I Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

Centro de Estudos Portugueses

Universidade de São Paulo, 27-30 de Outubro 2003

 

 

 

 

LITERATURA E O CONCEITO DE AFRICANIDADE

Intervenção de Luis Bernardo Honwana

 

 

 

 

A vastidão dos assuntos arrolados no temário deste encontro é a um tempo aliciante e inibidora.

Inibidora porque dá a medida do que os organizadores esperam dos participantes, em termos de solidez de conhecimentos e capacidade de tratar as diferentes questões de maneira enriquecedora. Trata-se afinal de ajudar a melhor equipar os professores de literaturas africanas de língua portuguesa num país onde o estudo destas literaturas atinge níveis de excelência.

Aliciante porque a simples enumeração das áreas propostas faz-nos antever o mundo de abordagens diferentes que a literatura dos países africanos de língua oficial portuguesa já suscita. E também as imensas possibilidades que o diálogo entre praticantes e estudiosos oferece para o aprofundamento das grandes questões que se colocam à criação literária nos nossos países.

É bem de ver que há riscos quando se tenta este compromisso sempre difícil entre a perspectiva teórica e o discurso testemunhal, entre o rigor académico e o calor fraterno que é próprio de um encontro que se realiza no Brasil e envolve escritores africanos.

Estou curioso, como também estarão muitos dos presentes, em saber de que maneira é que se irão acomodar nas conclusões finais as posturas necessariamente diferentes - e talvez até divergentes - como as que poderá ocasionar um encontro da natureza do que ora se inicia. Apesar disso é fácil vaticinar o êxito dos nossos trabalhos, uma vez que a todos os participantes move o desejo comum de fazer reflectir e desenvolver, nos respectivos campos de interesse, os laços históricos e a grande afectividade que ligam os nossos países e povos.

Nas notas que preparei para esta sessão cedi ao impulso de trazer para aqui algumas das questões que venho debatendo, há já algum tempo, com colegas - alguns dos quais presentes nesta sala. Ensina a sabedoria dos mais velhos que é no calar e ouvir que está o remédio para a nossa própria ignorância, mas eu fui expressamente encorajado a trazer para este espaço, que ainda é de solenidade, algumas das minhas dúvidas e preocupações. Talvez como matéria provocatória para os debates que nos vão ocupar nos próximos três dias.

Não vou fixar-me especificamente em nenhum dos temas que nos foram propostos, embora o título da minha intervenção remeta decididamente para a área da cultura.

Cultura como base comum do ser e estar de uma comunidade e por isso o chão onde vão ancorar todas as criações e projecções humanas - incluindo essa forma particular de conscientização que é a literatura.

Bem sei que modernamente - e por boas razões - se prefere falar de "culturas" porque são várias as identidades que coexistem numa mesma sociedade. Mas temos sempre de conceber que para além dessas pertenças acessórias e mais imediatas, os agregados humanos de alguma dimensão e alguma permanência histórica sempre se definem por um núcleo forte de características e referências, saberes compartilhados e património comum.

Refiro-me àquele núcleo identitário que as comunidades acreditam ser a sua vera essência e por isso defendem a todo o custo se pressentem de alguma forma ameaçada.

Não é meu propósito fazer-vos revisitar as diferentes posições que se têm manifestado quanto ao que se deve entender como fazendo parte deste núcleo identitário e quanto à forma como ele se configura quando consideremos agregados de maior complexidade e extensão como por exemplo as nações ou os próprios continentes.

 O que vos proponho é que isolemos por alguns momentos aquele dos seus elementos que apela de maneira particular a esta nossa reunião - a língua.

Observou alguém que em relação ao tema língua as nossas análises, mais por escolha do que por carência, às vezes se coíbem de aprofundar certos aspectos. A razão talvez seja o receio de a língua portuguesa, como alicerce fundamental do nosso projecto comunitário, constituir um capital ainda frágil que não deve ser exposto ao efeito corrosivo de certos questionamentos.

Esta é uma postura totalmente injustificada. Antes pelo contrário, a ausência de debate, a ausência de reflexão crítica sobre esse aspecto tão importante da realidade dos nossos países - não faz senão adensar a teia de preconceitos e mal-entendidos que, em resultado da própria história da interacção entre os nossos povos, ainda rodeia nos nossos países o uso do idioma comum.

É sem dúvida legítima a exaltação que se faz da língua portuguesa, o instrumento do nosso ofício, a plataforma que nos faz comparticipar de um dos mais notáveis patrimónios que o génio humano criou.

