — criado após a revolução dos cravos — para onde entrou pelas mãos de um comer­ciante com pretensões a literato e ex-lider do G.U.M.O., de nome Isaías Marrão, traidor português responsável por inúmeras prisões de colonos na província de Tete, o jornalista Santos Martins entrava nas estruturas da Frelimo, e conseguia deitar mão a algumas alavancas do comando político de Tete, esquecendo a sua recente adesão à política colonialista.

O seu sucesso foi rápido e brilhante. Candidato ao cargo de professor de Política da Frelimo, na escola secundária local, passou a leccionar História. Como habilitações literárias lia-se no seu curriculum vitae, na proposta ao professorado: Estudioso do socialismo e das teorias marxistas-leninistas. Cativou a Frelimo e trans­formou-se no mais entusiástico e perigoso militante, presidindo a reuniões a nível distrital do Partido.

Construiu duas residências.

Dirigiu um Emissor.

Representou o mais importante jornal de Moçambique.

Foi proprietário de uma discoteca.

Foi professor num curso médio, muito acima da sua cultura.

E, finalmente, regressou a Portugal, após ser vítima, como todos os portu­gueses, das nacionalizações, residindo actualmente na cidade

universitária namorada do Mondego. Mas nas prisões em Moçambique ficaram algumas das suas vítimas.

5.     O   ÓDIO   DE   JORNALISTA AOS  PORTUGUESES

Regresso a casa. Toda a minha família estava nas proximidades do receptor, atenta às notícias, que, em torrente, nos eram trazidas pelo éter:

«Temos a alegria de comunicar que foi retirado o mandato de captura ao senhor engenheiro Jorge Pereira Jardim...»

«Julgamos que o senhor general Spínola está a compreender a nossa situação, o motivo do nosso Movimento, e o vai apoiar...»

«A cidade de  Inhambane adere ao Movimento. Há alegria nas ruas...»

«Milhares de portugueses da África do Sul dirigem-se para Lourenço Marques em longos comboios de viaturas automóveis. As autoridades sul-africanas estão a facilitar a sua passagem na fronteira com Moçambique...»

«O jornal «Diário» prepara-se para sair com uma edição. Levem cigarros e café aos valorosos jornalistas. Já está garantida a chegada de papel para as futuras edições daquele jornal...»

E muitas coisas mais.

A voz do locutor é persuasiva, mole por vezes, agressiva por outras, con­vincente sempre. Continuam a ouvir-se sirenes pela cidade, por onde centenas de viaturas circulam em cortejo.

É gente que não pensa em dormir e eu adivinho no interior das carrinhas, das camionetas e dos automóveis — de que apenas vejo os faróis à distância — pessoas atentas à voz do locutor, querendo acompanhar, como nós, toda a sequên­cia do imbróglio para que já não se vislumbra uma solução pacífica.

Como reagirá a Frelimo?

Interrogo-me, e como eu milhares de pessoas por Moçambique afora.

Não farão idêntica pergunta a si próprios, todos aqueles que fazem guarda •— homens, mulheres e crianças — junto ao Rádio Clube de Moçambique, em Lou­renço Marques, ou se encontram na Praça do Município da cidade da Beira, ou, ainda, essoutros que se acumulam nas vilas e aldeias do interior, ou isolados nas choupanas humildes, ouvem, estupefactos, o que o locutor agora afirma, tão diferente do que ontem foi propagado pelo mesmo Emissor, ou pespegado em caracteres de Imprensa nos jornais moçambicanos, verdadeiras guardas avançadas do Kremlin, incitando, ante a passividade criminosa dos dirigentes, com a ilegiti­midade das suas doutrinas os saneamentos indiscriminados, as prisões arbitrárias, os espancamentos, as torturas, as expulsões, a negação da cultura portuguesa, a usur­pação criminosa e selvagem de terras e de habitações, tudo ordenado pela moral dos serventuários do imperialismo soviético?

A História um dia falará da influência da Informação moçambicana na esca­lada do terror que destruiu Moçambique. Testemunhos não faltarão:

Como chefe da Delegação do «Notícias da Beira» na província de Tete recebi, com surpresa, uma comunicação de que uma equipa de reportagem visitaria aquela zona moçambicana, a fim de colher elementos para uma edição especial. A minha surpresa justificava-se, sobretudo por, durante os cinco anos de guerra naquela pro­víncia, nenhum dos meus colegas se oferecer, ou aceitar quando imposto, qualquer serviço na região, facto que contra a minha vontade me obrigava à acumulação de férias.

A equipa seria composta pelo repórter Mário Ferro — secretário de Informa­ção do Grupo Dinamizador da Frelimo — pelo repórter-fotográfico Carlos Rodrigues, e por um publicista encarregado de adquirir fundos para a feitura da referida edição.

Os nossos homens seguiram para a Angónia depois de pedirem apoio ao Partido em Tete, e ali, acompanhados por elementos fardados da Frelimo, percor­reram todas as casas comerciais e as machambas agrícolas portuguesas, arrecadando cerca de cem mil escudos de «publicidade».

Os amedrontados portugueses entregavam-lhes quanto lhes fosse sugerido, receo­sos de caírem no desagrado da bélica comitiva.

Aquela região era a mais rica de Moçambique, considerada o celeiro do país. Ali eram produzidas as batatas que Moçambique consumia, parte do milho que ali­mentava a população, e diversas experiências no campo frutícola foram coroadas de extraordinário sucesso. Era, ainda, fértil produtora de carnes, sendo por este e outros motivos uma região onde o povo nunca conheceu a fome e a revolução armada da Frelimo não vingou, nem obteve êxitos militares e políticos.

O angone não ignorava que toda a riqueza da região partiu da experiência portuguesa, da sua agricultura evoluída, da sua técnica, presente nas máquinas que substituíram definitivamente os processos tradicionais de cultivo. Deste modo, não desconhecia que a riqueza que usufruía era a parte que lhe cabia da iniciativa portuguesa.

Mário Ferro viu tudo isso e encolarizou-se.

O choque que sentiu ao deparar com abundância de víveres e de cereais numa província de um país onde se formam bichas para adquirir arroz, para comprar um pão, fez ultrapassar a dose de paciência que o seu extremismo, mais que comprovadamente militante, permitia e virou ódio. Ódio que dirigiu no sentido mais fácil e tolerado pelo Partido: Aos portugueses.

