Culturas, sonhos e memória da Ilha de Moçambique

 

Adelto Gonçalves

 

 

            Cercada por uma atmosfera de mistério, a Ilha de Moçambique, ao longo dos anos, sempre motivou o canto dos poetas, desde Luís de Camões e Tomás Antônio Gonzaga, que nela viveram, até Jorge de Sena, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Filipe Castro Mendes, Alexandre Lobato, Luís Carlos Patraquim,  Eduardo Pita, Eduardo White, Virgílio de Lemos e Nelson Saúte, que, em nossa época, encantaram-se com a sua decadência e os tempos que evoca.

Foi não só para tornar essa Ilha mais conhecida dos brasileiros como reunir estudiosos e poetas que a cultivaram em seus escritos que a Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro organizou, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Instituto Camões, o Colóquio A Ilha de Moçambique: o entrecruzar de culturas, sonhos e memória, realizado nos dias 25 e 26 de setembro de 2001.

A produção apresentada no Colóquio sai agora, um ano depois, num dossiê no número 3 da revista Metamorfoses, reunindo não só os textos das mesas-redondas  apresentadas pelos participantes convidados a debater a importância da Ilha e outros enviados mais tarde, mas também material iconográfico relativo a esse espaço insular considerado pela Unesco como representativo do “Patrimônio Cultural da Humanidade”.

            De Eugénio Lisboa, que não pôde comparecer ao encontro, traz um texto em que o autor conta que esteve “na Ilha tão sonhada,  tão procurada, tão adiada”, apenas 24 horas ao todo, de modo que confessa que nunca chegou bem lá estar. O que, por outro lado, dá-lhe a oportunidade e o poder de continuar a sonhar com a ilha.

Já Jorge Fernandes da Silveira, professor de Literatura Portuguesa da UFRJ, preferiu rememorar os dias de Camões na Ilha a partir dos versos de Jorge de Sena que mostram o poeta numa atitude anti-épica, “em cócoras”, e, em seguida, já “alevantado das rochas depois de obrar, com a mão no sexo, `a portuguesa distraído, como se fosse a espada ou a pena da mão a construir a pátria”, fitando o mar e sonhando que “a Ilha já não mais dividisse, fosse toda ela de Amores, Única, o Paraíso”.         

            Em “Muhipiti, a ilha de coral”, o historiador e poeta Rui Rasquilho, conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Brasília, preferiu traçar um panorama da Ilha de Moçambique ao tempo em que os portugueses a avistaram pela primeira vez e os anos iniciais do século XVI em que, “simultaneamente com a carreira da Índia, trafegava também a carreira de Moçambique feita com navios costeiros que traziam tecidos indianos e contas, fundamentais para as trocas comerciais dessa região costeira”.

            Em outro texto, Ana Virginia Pinheiro, bibliotecária da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional, faz uma profunda analise das marcas d’água do manuscrito “A Conceição”, de Tomás Antônio Gonzaga, existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, constatando que os papéis utilizados pelo poeta para escrever o poema na Ilha de Moçambique são aparentemente de origem inglesa e italiana, produzidos entre o final do século XVIII e o primeiro quartel do século XIX, e identificam o manuscrito como “de época”, isto é, com as marcas GiorMagnani e AlMasso utilizados comumente pela administração portuguesa naquele tempo. Está claro que, na época, como procurador da Coroa, Gonzaga utilizava para poetar os mesmos papéis que usava em seu oficio de burocrata.

            Em “Ilha cheia de historias”, José Luís Cabaço, ex-professor do Instituto Superior Pedagógico Universitário, em Maputo, lembra do tempo em que, menino, passava as férias no Lumbo e viu entrar na baía um “pangaio da Índia” e seus marinheiros africanos islamizados, fazendo, em seguida, um retrospecto da história da Ilha de Moçambique, desde a administração lusa até  os dias de hoje em que um acelerado processo de deterioração ameaça esse patrimônio da Humanidade. 