José Craveirinha já se dizia irmão e discípulo de Camões e Pessoa mesmo quando a pátria moçambicana apenas existia nas suas famosas premonições poéticas. Mas o mesmo Craveirinha e, com ele, alguns dos estudiosos mais finos da produção literária dos nossos países reconheceram que ao lado da homenagem que todos devemos à língua que cada um dos nossos países fez sua, há que reconhecer as incidências que tem sobre a literatura que produzimos a forma particular como nos diferentes continentes se acedeu ao universo da língua portuguesa.

É na esteira desse pensamento que trago as reflexões que se seguem.

 

 

Coloquemos a questão, de início à escala planetária: Dizem as estatísticas que disso tratam que das 2500 línguas registadas no mundo desaparecem anualmente cerca de 20.

Poderemos, creio, disputar a exactidão do número total de línguas existentes mas não teremos dúvidas quanto ao que esta situação tem de trágico e definitivo: uma enorme porção de línguas desaparece todos os anos.

Algumas, muito poucas, desaparecem porque perdem, de um momento para o outro, a maior parte dos seus falantes (podemos imaginar, em pequenas comunidades étno-linguísticas isoladas, em locais inacessíveis do deserto, da montanha ou da floresta, o efeito de um cataclismo, de uma calamidade natural ou inadvertidamente provocada).

Mas a maior parte das línguas extingue-se por desuso: os seus falantes deixam-se absorver por outros universos linguísticos considerados melhor apetrechados para garantir o acesso a meios de sobrevivência.

Diríamos, as línguas desaparecem porque os seus falantes se perdem delas quando se mudam para outros universos fónicos.

Com as línguas desaparece a memória de factos, experiências, tradições, sistemas de conhecimento e valores, e até de criações como a literatura oral - de que as línguas  são o repositório e o veículo. O desaparecimento de uma língua é a morte da cultura de que ela é a matriz e, ao mesmo tempo, o testemunho mais visível e permanente.

A Declaração Universal sobre Diversidade Cultural adoptada em 2001 proclama que a preservação da diversidade cultural é um imperativo ético inseparável do respeito pela própria dignidade humana. Vários outros conceitos igualmente luminosos e credores da nossa total adesão fazem desta declaração um dos mais importantes documentos de consenso neste início de século.

Cedo porém se apercebeu a comunidade internacional da urgência em tornar mais efectivos os princípios enunciados.

Obviamente nem todas as línguas estão no risco imediato de desaparição, mas é fenómeno corrente nos nossos dias, sob o impacto da globalização, a diminuição sensível do uso social ou profissional de certas línguas e até a perda da força coesiva de certas culturas. O efeito indesejado da democratização do acesso aos meios de comunicação é o favorecimento dos países com maior capacidade de produzir mensagens e produtos culturais. São eles que acabam por povoar o imaginário colectivo de uma audiência internacional cada vez mais larga com os seus mitos e as suas estórias e é a sua língua que gradualmente se universaliza – com prejuízo e em detrimento de todas as outras línguas. A excessiva presença de produtos culturais alienígenas nos meios de comunicação social tem um inegável efeito constrangedor do desenvolvimento normal das nossas indústrias culturais e, no limite, da nossa própria identidade nacional.

Cresce a consciência de que a preservação do pluralismo cultural é a única forma de garantir que a nossa arte, a nossa literatura, juntamente com os outros elementos que definem a nossa identidade cultural se possam manifestar e florescer no espaço que lhes é próprio.

As tentativas que alguns países têm feito, em defesa do respectivo espaço cultural, através, por exemplo, da imposição de sistemas de quotas para a difusão de produtos culturais nacionais e estrangeiros, é mal compreendida pelas próprias audiências internas, que vêm nisso um acto meramente censório e, em todo o caso, totalmente ineficaz uma vez que inaplicável á Internet, onde o acesso é irrestrito.

Mais atendível parece ser o argumento económico em que a preferência marcada pelo produto cultural estrangeiro custa aos países receptores a perda de empregos e o dispêndio suplementar de moeda externa. Mas mesmo quando esse argumento venha acompanhado de dados estatísticos que lhe dêem peso sensível na economia todos sabemos que, medidas de natureza restritivas, sobretudo as que vão num sentido contrário ao das leis do mercado ou das solicitações publicitárias predominantes só podem vingar se beneficiarem da adesão de largas camadas da opinião pública.

Felizmente, em jornadas como as que tiveram lugar em Portalegre, aqui no Brasil, a agenda das comunidades que em nome da solidariedade e da consciência cívica se recusam à pressão hegemónica do capital financeiro internacional passou a incluir a defesa da diversidade cultural. O apagamento de uma cultura, seja em que ponto do globo se verificar, é sempre em consequência de uma situação de violência sobre o meio ambiente ou sobre o próprio homem e resulta inelutavelmente no empobrecimento de toda a humanidade.

Ultimamente registam-se alguns avanços nesta questão, como informam os noticiários. A Conferência Geral da UNESCO que neste momento está reunida em Paris acordou na necessidade de elaborar uma convenção internacional sobre a diversidade cultural.