O desafogo económico colectivo era, para ele, uma ofensa ao povo do Sul, miserável e faminto. Não se preocupou em estudar os motivos da abundância, porque não lhe interessou observar a vida, o trabalho e o combate da classe agri­cultora. Não olhou as mãos calejadas dos trabalhadores negros e brancos. Não fitou, de frente, os rostos curtidos pêlos frios das madrugadas serranas e pelos calores das várzeas tropicais, naquele pedaço de mundo onde todas as tempe­raturas são permitidas.

Excitado, destilou veneno num artigo sobre os agricultores portugueses da Angónia, alcunhando-os de elitistas, de sabotadores económicos, e de outras defi­nições usuais no dicionário político da Frelimo. A sua injusta opinião demagógica fazia-lhe ver na fartura uma caótica subversão a roer as estruturas comunistas, que necessário se tornava implantar em toda a Angónia. E a Angónia mostrava-se alérgica ao comunismo ... porque era rica.

Lavrar, semear, colher mecanicamente, era desmentir a capacidade de tra­balho do povo moçambicano, que deveria ser orientado para as machambas colecti­vas. O futuro de Moçambique estaria assegurado pela mobilização maciça de agri­cultores em regime de «kolkhoz», essas tão faladas cooperativas agrícolas de ins­piração comunista, amoçambicadas pela definição de «machambas colectivas».

Alardeando fartos conhecimentos dos conceitos esquerdistas, Mário Ferro falou das disparidades de riqueza e miséria e, para cabalmente cumprir a sua missão de extremista, entrou na campanha demagógica em curso pelo Partido, preconi­zando o dimensionamento das explorações.

Ao bom entendedor — e o Partido que lhe encomendara o sermão era-o, de certeza — estava posta a funcionar a engrenagem que levaria à depradação dos bens e à perseguição dos portugueses residentes na Angónia.

A resposta ao apelo de Mário Ferro não se fez esperar, e, por ordens da Frelimo, é detido poucos dias depois um agricultor de nome António Ferreira Abreu. Transportado sob prisão para Lourenço Marques foi ali enclausurado em regime incomunicável. Sua mulher e filha — uma criança doente — sofreram igual sorte. A solução chegou para todos com a expulsão de Moçambique, após haverem sofrido as mais desumanas humilhações e maus tratos.

A acusação baseou-se em «crime de sabotagem económica», mas o acusado não foi julgado em nenhum tribunal.

Entretanto nas terras do detido apodreceram, sem que alguém as retirasse do solo, centenas de toneladas de batata, enquanto o povo moçambicano do Sul morria de fome. Nos seus armazéns ficaram mais de um milhão de escudos de mercadoria, entregue à destruição do tempo, enquanto nos lares do Sul os pais gemiam ao ouvir os filhos chorar com fome.

Repito: António Ferreira Abreu não foi julgado. Nenhum tribunal se debru­çou sobre o seu caso. A justiça comunista fora praticada por um jornalista por­tuguês e por um guerrilheiro de nome Eusébio Nenhum Fica, comissário político na província de Tete, figura representativa do mais cruel sadismo e das mais descaradas prepotências, de que nos ocuparemos ainda.

          Prosseguindo o programa de Mário Ferro, algum tempo decorrido é encar­cerada a totalidade dos agricultores portugueses e a maioria dos comerciantes, nestes se incluindo cinco moçambicanos. A justificação para a captura era serem possuidores de armas — embora estas se encontrassem em seu poder por deter­minação das autoridades. Foram transportados, como animais, em camiões de carga, permanecendo numa cela colectiva durante uma semana. Após o seu regresso à liberdade tem início o êxodo dos portugueses da Angónia e grande parte deles fixa residência no Malawi, onde a sua experiência agrícola é acolhida de braços abertos pelo Governo do dr. Hasting Banda.

O povo da Angónia pede para os portugueses não se afastarem das terras que enriqueceram. Manifestações de negros imploram ao Governo a protecção para os portugueses. Agricultores angones botam sentidos discursos louvando o trabalho dos portugueses quando alguém graúdo visita a Angónia. Porém o programa do Partido estava traçado: O comunismo só penetraria naquela estratégica região nortenha quando a miséria substituisse a abundância. A experiência portuguesa estava a mais na Angónia e em seu lugar ficou a fome. As desigualdades econó­micas deixaram de existir.

Antes de regressar à Beira, o secretário do Grupo Dinamizador da Frelimo da Secção de Informação, e repórter do «Notícias da Beira», Mário Ferro, publica novo trabalho, e nele afirma existir assinalável incremento da prostituição em Tete, referindo alguns bares que empregam mulheres portuguesas.

Foi incisivo e directo: A prostituição era prática das mulheres empregadas em determinados estabelecimentos, por estas serem, na maioria, portuguesas.

Este seu trabalho motivou uma vigorosa acção do Comissariado Político de Tete, acção que levou dezenas de mulheres a serem isoladas em terríveis e crimi­nosos «campos de reabilitação», junto à fronteira da Tanzânia, de onde poucas regressaram com vida.

As que sobreviveram foram consideradas inocentes pela Frelimo. Tenho em meu poder um desses certificados de inocência, passada a uma jovem de aspecto frágil, sobrevivente do campo de «reabilitação» de Luatize. Essa jovem, Maria Fer­nanda— inocente como a própria Frelimo reconhece num documento oficial — foi uma das vítimas de Mário Ferro.

Tinha consigo documentos que a Frelimo destruiu— entre eles um passa­porte português. O único motivo do seu infortúnio foi a publicação de um tra­balho de um jornalista português, que nem sequer a conhecia.

Esta pode acusá-la e acusa-o, de certeza.

Mas e as outras? As  que ficaram pelo caminho?...

6.     UM   PEQUENO   DRAMA   NA   BEIRA

Passámos a noite na sala — eu e a minha família — ouvindo o «Rádio Moçam­bique Livre».

O locutor ia acrescentando novas adesões ao Movimento. Informava repetidas vezes que o «Diário», o mais antigo jornal de Moçambique, seria publicado no dia seguinte, voltando a pedir que levassem cigarros e cafés quentes e refrigerantes aos «abnegados trabalhadores» daquele órgão de Informação, ao tempo que apelava aos linotipistas, paginadores, tituleiros e outros técnicos, para se dirigirem às oficinas do velho «Guardian».

