Quantos Morreram em Mueda?


Por GUILHERME ALMOR DE ALPOÍM CALVÃO*
Domingo, 16 de Junho de 2002

No livro "Guerra Colonial", publicado no "Diário de Notícias" e de autoria de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, a páginas 106 afirma-se que "no dia 16 de Junho de 1960 (....) reuniram-se em Mueda milhares de agricultores da região para exigirem do Governador, presente no local, a melhoria das condições de vida e a possibilidade de criação de cooperativas. Depois de mais de quatro horas de reunião sem qualquer acordo, as autoridades acabaram por dispersar a multidão com recurso às armas, o que se traduziu por verdadeiro massacre, julgando-se que possam ter morrido cerca de meio milhar de pessoas".

Quatro anos mais tarde, o segundo dos autores acima referido reescreveu no livro "Nó Górdio" que morreram na região de Mueda cerca de uma vintena de manifestantes. A grande discrepância entre os números apresentados revela falta de rigor histórico, cuja causa deixo ao julgamento de cada um. Pela minha parte, resolvi consultar os boletins semestrais do Arquivo Histórico de Moçambique da Universidade Eduardo Mondlane, organismo que tem sistematizado os inúmeros arquivos documentais deixados pela administração portuguesa de Moçambique, num trabalho que é de louvar e que tem permitido a numerosos investigadores moçambicanos apresentar teses de mestrado e doutoramento em História, de proveitosa leitura para que se interessa pelo passado recente do grande Estado da África Oriental.

O número 14, de Outubro de 1993, dedicado á província de Cabo Delgado (anterior à publicação de "Guerra Colonial"), apresenta importantes esclarecimentos sobre o assunto: " Exemplo disso é a contradição entre as 600 vítimas do massacre, na versão do movimento nacionalista (número a que se chega pela contagem eventual das bicicletas deixadas no terreno?) ou os 17 mortos segundo algumas testemunhas oculares (ver entrevista de Daniel Muilundo)". O relatório militar português fala em 14 mortos e alguns feridos, o que é perfeitamente consistente com o número referido pelas testemunhas moçambicanas deste lamentável incidente.

Quanto às causas avançadas para a "banja" com o Governador e citadas pelos mencionados autores, convém esclarecer que as chamadas cooperativas (em maconde liguilanilu, que significa, compreendemo-nos todos) - aliás, sem nenhuma actividade colectivizada - foram fundadas em 1957 (Sociedade Algodoeira Voluntária de Moçambique) e em 1960 (Machamba 25) pelo que não constituiam motivo de reclamação.

A minuciosa informação número 269/B/11, de 24 de Novembro de 1960, enviada pelo inspector administrativo Pinto da Fonseca ao Secretário Provincial do Governo de Moçambique, descreve pormenorizadamente os acontecimentos, realçando os protestos que os porta-vozes dos populares levantaram contra a exigência feita pela administração da circunscrição de serem obrigados a vender galinhas e cabritos a preços extorsionários.

Na reunião estiveram presentes cerca de 5 mil elementos da população cujos ânimos se exaltaram e donde resultaram agressões ao Governador do Distrito e a outros funcionários. A secção de cipaios da circunscrição abriu então fogo sobre a multidão, tendo entretanto chegado um pelotão de infantaria que secundou a acção dos cipaios e a dispersou, deixando alguns mortos (14?17?) e feridos no terreno.

As fontes moçambicanas dizem ainda que os dois porta-vozes da população, membros da MANU (Maconde African National Union), além das reclamações atrás referidas, pediram a independência para o planalto maconde afim de o integrar na região confinante e de similaridade étnica da Tanzânia.

Segundo duas testemunhas moçambicanas ouvidas pela equipa do Arquivo Histórico de Moçambique em 7/7/81 "Quando a MANU apareceu nós confiámos nela porque era o movimento que vinha para nos libertar, mas no decorrer do processo verificámos que não havia indivíduos capazes de dirigir o movimento. Os elementos que existiam eram ladrões porque enganavam as populações e comiam o dinheiro, tal como descobrimos depois. A preocupação desses líderes era de roubar o dinheiro das pessoas. O massacre de Mueda não teria ocorrido se os líderes tivessem tido a calma necessária".

