José Craveirinha, o poeta jornalista

                                                                                                

 

A poesia reservou-lhe um lugar de honra não apenas na História da Literatura de Moçambique, mas também na História da Literatura de Língua Portuguesa. Daí ter sido galardoado, em 1991, com o Prémio Camões. Mas José Craveirinha distingiu-se também noutras actividades. Como desportista, deu que falar no futebol e obteve boas marcas no atletismo, em que também foi treinador. E como jornalista teve, nas condições adversas do tempo e do lugar, uma intervenção bastante significativa, a que se presta homenagem nesta evocação

 

texto ACÁCIO BARRADAS

 

Considerado o maior poeta de Moçambique e um dos maiores de língua portuguesa – e como tal galardoado com o Prémio Camões em 1991 – , José Craveirinha (recentemente falecido, aos 80 anos, num hospital da África do Sul) revelou aptidões igualmente invulgares noutras actividades, tendo sobressaído também no desporto e no jornalismo.

Como desportista, distinguiu-se sobretudo em duas modalidades: o atletismo, com a obtenção de elevadas marcas nos 1500 metros, e o futebol, gerado no mesmo berço dos azes de Moçambique que fizeram a glória da modalidade em Portugal, entre eles Matateu, Eusébio e tantos outros.

Diga-se de passagem que, mesmo depois de ter deixado de praticar atletismo, José Craveirinha foi treinador de outros desportistas de grande nomeada. Um deles seria o célebre Mário Coluna, mais tarde internacional do Benfica e da selecção das quinas, que em 1951 começou por praticar atletismo na capital laurentina, sob a sua orientação.

Quanto ao jeito de Craveirinha para o futebol, são vários os testemunhos que o confirmam. Um dos mais veementes surgiu nas páginas do «Guardian» em crónica do jornalista João Reis, que o descreveu como «potencial marcador de golos de cabeça» quando alinhava no Grupo Desportivo de Lourenço Marques.

Nessa crónica, o autor vaticinava a Craveirinha um glorioso futuro futebolístico, que só não se terá verificado porque as letras reclamaram a cabeça do desportista para outros cometimentos. O vaticínio, porém, daria ensejo a uma amizade de longo curso, com experiências comuns no âmbito jornalístico e, posteriormente, nos cárceres da PIDE. Mas não nos antecipemos...

 

Futebol proibido a negros

não assimilados

 

O pendor de José Craveirinha para o desporto iria reflectir-se inevitavelmente no desempenho da sua actividade jornalística. De facto, foi como jornalista desportivo que primacialmente se distinguiu, a partir de meados dos anos 50, ao encarregar-se da secção desportiva do semanário «O Brado Africano», onde aliás fazia um pouco de tudo, colaborando estreitamente com o chefe de redacção e seu irmão João José Craveirinha, a ponto de algumas vezes se confundir a autoria dos respectivos artigos.

Nesse jornal, órgão oficioso da Associação Africana, o vate moçambicano não se restringia – ao contrário do que era habitual nesse tempo, entre os seus pares – a noticiar os factos meramente desportivos. Procurava ir mais fundo e mais longe, pondo o dedo em determinadas feridas que latejavam no corpo da sociedade colonial.

Assim, por exemplo, num artigo publicado em 23 de Janeiro de 1954, sob o título «O negro no desporto de Lourenço Marques», Craveirinha enaltece «o rasgo de puro e desassombrado desportivismo» que representara, na época de 51/52, o «caso absolutamente ímpar» da «apresentação nas pistas de atletismo de alguns atletas negros puros envergando a tão susceptível, até aí, camisola do Sporting local.»

  E depois de assinalar ser incompreensível que vigorasse ainda uma «infeliz lei que suprimiu dos campos de futebol a presença do negro quando não apresente o respectivo atestado de assimilação», Craveirinha acrescentava, referindo-se aos negros que se haviam distinguido na secção de atletismo do Sporting de Lourenço Marques:

«Nenhum deles possui alvará de assimilação e no entanto são dos mais disciplinados e bem comportados atletas da cidade.» Por ser assim, observava: «Não se compreende que os mesmos homens que podem ombrear nas pistas com elementos de raça europeia não possam também pisar os campos de futebol, esse desporto mais popular entre as raças africanas.»

E como corolário lógico da sua opinião, terminava por defender «uma revisão a tais prepotências, a fim de elevar o nível do desporto no que ele tem de puro e são como veículo de preparação física do indivíduo».

Esta transcrição, a título ilustrativo da intervenção jornalística de José Craveirinha e como amostragem da sociedade fechada em que se movia, caracteriza bem a têmpera, a lucidez e a coragem que sempre caracterizaram «o sage da Mafalala», na feliz designação de Eugénio Lisboa.

De facto, uma tal tomada de posição em plenos anos 50, numa terra dominada por preconceitos raciais importados da África do Sul (então a pátria do «apartheid»), era uma pedrada no charco das convenções locais e um desafio à autoridade do Estado colonial, que gostava de se rever nas teses luso-tropicalistas do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, por ocultarem a nudez forte do racismo sob o manto diáfano da fantasia de uma convivência racial sem peias.