O «Notícias da Beira» e o «Notícias» estavam fora de combate por vontade das massas portuguesas, como o estariam, ainda, durante bastantes dias. Do pri­meiro jornal não se veria ninguém nas ruas beirenses. Os esconderijos eram os mais diversos, e nern os colegas saberiam onde encontrar o Heleodoro Baptista, o Jorge Figueiredo Jorge, ou o Castro Lobo.

Eu percorreria, nos dias seguintes, as ruas da cidade, onde o comércio não abrira as portas. Caminhando devagar, espreitava com os ouvidos as residências e em todas ouvia as vozes dos locutores da «Rádio Moçambique Livre».

As notícias eram as mesmas:

Mais adesões; a esperança de que os enviados do general Spínola resolvessem algo a contento dos cabecilhas do Movimento; conclusões favoráveis no encontro entre os representantes de todos os movimentos e partidos políticos que prolife­ravam na colónia; mundos de devaneios, de ilusões, de certezas amontoadas sem os alicerces da lógica política; esperança de que o dr. Domingos Arouca compa­recesse a reuniões a que se mostrava alheio e estranho ...

Caminhando devagar, eu ouvia conversas contrárias ao Movimento nos pou­cos bares abertos à gente sedenta, conversas de pessoas que o consideravam tardio e irremediavelmente condenado ao fracasso. Ouvia afirmações que prediziam que o que estava a acontecer iria conduzir a um inevitável derramamento de sangue, que opinavam que depois de Portugal se comprometer em Lusaka não mais retrocederia.

Ouvia pessoas — quase todas desejavam a independência moçambicana — que viam o problema pelos olhos dos partidos a que entregavam a sua simpatia: Uns opinavam por Lenine que não se vence apenas com uma vanguarda, que lançar uma vanguarda numa batalha decisiva, enquanto a classe no seu conjunto, a massa, não adoptou uma atitude de franco apoio, pelo menos de neutralidade benevolente que a torne incapaz de deter o adversário, seria mais que uma estupidez, seria um crime.

Outros «iam» pela Convergência Democrática, esperando que Portugal conse­guisse construir, entre os seus territórios coloniais e as parcelas atlânticas, uma espécie qualquer de confederação.

Muitos eram de opinião de que todos os partidos deveriam ser ouvidos, e falavam no G.U.M.O., no F.I.C.O., todos porém distribuindo opiniões mas nin­guém definindo claramente ideias.

Do mesmo modo procediam os oradores que se apresentavam aos microfones do «Rádio Moçambique Livre», ou subiam ao púlpito formado por uma camioneta engalanada com estandartes portugueses, encostada a um canto de um extremo da Praça do Município da Beira, onde, durante três dias e três noites, frias e de cacimbo, centenas de pessoas, velhas e novas, negras, mestiças e brancas, mar­caram presença.

Eu não me podia admirar ao encontrar estas centenas de revolucionários, incorrigivelmeníe esperançados numa viragem radical ao Acordo de Lusaka já assi­nado, mas podia criticar o suporte das suas opiniões. E olhando essa gente — e vejo uma mulher paralítica no seu carrinho, uma velha junto ao fogareiro e frigideira, uma mãe enregelada retirando o frio a uma criança de meses, um velho reformado asmático — eu sabia que eles sairiam dali mais vencidos.

Caminhando devagar, eu ia ao encontro do entusiasmo popular, do optimismo que eu não entendia, vendo, na cidade inteira, um gigantesco teatro onde se repre­sentavam, simultaneamente e sem centrastes, milhares de dramas e de comédias. E os intérpretes do espectáculo de que me sentia espectador não entendiam as minhas recusas, quando me abordavam para que eu convencesse os meus colegas mais moderados a abrir o jornal, e a sair para a rua uma edição «fantasma» de apoio ao Movimento, a exemplo do que o «Diário» estava a fazer em Lourenço Marques.

Não entendiam as minhas fugidias negativas cheias de coerência. Não com­preendiam que eu sabia que o gesto que me ditavam estava a virar contra eles, contra nós todos, as armas da Frelimo e das Forças Armadas Portuguesas leais ao M.F.A.; estavam a virar contra eles a força de quantos entregaram Moçambique à Frelimo.

Caminhando devagar, cruzei-me com grupos de soldados de Portugal que haviam enfeitado as suas armas com cravos rubros, numa grosseira imitação das foto­grafias publicadas nos jornais reportando o 25 de Abril português, e que levan­tavam a mão direita em gesto grotesco, colocando dois dedos em símbolo de vitória.

Para estes sorri. E acenei com ambas as mãos. E quase gritei: Eles eram as maiores vítimas em Lusaka. O sangue dos seus camaradas, que pintaram de honra o sertão e levantaram monumentos de bravura nas picadas mais remotas, havia sido traído pêlos seus chefes numa cidade estranha de um país mais estranho.

Desço rnais uma vez à baixa no dia seguinte.

Paro junto ao aglomerado humano que se comprime perto de um orador na Praça do Município. Conheço quem gesticula e fala: É o dr. Lúcio Sigalho, advogado do foro beirense.

Fico-o ouvindo sem interesse, mau grado entusiásticos aplausos cortem amiuda­das vezes a sua voz. A meu lado a São, que estreara uma maxi-saia que lhe pren­dia os movimentos, pede-me que abandonemos o lugar. Mas eu sinto-me atraído pêlos rostos de quantos escutam o orador, pelas expressões daquele pequeno exér­cito pacífico composto por homens sem história, por mulheres e por crianças.

Revelar-me-iam o motivo individual por que estavam  ali?

Apenas porque julgavam que cumpriam o seu dever ou por obrigação polí­tica? Ou ainda por uma tomada de consciência colectiva repentina?

Havia ali gente de toda a espécie; estava ali o povo, essa massa que constrói partidos, que apoia governos, mas que raramente os sabe derrubar.

Estavam ali, também, os «progressistas», homens e mulheres que se queriam apresentar como demolidores da velha sociedade, e que se juntavam aos oportu­nistas, demonstrando que o oportunismo e o aventureirismo político podem acasa­lar-se sem questiúnculas.