Em Opatija, na Croácia, a recente reunião dos ministros da cultura dos 58 países que se ocupam colectivamente de questões de política cultural (INCP) concluiu também pela urgência em adoptar medidas que preservem a diversidade cultural. Em reunião paralela à da INCP, uma associação internacional de organizações não-governamentais apontou a necessidade de o processo de globalização ter de ser usado em favor da diversidade cultural e não para a eliminar.

Podemos nesta sala felicitar-nos pela forma entusiástica como os nossos respectivos países participam nesta campanha cujo objectivo faz unanimidade entre os governos, as principais forças políticas, as organizações cívicas, os artistas e intelectuais. É para todos nós totalmente inaceitável e verdadeiramente aberrante que se pretenda, por exemplo, regular a circulação internacional de bens e serviços culturais através dos mesmos dispositivos que tratam de produtos alimentares e electrodomésticos.

Esta é uma questão que alguns entendem que releva da própria soberania dos estados. Enquanto membros da comunidade internacional queremos beneficiar do melhor que o convívio e a cooperação entre os povos pode oferecer, mas não ao preço da subalternização da nossa cultura e consequente alienação de parcelas importantes da nossa população.

 

 

Vou interromper-me aqui para voltar ao princípio.

E leio novamente: dizem as estatísticas que disso tratam que das 2500 línguas registadas no mundo desaparecem anualmente cerca de 20.

Ora os nossos países caracterizam-se pela sua multiculturalidade quando não mesmo, de acordo com outras escolas de pensamento, multinacionalidade: coabitam no espaço delimitado pelas nossas fronteiras muitos grupos etno-linguísticos, alguns dos quais ostentando características de organização e historicidade que os definem como nações. Em consequência, para além do português possuímos muitas outras línguas, algumas das quais com uma população falante muito superior à dos falantes exclusivos da língua portuguesa.

Isto significa que o fenómeno de desaparição das línguas por perda do seu espaço de exercício e até por extinção das comunidades suas falantes também ocorre entre nós.

Mas aí sem que possamos, com seriedade, assacar as culpas à globalização ou à agressividade das indústrias culturais dos países anglo-saxónicos.

Pior ainda, sem que os nossos governos, a sociedade civil, os nossos artistas e intelectuais se mostrem excessivamente perturbados.

Talvez devamos questionar o entendimento de diversidade cultural como a convivência harmoniosa das diferentes identidades nacionais. Se prevalecer essa perspectiva que direi política do conceito de diversidade cultural, aquilo que se pretenderia com a movimentação internacional que há pouco referi não seria mais do que a preservação das identidades culturais já cooptadas ou afirmadas pelos processos internos de cada país. Por outras palavras as culturas dominantes (com incorporação em maior ou menor grau de elementos característicos de outras culturas que, em algum momento, se fizeram presentes no mesmo espaço geográfico).

Ora o conceito de diversidade cultural que se depreende da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural é de acepção antropológica, considerando entidades não necessariamente de dimensão nacional. A Declaração, no caso dos nossos países, pretende defender igualmente a identidade cultural que se expressa predominantemente em língua portuguesa e as que se expressam em cada uma das outras línguas.

Temos todos nós, governos, parlamentos, sociedade civil e, sobretudo, artistas, escritores, intelectuais, de tirar disso as necessárias ilacções. A preservação da diversidade cultural deve ser feita principalmente no interior dos nossos próprios países.

São bem conhecidas as circunstâncias históricas e razões estratégicas que levaram à adopção,  por parte dos nossos países, da língua portuguesa como língua de unidade nacional e língua oficial. Nesta sala dispensa explicações a posição da língua portuguesa como matriz de uma identidade nacional que existe para além de todos os particularismos étnicos e linguísticos das diferentes parcelas dos nossos países.

O reconhecimento pelo movimento nacionalista desta identidade que se desenvolveu à sombra e a despeito da ocupação colonial, está na origem da afirmação dos nossos países como entidades políticas distintas e soberanas.

O seu desenvolvimento constitui o objectivo primeiro do nosso projecto nacional.

A língua portuguesa é a língua em que se expressa a nossa soberania. É ela que nos permite dominar os instrumentos do progresso. É através dela que discutimos as grandes questões que o projecto nacional nos coloca e formulamos as soluções.

Construímos o essencial da nossa literatura no interior da única língua com vocação nacional - mas, tragicamente uma língua minoritária.

Contudo não ocorrerá a ninguém, tenho a certeza, pôr em causa a legitimidade do uso da língua portuguesa pelos nossos escritores ou a africanidade da literatura que em língua portuguesa se produz nos nossos países.