            Em “Cantares sobre a Ilha de Moçambique”, Maria Nazareth Soares da Fonseca, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica, de Belo Horizonte, Minas Gerais, ampara-se em textos, na maioria literários, publicados por Nelson Saúte e António Sopa em A Ilha de Moçambique pela voz dos poetas (Lisboa, Edições  70, 1992) e por Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco em Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX (Rio de Janeiro, Faculdade de Letras-UFRJ, 1999), para “restaurar a memória de um lugar banhado pelo Indico, imerso em vestígios, em arcabouços exteriores, em signos visíveis de muitas histórias que ali se construíram”.

            Rita Chaves, professora de Literatura Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo e professora visitante da Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, trata de discutir a ausência da Ilha de Moçambique como tema na literaturas, nas últimas décadas, “o que funda em expressivo contraste com a posição de relevo alcançada nos anos anteriores `a Independência, fato registrado por um de seus cultores, o jornalista e escritor Nelson Saúte”. E cita Luís Carlos Patraquim e Eduardo White como raros exemplos de poetas que voltaram seus olhares para a ilha.

            Embora tenha participado do Colóquio, Patraquim mandou sua contribuição para a revista só em janeiro ultimo – um poema em prosa em que rememora uma viagem a Muhipiti como uma ida a sua Itaca, “só Muhpiti iridescente afagando a pedra, empastelando o m’sirro, ondeando as ancas ao acorde do tufo, esgarço desejo ritmando-se com o N’Sopé, possuindo-se num coito de si e da tão revolta memória agora deitada sobre os panos, nua, arfando. O minarete túmido quando o ventre grávido da lua se ergue da fimbria do mar e vem deitar-se sobre a noite. E a ilha adormece. Eterna. Como a primeira palavra depois do caos”.

            Outro poeta, Nelson Saúte, preferiu reproduzir o itinerário poético que o conduziu `a descoberta de Muhpiti, mas sem deixar de se referir ao tempo presente, lembrando que não basta a sagração do macua, swahili, árabe, português, que lá se falam. “A Ilha, de que somos tributários, como prole no processo de moçambicanização”, diz, “exige de nós, que a amamos, também uma intervenção cívica”. O também poeta Virgílio de Lemos, “herdeiro de culturas e civilizações crioulas”, que há tantos deixou Moçambique por problemas políticos, em outro poema em prosa, fez uma homenagem “`as mulheres crioulas da ilha – makuas, kimoenes, mulheres pardas, azuladas ou roxas, brancas do azul índico e da cor alva da lua de m´siro”.

Do dossiê, constam ainda textos de Melania Silva de Aguiar, diretora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e doutora em Letras, que escreveu sobre  Marília de Dirceu: a lição retificadora das fontes”, e  de Ana Mafalda Leite, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de Lisboa, que reuniu poemas seus sobre a Ilha de Moçambique. Embora não tenha participado do Colóquio por questões de saúde, o poeta José Craveirinha, vencedor do Prêmio Camões de 1991, teve a crónica “A voz do maulide”  incluída no dossiê.

Com Luís Filipe Castro Mendes, cônsul-geral de Portugal no Rio de Janeiro, há uma entrevista em que o poeta ressalta a ironia da História que fez com que Camões e Gonzaga, homens em luta com a miséria e a opulência naqueles confins do sistema imperial, viessem a ser dois poetas fundadores da expressão poética em língua portuguesa. Por fim, do autor destas linhas, consta o ensaio “Moçambique, a ilha dos amores e dos poetas”, já publicado neste Das Artes Das Letras em 29-10-2001 e 5-11-2001.

 

 

 

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METAMORFOSES, nº 3. Rio de Janeiro/Lisboa, Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Editorial Caminho, 310 págs., 2002. E-mail: cat-sena@letras.ufrj.br

 

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999) e Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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Nota:

- Em breve MACUA DE MOÇAMBIQUE disponibilizará os textos de todas as intervenções no Colóquio sobre a ILHA DE MOÇAMBIQUE, realizado na UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO em 25/26 de Setembro de 2001.