Alguém gritou que se aproximava a polícia e uma onda de inquietação varreu a desassossegada mole humana.

Olho à retaguarda e distingo um grupo de homens armados — vinte ou trinta — vestidos de negro. São também negros mas comandados por policiais por­tugueses, e trazem nas mãos pesadas matracas de madeira.

Um dos organizadores do comício usa o megafone para pedir ao povo que se sente no solo. A maioria obedece à voz de comando e aguarda.

Uma jovem fala do seu medo no meio de um grupo de raparigas, perto de mim. Tento acalmá-la usando lugares comuns: «Não nos farão mal. Estamos desar­mados e há aqui muitas mulheres e crianças», mesmo sabendo que em cenas como a que estávamos a viver o diálogo cede lugar à matraca.

O veredicto estava traçado: A força caiu sobre a multidão.

Gritos de mulheres unem-se a choros de crianças. As pessoas comprimem-se, apertam-se, sufocando-se umas às outras, e deslocam-se no mesmo sentido, querendo passar por entre duas colunas numa saída da praça.

Sinto a São soltar-se-me dos braços levada pela multidão em pânico e ergo-a do solo quando tropeça na própria saia, sentindo então sob os meus pés os corpos de pessoas desfalecidas.

Incólumes passámos entre gente agredida, protegidos por voz forte de um jovem oficial pára-quedista português, especado com um grupo de soldados de guarda aos estúdios do Aero Clube da Beira, na saída do Largo. Por nós passa­ram rostos deformados cobertos de sangue, homens gritando, mulheres transpor­tadas aos ombros, despojos de uma inútil batalha a que involuntariamente assistira.

Tento aproximar-me de uma mulher grávida amparada por populares que gritava histericamente «Bateram-me! ... Bateram-me! ...», quando o deflagrar de uma granada, seguido imediatamente por segundo estrondo, fez tremer as paredes dos edifícios e estilhaçou os vidros das montrarias dos estabelecimentos mais próximos.

Corremos pela rua fugindo ao Inferno e penetrámos com alvoroço por uma porta que se abriu à nossa passagem. Quanto tempo decorrera desde o início do tumulto que colocou em aberta hostilidade as forças da ordem e o povo?

Minutos apenas?

Sirenes de ambulâncias, e apitos aflitivos de outras viaturas, vindas da Praça do Município na direcção do Hospital indicam-nos que houve feridos. Venho para junto da porta e espreito o comprimento da artéria deserta, até que avisto, vindos em corrida na direcção do teatro do tumulto, dois homens transportando pesados e complicados engenhos fotográficos.

Eram da Imprensa estrangeira; os jornalistas de Moçambique escondiam-se em buracos escudando-se do povo, germinando ódios e recitando a sua lábia comunista mal ingerida.

O resultado da acção policial soube-se ainda nesse dia: Um morto e diversos feridos graves. «Uma coisa sem importância, um pequeno drama», dirão alguns; «Uma catástrofe», afirmarão outros. A verdade, porém era só uma: Quem não con­cordasse com a forma como decorreram as conversações em Lusaka teria de enfrentrar as kalasnicov da Frelimo, as G-3 do Exército de Portugal, e as matracas da Polícia de Segurança Pública, dirigida e comandada por graduados portugueses. O povo estava policiado e o medo armava cerco aos discordantes.

Entretanto, em Lourenço Marques, um grupo honesto de portugueses con­tinuava a sua missão pacífica aos microfones da «Rádio Moçambique Livre». Eram eles das mais variadas cores políticas. Eram apenas portugueses revoltados contra a desonra da Bandeira Nacional portuguesa, passeada pelas ruas lourenço-marquinas por um grupo de jovens brancos e mestiços, estudantes universitários comunistas.

Mas a atitude honesta desse grupo de portugueses, locutores de ocasião, havia propositadamente sido espicaçadas pêlos verdadeiros criminosos, pêlos jovens extremistas que, obedecendo às ordens do seu Partido, levaram o caos à capital moçambicana, e a acção os portugueses honestos, que, após o mostrarem ser, não teriam outro recurso além da fuga de Moçambique, deixando mais livre a actividade do grupo comunista que rodeava Samora Machel, e do Partido Comu­nista Português nas mãos de Álvaro Cunhal.

O 7 de Setembro foi, deste modo, uma forma de peneirar, seleccionando, os que não prejudicariam o avanço comunista em Moçambique. E a peneira colo­cou «fora da carroça» inúmera gente, política e apolítica, boa e má, sincera e oportunista.

7.     O   TRÁGICO   EPÍLOGO DO   7   DE   SETEMBRO

Regresso a Tete apenas no dia 13, por todas as carreiras aéreas terem estado paralisadas em Moçambique. No avião sou informado, por testemunhas oculares, do decorrer dos distúrbios em Lourenço Marques, e da forma como o Exército Português, que se encontrava dividido, actuara para a reconquista do «Rádio Clube de Moçambique».

Eu ouvira, ainda na Beira, com crescente nervosismo, a última emissão do «Rádio Moçambique Livre», adivinhando, de momento a momento, o seu canto de cisne.

Ouvira a voz do comandante provincial da O.P.V., pedindo ao cordão humano que, enquadrado por soldados comandos dissidentes, cercava o edifício do emissor, que se afastasse e deixasse passar alguém importante que iria falar às massas, no sentido de que fosse posto termo aos combates de rua. Estes, que tiveram início nos subúrbios, haviam-se espalhado por toda a cidade.

O ódio fervilhava nos gatilhos das armas automáticas e as cenas da mais desumana bestialidade iam-se registando nos bairros limítrofes da capital e em todas as artérias do seu acesso.

Mas estas mortes não se podiam justificar politicamente pois os instigadores puseram-se a recato, deixando nas mãos populares o motorista ferido que transportara quantos ofenderam, dilacerando-a no solo, a Bandeira de Portugal. Esse con­fessaria que recebera pelo seu trabalho vinte mil escudos. A revolução de folhetim, que os jovens comunistas fabricaram, transformara-se numa razão para os assassina­tos, onde todas as torpezas, roubos, vilipêndios, nos quais se agitavam fatalmente resquícios de ódio recalcado, foram proclamados como virtudes revolucionárias.