A informação nº 269/B/11 que já mencionámos, deu origem a processos disciplinares contra o Administrador da circunscrição e outros funcionários, que foram punidos pelos códigos então em vigor. É possível que depois da independência de Moçambique, alguns deles se tenham transformado em ardentes apoiantes da Frelimo...

Esperamos que numa próxima edição sejam introduzidas as correções que se impôem nas páginas da "Guerra Colonial", a bem de uma perspectiva histórica mais equilibrada e menos distorcida.

*Comandante da Marinha reformado e ex-combatente na Guerra Colonial

Jornal Público (16.06.2002)

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Do livro de Eduardo Mondlane – Lutar por Moçambique

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    O  outro acontecimento, também ligado às cooperativas,

foi um aumento da agitação espontânea, que culminou numa

grande manifestação em Mueda  em 1960. Esta manifestação,

embora passasse despercebida no resto do Mundo, actuou

como catalisador sobre a região. Mais de 500 pessoas foram aba-

tidas pelos Portugueses, e muitos daqueles que até então não

tinham encarado bem o uso da violência denunciavam agora

a resistência pacifica como fútil. A experiência de Teresinha Mblale, agora militante da FRELIMO, mostra porquê: "Eu vi como os colonialistas massacraram o povo em Mueda. Foi quando eu perdi o meu tio. A nossa gente estava desarmada quando eles começaram a disparar." Ela foi uma de entre os milhares que decidiram nunca mais estarem desarmados, em frente da violência portuguesa.

    Alberto Joaquim Chipande, então com a idade de 22 anos,

e agora um dos chefes em Cabo Delgado, dá-nos um relato

mais completo:

 

    "Certos chefes trabalhavam no meio de nós. Alguns deles

foram levados pelos Portugueses -Tiago Muller, Faustíno

Vanomba,  Kibiriti Diwane- no massacre de Mueda em 16 de

Junho de 1960. Como é que aquilo aconteceu? Bem, alguns

dos homens puseram-se em contacto com a autoridade e pediram mais liberdade e mais salário... Depois, estando o povo a dar apoio a estes chefes, os Portugueses mandaram polícia pelas aldeias, convidando as populações para uma reunião em Mueda.

Vários milhares vieram ouvir os Portugueses. Como depois

se verificou, o administrador tinha pedido ao governador da

província de Cabo Delgado que viesse de Porto Amélia e trouxesse uma companhia do exército. Mas estas tropas esconderam-se ao chegarem a Mueda. Ao princípio não as vimos. Então o governador convidou os nossos chefes a entrarem no edifício da Administração. Eu estava à espera do lado de fora. Ali estiveram durante quatro horas. Quando saíram para a varanda, o governador perguntou à multidão quem queria falar. Muitos queriam falar, e o governador disse-lhes que se colocassem à parte.

    Depois, sem mais uma palavra, mandou a policia amarrar

as mãos daqueles que estavam à parte, e a polícia começou a

bater-lhes. Eu estava ao pé. Vi tudo. Quando o povo viu o que estava a acontecer, começou a manifestar-se contra os portugueses, e os portugueses limitaram-se a mandar avançar os camiões da polícia para lá meter os presos. Contra isto continuaram as manifestações. Nesse momento a tropa ainda estava escondida e o povo avançou para a polícia, tentando impedir que os presos fossem levados dali. Então o governador chamou a tropa, e, quando os soldados apareceram, mandou-os abrir fogo. Mataram à volta de 600 pessoas. Agora, os Portugueses dizem que castigaram este governador, mas claro que se limitaram a mudá-lo de lugar. Eu próprio escapei porque estava perto dum cemitério onde me consegui esconder, e depois fugi,"

 

    Depois deste massacre, nunca mais o Norte podia voltar

à normalidade. Em toda a região tinha-se levantado o mais

amargo ódio contra os portugueses e era evidente, uma vez

por todas, que a resistência pacífica era fútil.

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