Podemos com orgulho dizer que temos sabido realizar na nossa prática a dimensão nacional que faz com que os nossos concidadãos se reconheçam nas nossas criações. 

Mas temos a aguda consciência de que não se abriu ainda o espaço necessário para que outros possíveis escritores de outros universos linguísticos se possam vir acrescentar às nossas vozes, na representatividade também linguística que a nossa literatura não pode deixar de ter como objectivo.

Enquanto a nossa literatura for exclusivamente a que se produz em língua portuguesa, uma parte importante dos nossos concidadãos permanecerão receptores passivos dos nossos textos sem embargo da representatividade cultural ou do nível literário que possamos alcançar.

(Podemos ressalvar que mesmo em países onde só se fala uma única língua a maior parte dos cidadãos permanece receptora passiva, quando o seja, do texto literário. Mas aí as barreiras impeditivas são de outra natureza, que não cabe aqui discutir).

Será excessivo dizer que à escala dos nossos países o predomínio da chamada cultura aculturada, veiculada pela língua portuguesa, sobre as culturas puramente africanas reproduz, de alguma maneira, o mesmo quadro que leva os nossos países a reagir à escala internacional, em defesa do que consideramos a identidade nacional. Mas é inegável que as relações de poder que existem entre as elites dominantes nas cidades e a população camponesa se reproduzem na posição relativa entre o português e as outras línguas nacionais.

Em muitas circunstâncias do quotidiano do meu próprio país, Moçambique, o domínio da língua portuguesa é por si só uma qualificação considerada superior ao domínio de todos os conhecimentos tradicionais e quaisquer outras competências nas línguas vernáculas.

Esta situação acarreta inevitàvelmente tensões e ressentimentos como os que foram acentuados pelo conflito civil que dilacerou o país durante quase duas décadas.

Seria injusto não indicar aqui o enorme esforço que os nossos países têm realizado, em meio de dificuldades conhecidas, no desenvolvimento de uma política linguística que tenda a prestar  homenagem à essência multicultural das nossas sociedades.

Vemos no campo do ensino a alfabetização nas línguas maternas e a introdução de outras línguas nacionais quer como matéria, quer como meio de ensino nos primeiros anos do ensino primário.

Vemos nas emissões da rádio e da televisão e também em alguma imprensa local a utilização de outras línguas que não o português.

Vemos na actividade política, nas campanhas cívicas, na publicidade em geral, na música popular urbana a preocupação de utilizar a língua que em cada região do país possa veicular para o maior número possível de destinatários as mensagens que se pretende difundir.

São ainda modestos os progressos realizados, mas o mais importante é que cresça em nós a consciência do esforço que ainda há a realizar em direcção à consolidação do nosso projecto nacional. O sabermos, por exemplo, que monopólio da palavra que vem sendo exercido pelos falantes da língua portuguesa só irá desaparecer verdadeiramente quando todas as nossas línguas tiverem conhecido o desenvolvimento que as torne também capazes de realizar a modernidade, isto é quando elas poderem expressar todos os conteúdos que importam á participação plena de cada comunidade na vida do país e no processo do seu desenvolvimento – isto é, o exercício da plena cidadania.

É essa a nova fronteira da africanidade, aquela que nos fará derrubar os muros internos da exclusão, não menos inadmissíveis do que os muros externos, os que retêm os nossos países no gueto do subdesenvolvimento e da dependência.

Temos de afastar do nosso quotidiano o eterno dilema com que nos afrontamos a cada passo, logo que procuremos os trilhos que conduzem ao progresso: Perdermo-nos totalmente das nossas raízes ou desistir de ser parte, ao lado de todos os homens e mulheres nossos contemporâneos, da grande  aventura humana.

O apontamento irónico que apetece fazer, antes de terminar, é o facto de afinal não existir remédio seguro contra a desaparição das línguas.

A língua latina, que serviu a civilização romana, morreu como língua viva. Assim a língua de Cartago, assim o grego tal como o falou Péricles, assim a língua de Ramsés II. Estas não eram línguas de povos dominados, de países de uma qualquer "periferia".

A morte das línguas talvez seja um fenómeno inelutável da própria história pois não poupa mesmo aquelas línguas que num dado momento incorporam em grau mais elevado os discursos da ciência, da técnica, do direito e da filosofia.

Importante porém é notar que algumas línguas, ao desaparecem, levam consigo para os insondáveis territórios do olvido tudo quanto diga respeito aos povos que as falaram: o que foram, como viveram, o que de importante realizaram.

Em outros casos - que todos desejaríamos fossem mais e mais numerosos, a desaparição eventual dos seus falantes não obsta a que para benefício de toda a humanidade permaneça vivo, grandioso ou modesto mas sempre precioso pela singularidade - o seu legado cultural. 

 

Muito obrigado pela vossa atenção

 

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