Os algozes fugiram ao julgamento. Deles quantos foram capturados? Quantos expiaram os crimes que cometeram?

Nenhum.

A Frelimo superlotaria mais tarde as prisões, mas os que lá entraram eram homens e mulheres de boa fé, que apenas haviam obedecido aos apelos da «Rádio Moçambique Livre».

E era o povo, eram os amigos, eram os parentes, os conhecidos dos aprisio­nados, que os levaram à prisão, ao os indicarem em fotografias, intencionalmente colhidas no aglomerado humano inocente que rodeou o Rádio Clube de Moçam­bique.

Os assassinos que incendiaram viaturas não permitindo a saída dos ocupantes, que não se comoveram com os gritos das vítimas inocentes que transformaram em tochas vivas, os açougueiros que degolaram mulheres e crianças depois de as violen­tarem numa infernal orgia de ódio, que percorreram as ruas entrando em todas as casas, subindo aos mais altos edifícios onde humilde gente se barricava, para prati­carem os mais horripilantes crimes, para matar, para destruir, para fazer sofrer, para saquear, numa incompreensível e injustificada sede de sangue, esses ficaram em liberdade.

A revolução, segundo a concepção bakunista, não é mais do que um desen­cadear de más paixões com um controlador no cume. Apenas essa concepção anár­quica pode justificar as consequências do 7 de Setembro moçambicano. Quantos ocuparam, no cume, os comandos do controlador da revolução, conheciam de cer­teza as teorias de Bakunine. E eles eram figurantes contratados e encenados pelo governo marxista ou marxizante português, que fingia governar e se vergava à von­tade e ao capricho de Moscovo.

A Imprensa moçambicana e portuguesa, dirigidas então pela mesma ideologia, não denunciaram, antes cobriram de louvores, quantos devolveram os produtos dos saques, esquecendo-se que cada objecto devolvido, móveis, cobertores, lençóis e louças, representava o corpo selvaticamente assassinado do seu proprietário. Antes cobriram de louvores quem devolvia um pequeno berço às autoridades, olvidando que ele representava a cama de uma criança portuguesa degolada ou desventrada.

O tempo era de louvar, e a Imprensa moçambicana, ao reencetar o seu con­tacto com as massas, aplaudia quem, respondendo ao apelo da Frelimo, entregava quanto roubara depois de assassinar. Adulavam-se os assassinos, e a verdade nunca foi contada na Imprensa moçambicana.

Nunca se disse, também, que os distúrbios foram propositadamente engendra­dos. Falou-se do início do imbróglio. Disse-se que um grupo de rapazes passeou na baixa de Lourenço Marques uma bandeira portuguesa, mas não se disse que esses mesmos rapazes eram estudantes universitários comunistas, para que a explo­são de violência assumisse uma aparência menos estritamente política do que na verdade possuía.

Recordo com raiva o relato de um homem:

Sua mulher, licenciada em Farmácia, exercia a sua profissão na Matola, regressando a casa, em Lourenço Marques, todos os dias ao fim da tarde. Teme­rosa pêlos relatos de atrocidades, que ouvira de gente assustada, decidiu regressar mais cedo, telefonando primeiramente ao marido a dar conta da sua resolução.

O marido, também temeroso, foi ao seu encontro, a tempo de ouvir os gritos lancinantes da mulher dentro do automóvel em chamas, cercado por centenas de assassinos que gozavam o espectáculo em diabólica orgia. Ele fugiu levando nos ouvidos como música do mais trágico drama os últimos gritos de desespero e morte da mulher incinerada viva.

Ela fora apenas uma portuguesa entre centenas, entre milhares de vítimas — o número nunca foi divulgado pela Imprensa moçambicana — sacrificadas como ela. Ela fora uma das colonizadoras, umas das fascistas, um dos monstros a des­truir, que a Imprensa comunista fabricava diariamente nas suas edições dirigidas por portugueses traidores, por virtuosos intelectuais ultra-revolucionários.

Lembro, também, a descrição de um homem que perdeu toda a família:

Estava em Lourenço Marques e, mal tomou conhecimento das trágicas ocorrên­cias, dirigiu-se para a sua casa nos subúrbios, pedindo protecção a uma força mili­tar portuguesa, que o escoltou até à residência. Todas as portas estavam arrom­badas. Junto à escada de acesso jazia a sua filha, de catorze anos, numa poça de sangue, degolada e com os membros decepados. Tinha sido violentada antes de morrer. Nos compartimentos interiores espalhavam-se os corpos de seus irmãos e tios, vítimas das mais desumanas mutilações.

Este comprido filme de terror e ódio — de que apenas projecto ao leitor duas imagens — afastou de Moçambique milhares de portugueses em pânico.

Mas a maioria ficou.

Essa maioria ficou na Frelimo, no guia do povo, no braço armado do povo moçambicano. Mesmo aqueles que percorreram as morgues, procurando inutilmente nos corpos calcinados e desmembrados os despojos dos seus entes queridos, ficaram. Havia um Moçambique a construir, e não afirmava a Imprensa que foram as For­ças Populares de Libertação, o braço armado da Frelimo, que defenderam o povo e puseram fim à contenda que ceifou vidas e haveres, que destruiu quase totalmente o parque industrial de Lourenço Marques?

Não diziam que foi a Frelimo o símbolo da Paz, a abençoada pomba branca dos conturbados dias de Setembro de 1974?

Que importavam as afirmações de testemunhas oculares, de sobreviventes, que viram homens, armados e fardados com os camuflados da Frelimo, assassinando pessoas indefesas e saqueando residências, embriagados no mesmo álcool sanguiná­rio? Que importava — ou continua a importar tudo isso — se os comunicados ofi­ciais e os artigos de Fernando Couto e de seu filho Fernando Amado Couto, dois jornalistas portugueses apregoadores das virtudes frelimistas e dos dons de líder de Samora Moisés Machel, afirmaram não ser verdade, nas páginas do «Notícias»?

Não se passara nada de anormal em Moçambique?

Mas nada, absolutamente nada. Apenas o poder efectivo popular estava na rua e os crimes tinham a denominação de acção revolucionária. Havia um país a cons­truir e a ocorrência era de rotina. Almeida Santos diria, exactamente um ano depois, já aboletado no Governo de Portugal a que se grudaria:

«Que não tenha sido possível evitar incidentes ao nível de populações carre­gadas de ressentimentos, é algo que só não compreenderá quem se situe fora do mundo real e persista em elaborar os seus juízos a partir de um momento hipotético e fantasista. Isto para não ter de recordar que alguns dos que mais nos criticam foram directamente responsáveis por esses incidentes. Estou a lembrar-me da desas­trada insurreição do Rádio Clube de Moçambique que causou à descolonização danos de incalculável dimensão...»

A fantasia ou a desinformação estavam, como o futuro viria a provar, com Almeida Santos. Pois embora o seu Governo aconselhe e exija que é necessário desdramatizar a descolonização, a escalada do terror apenas em Setembro de 1974 teve início. Essa data foi a partida para o desastre. O estertor prolongou-se.

A história de Moçambique, como país, só então nascia. Mas era escrita com letras de sangue.

8      ÊXODO:   RESCALDO   DO   MEDO

Construir um forte país era a intenção generalizada em quantos, brancos e negros, ficaram em Moçambique após o 7 de Setembro. Pouco tempo volvido, porém, quando a população portuguesa se resume a uma minoria sofredora que martela pregos nos seus contentores e procura passagens nas agências de viagens, todos receosos de mais um Decreto, de mais um discurso de Samora Machel, de mais uma onda de prisões, merece a pena recordar o que foram os últimos meses de terror.

Nas cidades, e poucos meses volvidos após a Independência, assiste-se a espectáculos que jamais se imaginariam:

Longas bichas de gente, de todas as cores, estendem-se junto aos Consulados de Portugal, formadas desde as madrugadas. Mulheres negras e mestiças, velhas e jovens, buscam homens solteiros, jovens ou velhos, para casarem por um dia para que, mercê de um simples documento legal, possam ser consideradas portuguesas, adquirindo o direito a um lugar ao sol em terras lusitanas. Mulheres mestiças e negras, jovens e velhas, pedem, imploram nos cafés, nos bares, nos restaurantes, nas ruas, que qualquer português idoso as perfilhe, por piedade, para abalarem de qualquer modo, de bolsos vazios, de roupas coçadas, de olhos fartos de chorar, a caminho do desconhecido europeu que para todos simboliza liberdade.

O que motiva este êxodo? O que obriga e empurra os jovens negros para os balcões do Consulado, levando como documentos de identificação a caderneta mili­tar e as mais diversas condecorações de combate, e, implorando primeiro, pedindo depois, exigem a nacionalidade portuguesa?

Não era na realidade a Frelimo o guia do povo? Estariam errados os gover­nantes de Lisboa ao prometerem que as vidas e os bens dos portugueses estavam defendidos, quando os próprios naturais se sentem inseguros e assustados?

O que sucedeu então?

Quem destruiu e como foi destruída a esperança que fez chorar de alegria os olhos de tantos moçambicanos na noite de 25 de Junho de 1975, na grande noite da Independência, para que os mesmos olhos chorem agora de desespero e de revolta?

Onde está a liberdade, a tão apregoada liberdade, quando os calabouços são poucos para os milhares e milhares de reclusos que não sabem porque foram con­denados; para as centenas de pessoas que em campos de trabalho pedem por cle­mência a morte, desconhecendo em que razões se baseiam os seus algozes para os indescritíveis tormentos que lhes infligem, dia após dia, sem que um tribunal qualquer os absolva ou condene?

Onde está a liberdade, após a Independência?

Estará na fome que mata as enfraquecidas populações do interior, nas longas bichas formadas desde as primeiras horas do dia nas ruas das cidades e das vilas em busca de um simples pão para a boca, nas agressões dos homens fardados do Partido, nas arbitrariedades dos oportunistas que formam os Grupos Dinamizadores e as Comissões Administrativas de Trabalhadores, no poder cego e maligno conce­dido aos Comissários Políticos, que dispõem da liberdade e da vida de quantos lhes caem nas mãos, nas promessas de guerra com países que sempre respeitaram os princípios básicos das leis internacionais de vizinhança, ou nos discursos agres­sivos do Presidente da República Samora Machel?

Então, é essa liberdade a razão do êxodo dos portugueses, dos indianos, dos chineses e, sobretudo, do próprio povo moçambicano. E é em nome dessa liber­dade, que encheu de parangonas a Imprensa mundial, é em nome da pureza ideológica e da unidade dos princípios revolucionários marxistas, que todos os dias, a todas as horas, em todas as regiões de Moçambique, as forças da Frelimo, o grande exército do proletariado, composto por operários sem indústrias, e por agricultores sem campesinato, fardados e armados, aquartelados e alimentados pelo Governo, vai praticando as mais mesquinhas vinganças, apoiado por denunciadores que atiçam ódios em troca de situações políticas e de emprego.

         Motivos para as capturas não é necessariamente importante que existam. Mas este estado de espírito colectivo obriga a que o filho busque o pai junto das auto­ridades do Partido, a mulher o marido, o marido a mulher, o pai o filho, quando qualquer deles demora no regresso ao lar. Em cada ausência imprevista todos os seus familiares pensam que o ausente está na prisão, onde se encontra fulano (que ninguém sabe porquê), onde está beltrano (parece que sem motivo), onde estão ou estarão todos os nossos amigos e inimigos.

Estará neste regime drástico de pavor, de intimidação, a causa do êxodo do povo moçambicano com rumo a Portugal, ao Malawi ou à África do Sul?

Por isso e por muito mais. O terror impossibilita a expressão do pensamento. O que se sabe ouve-se ciciado a meia voz por amigos de muita confiança e em lugares onde mais ninguém se encontra. Quando é iniciada uma conversa logo alguém afirma atemorizado: «Se não se calam eu vou embora. Não quero ir para a cadeia».

É neste clima psicológico que eu iniciei a Reportagem a que me propus, desafiando, com a minha atitude, as represálias da Frelimo, da mesma forma que a enfrentara, de máquina fotográfica e de caneta, nas nervuras traiçoeiras dos capinzais do interior, em Reportagens de guerra.

E a minha afronta era continuar a falar, já que não me era permitido escrever. Um dos indivíduos que mais vezes me mandava calar era o dr. B., um advogado. Homem idoso, honesto. Reside em Moçambique há mais de trinta anos e não possui fortuna nem economias. Aderiu na primeira hora à Frelimo, mas com hones­tidade. Aprendeu a dedilhar todas as teclas do socialismo científico, empregando as teorias de Karl Marx e de Friedrich Engels quando queria convencer interlo­cutores pouco acostumados a divagações filosóficas.

Aceitou com prazer a dupla nacionalidade sem trair Portugal, comprando deste modo o mais caro bilhete para o Inferno. Nacionalizaram-lhe o escritório. Congelaram-lhe a conta bancária — uma ninharia que não lembrava ao Diabo.

Decidiu, como recurso de subsistência, dedicar-se ao professorado e foi admi­tido como professor de Direito Comercial e de Noções de Comércio. O vencimento que auferia, com esta nova profissão, não satisfazia a sua forma normal de vida mas alimentava-o e vestia-o. Conhecia pela primeira vez na prática o comunismo que aprendera em teoria.

Foi saneado por informação de uma jovem professora primária, inexperiente, mas frelimista, presente sempre à abertura de latrinas e às machambas do povo, com a sua enxada oportunista que a levou, de um dia para o outro, de incompe­tente professora recém-saída do Magistério a inspectora provincial dos Serviços de Educação e membro influente do Departamento de Educação e Cultura. O seu nome interessa para quando for feita a biografia dos traidores de Portugal — é por­tuguesa, e cruzará, qualquer dia, contigo em Lisboa. Trata-se de Fernanda La Salette Teixeira.

O dr. B., porém, considerando-se comunista, e por amizade, aconselhava-me moderação no falar, quando eu referia injustiças, quando eu falava sobre ocorrên­cias que vinham chegando ao conhecimento da Delegação do jornal. Respondia-lhe sempre:

— Vocês  falavam  e  deixaram   de  falar.   Eu  escrevia  e  deixei  de   escrever...

Na verdade eu deixara de contribuir com os meus trabalhos para o preen­chimento das páginas do «Notícias da Beira». As minhas Reportagens iam pouco além dos discursos de gente influente do Partido — que me eram entregues pelo Departamento de Informação e Propaganda, e de descrições, mais ou menos curtas, claras e concisas, dos ambientes onde os discursos eram pronunciados.

Reportava as manifestações, entrando sempre em choque com os exageros que lia nos outros jornais, tanto no que se referia ao número de manifestantes como ao entusiasmo popular.

Escrevi sobre a «Campanha de Saneamento do Meio Ambiente», iniciativa com que o Governo tentou lutar contra a doença, mandando abrir latrinas junto a cada residência, lugar de trabalho ou de concentração de massas, obrigando os brancos portugueses, das cidades, a abandonarem os seus lares nas madrugadas dos domingos, para voluntariamente abrirem, à força de enxada, junto aos casebres dos negros do interior, os buracos onde estes depositariam os excrementos.

E era feita chamada pelo secretário do Grupo Dinamizador do bairro, e regis­tadas as ausências, que, em falta de forte «sagwate» (gorjeta), seriam levadas ao conhecimento das estruturas superiores do Partido.

Esses brancos voluntários ouviram, como eu ouvi, grupos de negros nega­rem-se a colaborar, afirmando alguns:

«Se não comermos não cagamos. Temos fome. Tragam-nos comida!»

Os brancos portugueses, porém, sujeitaram-se a todos os vexames, e isso fui eu obrigado a silenciar, quando, nessa humilhante sujeição, se encontrava verda­deiramente a notícia que interessava a qualquer profissional de Imprensa. Mas as latrinas foram um fracasso, pois não haviam passado de um capricho do ministro da Saúde, dr. Helder Martins, um dos dirigentes da Frelimo e um dos vinte médi­cos que ficaram em Moçambique depois da Independência, para assistirem a uma população de nove milhões de pessoas.

As latrinas foram um fracasso mas proporcionaram, para gáudio dos dirigentes do Partido, motivos suficientes para amesquinharem o português, para o humilharem, para o rebaixarem.

Que prazer sádico, que torrentes de gargalhadas, a substituir o tradicional rilhar de dente raivoso, teriam despejado os generais sem estrelas do Partido quando souberam que, por ordem do comissário político de Tete, um grupo numeroso de guerrilheiros, armado de Kalashnicov, invadiu a Igreja da cidade e expulsou todos os cristãos, alegando, como motivo para a selvática vassourada na Religião: «Hoje é Dia de Latrinas, não é Dia de Deus».

Esqueceram-se os fanáticos socialistas da verdade de Claude Prévost, que tão bem se adapta à sua marxizante atitude: «Dizer merda para Deus é prestar-lhe a homenagem de que Ele existe, o que deve ser a sua reivindicação estrutural mais premente...».

Desta forma eu, não escrevendo o que queria, não escrevia o que o Partido desejava e ordenava. Mas aprecie-se, para necessário esclarecimento da situação da Imprensa moçambicana poucos meses após a Independência, os trabalhos apresen­tados numa edição que passou a ser normal do «Notícias da Beira», escolhida ao acaso:

«Objectos imediatos do Partido na política interna é externa»

Trata-se de um artigo que refere um Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em notícia da agência noticiosa comunista «T.A.S.S.».

«China — Carta  de  oito  pontos  sobre  a  produção  agrícola»

O autor é Paig Ming e o artigo foi extraído do «Chine Features».

«R.D.A. na via do socialismo — A construção socialista»

Não traz assinatura mas a origem é comunista e refere-se à Alemanha Demo­crática.

«O Congresso da Paz e do Bem-Estar»

É da autoria de Vladimir Lomeixo, soviético.

«Conquistas do Socialismo — O sistema educacional da R.D.A. — Informação documental»

Não assinado, o trabalho é possivelmente da autoria de um dos redactores comunistas do jornal, salientando-se que José Quatorze havia, há pouco, regressado da Alemanha Vermelha, onde se deslocara com o patrocínio da Frelimo. O conteúdo da prosa refere-se à educação na República Democrática Alemã.

«Cinco anos do Tratado de Moscovo»

É seu autor Y. Zakharov e foi retirado do «International Affairs».

«Desencadear a grande ofensiva para libertar a mulher»

Artigo local, de espírito marxista, distribuído pelo Departamento de Infor­mação e Propaganda do Partido.

O jornal tem ainda mais algumas pequenas locais, com ideologia comunista, e, finalmente, uma notícia de Portugal com o mesmo teor ideólogo:

«Octávio Pato denuncia conluio da Direita»

Falta examinarmos as gravuras:

Mao-Tsé-Tung, a três colunas, com a seguinte legenda: «Mao-Tsé-Tung: Grande revolucionário e líder da revolução popular da China, transformada hoje, apenas em pouco mais de trinta anos, num dos países mais progressistas do mundo. Do território colonizado e pilhado pelas potências ocidentais, através de uma linha justa, a República Popular da China obteve estrondosas vitórias nos mais diversos sectores da sua vida.»

Outra, de um grupo de crianças loiras tomando uma refeição. A quatro colu­nas, assim legendada: «Os jovens na República Democrática Alemã dispõem de um ensino verdadeiramente revolucionário, que lhes permitirá prosseguir, concluídos os vários cursos, a consolidação das vitórias socialistas. Pondo a ciência e a técnica efectivamente ao serviço do povo, o sistema socialista tem alcançado, ano após ano, sucessivas e consideráveis vitórias no caminho do progresso, do bem-estar social, da igualdade social.»

         O exemplar do «Notícias da Beira» a que jogo mão é o n.° 9455. Serão o «Pravda», ou o «Izvestia», mais comunista do que ele? Este exemplar da Imprensa moçambicana teria maior aceitação nas ruas de Pequim, de Moscovo ou de Berlim, do que nas artérias da Beira, de Lourenço Marques ou de Nampula. E, por mais descabida que pareça a afirmação, os seus «fazedores» são portugueses, mostrando todos eles, cinicamente, mercenariamente, uma adoração cega, quase um casamento com as directrizes do Governo e com as ordens da Frelimo.

O fim em vista desta actividade da Imprensa foi ganhar, com propagandas integradas numa campanha organizada, mais adeptos à ideologia importada para escravizar a maioria. E como numa guerra os meios não contam, nem há lugares para homens com escrúpulos — numa guerra política desta espécie, entenda-se—, enganar e mentir passou a ser a Bíblia da Imprensa moçambicana, onde eu não me queria integrar.

E essa foi, conscientemente, a razão do meu silêncio profissional, que causou estranheza a muito boa gente e alertou as autoridades governamentais.

O Partido sabia que eliminada a oposição — mesmo que esta se manifestasse pelo silêncio — as dificuldades que encontraria nas massas ledoras de jornais seriam minimizadas. Deste modo estabelecia-se uma gentil troca de favores entre a Frelimo e a Informação, desde que desse entendimento sobressaísse a sujeição da última.

O número de exemplares por edição, porém, diminuía. O povo alfabetizado passou a desprezar os jornais e a odiar quem neles escrevia. O Partido não se importunou.

As empresas editoras, que paradoxalmente continuaram a ser consideradas particulares, deixaram de pagar aos credores, tendo esta atitude o beneplácido do Governo. As contas de luz, de água, de telefones e telex, foram trepando nas Execuções Fiscais sem que o Governo se preocupasse, passando a considerar essas dívidas aos cofres estatais como uma espécie de disfarçado subsídio. Deixou de existir o pagamento às agências noticiosas por as notícias por elas difundidas não interessarem à informação moçambicana, passando as fontes de origem informativa ao domínio governamental, que ofereceu regime exclusivista à A.I.M. (Agência de Informações de Moçambique) e aos serviços noticiosos distribuídos pelas repartições de propaganda das embaixadas comunistas. O papel, e outras matérias-primas essen­ciais para a feitura dos jornais, começaram a ser fornecidos pelo Governo, que, ao mesmo tempo, subsidiava o aparelho bélico de defesa das Redacções, traduzido pela presença constante, junto dos edifícios das editoras, de dezenas de «gorilas», armados com armas soviéticas, para defenderem os jornalistas do povo das arre­metidas das massas populares.

          Aos redactores e repórteres também pouco preocupou a situação de economia decadente das entidades editoras, pois a receita da venda de jornais, mesmo mínima, ia sendo suficiente para os pagamentos dos vencimentos — embora liquidados com atrasos — e essas importâncias eram os únicos débitos que a empresa liquidaria. Aliás, o Governo e o Partido não se preocupavam em pedir contas aos membros das Comissões de Trabalhadores, desde que estes, por seu lado, não lhes solici­tassem financiamentos, permitindo este tácito acordo que os homens dos jornais se aboletassem com os restos do banquete, a seu bel-prazer. Por mim passaram débitos de garrafas de vinho, cervejas e pacotes de cigarros caros, em vales do repórter Mário Ferro para serem liquidados pela Comissão de Trabalhadores. E esta liquidou sem discutir, pois o crime, que se elevava a milhares de escudos, fora praticado por um membro do Grupo Dinamizador, intocável, portanto.

Os jornalistas mercenários tinham, pois, pouco a perder e muito a ganhar com a venda da sua consciência, restando-lhes, ainda, no arcaico baú das suas esperanças, o regresso a Lisboa quando a vaca não mais pudesse ser ordenhada. E ali, junto aos portugueses que tudo esquecem e que tudo perdoam, aguardariam, como tantos continentais, assíduos mostruários de cafés sofisticados, que a política de haraquirismo de Álvaro Cunhal tomasse de assalto, com a conivência dos acordantes de Lusaka, ou de parte deles, os comandos estratégicos de Belém e de S. Bento.

Foi neste ambiente de traição que escrevi a Reportagem que só agora ides ler, iniciada e quase completada em Moçambique, na relativa insegurança de uma semi--clandestinidade jornalística, alheio totalmente a quaisquer submissões à tutela mar­xista da Frelimo. Nela se encontrarão alguns esclarecimentos a factos que as auto­ridades portuguesas teimam em considerar secretos, para por eles não responderem perante os portugueses.

Aceito as consequências do meu acto.  Ele tinha de ser praticado.

l Preso em Quelimane após a queda do Governo a que pertencia, foi diversas vezes agredido na prisão. Velho e puro democrata, abandonou a prisão para morrer na sua resi­dência. Um dos seus assassinos foi Castro Lobo, já então elemento directivo do P.I.C.