Que essa pedrada no charco fosse arremessada por alguém de raça mestiça, como José Craveirinha, afigurava-se ainda mais desafiador e intolerável, não obstante a sua habilidade para fazer passar tal mensagem pelo crivo da Comissão de Censura à Imprensa. De facto, ao elogiar uma excepção para a defender como regra a seguir, o autor do escrito utilizara um estratagema susceptível de tornar aceitável a sua doutrina. E ao abordar a questão racial no âmbito das actividades desportivas, habitualmente menos sujeitas à vigilância crítica dos censores, o referido estratagema surtia efeito reforçado.

Usando de idênticos artifícios, ele (e muitos outros jornalistas do seu tempo, em todas as chamadas «províncias de Portugal, do Minho a Timor») citavam frequentemente as fontes do Poder e determinados princípios apregoados pelos seus representantes, a fim de denunciarem realidades que, por serem contraditórias desses princípios mas terem o aval das autoridades, tornarem evidente o reino da hipocrisia em que se vegetava.

 

Unir claridades para

suprimir as sombras

 

Ainda n’«O Brado Africano», mas já fora do âmbito desportivo, José Craveirinha – que continuaria a colaborar nesse jornal, mesmo quando passou a trabalhar noutras redacções – , fez publicar os seus primeiros poemas (um dos quais, «Tambor», se tornou bandeira de revolta e grito de emancipação), vários contos (alguns deles editados pela Caminho no livro «Hamina e outros contos»), além de muitas crónicas e artigos que, no seu conjunto, equivalem a uma declaração de princípios de inabalável coerência.

Como traves-mestras desses princípios, distinguem-se os valores da negritude a cujo movimento aderiu, bem como ao emergente nacionalismo africano, sem menosprezo dos méritos que reconhecia a certos aspectos do Portugal europeu e, em especial, à Língua Portuguesa.

Ao manifestar a sua identificação com os princípios da negritude, José Craveirinha publicaria n’«O Brado Africano», em 6 de Novembro de 1954, um artigo esclarecedor intitulado «Consciência de raça». Nele, começava por dizer: «Em Moçambique, a não ser a consagrada Noémia de Sousa, nada temos que se possa classificar de forma literária de expressão genuinamente negro-afro-portuguesa. Porquê?»

     E em resposta à sua própria pergunta, afirmava que Noémia de Sousa (por coincidência falecida em Portugal, onde era jornalista da agência Lusa, poucos meses antes de José Craveirinha) só deixaria de ser excepção «quando o homem de cor intelectualmente preparado não desdenhar acintosamente o influxo de correntes culturais de origem africana».

     Nesse sentido, advogava não a prevalência dos valores africanos sobre os europeus, mas a sua coabitação sem preconceitos. Nas suas próprias palavras, «trata-se muito simplesmente de não abdicar de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia».

     E para ser mais explícito, acentuava: «Deste princípio surgiu o grito do poeta Senghor, do Senegal: “Porque não unir as nossas duas claridades, a fim de suprimir todas as sombras?”»

     Esta posição de Craveirinha – que se ajustava aliás à sua própria origem, fruto do amor de «um belo algarvio bem moçambicano» por uma «tombasana [isto é, rapariga] de pés descalços») –, era tudo menos radical, na medida em que se limitava a repudiar o desprezo dos africanos pela sua própria cultura, exortando-os a descobri-la e revalorizá-la, sem qualquer hostilidade à cultura europeia, salvo nos aspectos em que esta pretendia impor a sua hegemonia.

     No entanto, para a mentalidade reaccionária que pontificava entre a maioria da população branca e até de boa parte da população mestiça, tal propósito era inadmissível. E, paradoxalmente, manifestavam o seu racismo intolerante acusando os defensores da negritude, como José Craveirinha, de serem... racistas.

     Por isso não será de admirar que os incómodos de José Craveirinha com as autoridades policiais, cujos antecedentes remontam a 1946 (quando, aos 24 anos,  foi enviado pela primeira vez a tribunal, por injúrias e ofensas corporais), tenham sido substancialmente agravados a partir do momento em que começou a escrever na Imprensa.

 

Sob suspeita e enfiado

na boca do lobo

 

Se, em 1949, durante a campanha eleitoral para a Presidência da República Portuguesa, foi preso uma semana por militar no MUD Juvenil de Moçambique e fazer propaganda do candidato da oposição, general Norton de Matos; e se, em 1952, voltou a ser preso por «emigração clandestina» para a África do Sul, a partir do momento em que as suas ideias ganharam letra de forma tornou-se alvo privilegiado da vigilância policial.

     A sua correspondência (quer recebida, quer expedida) passou a ser rigorosamente vigiada, mesmo antes da instalação da polícia política nas chamadas «províncias ultramarinas». Assim, logo em 1952, o Comando da Polícia Civil de Moçambique enviava para a Direcção-Geral da PIDE, em Lisboa, uma cópia da carta que Noémia de Sousa escrevera a José Craveirinha, dando-lhe conta das suas leituras e contactos em Portugal, para onde entretanto se deslocara.

     Outras cartas posteriormente recebidas, entre elas do amigo e futuro quadro da Frelimo, Marcelino dos Santos, foram igualmente interceptadas pela polícia, que assim estava a par dos convites irrecusáveis (mas obrigatoriamente recusados) que o poeta de Moçambique recebia frequentemente para participar em eventos internacionais, como o 2.º Congresso de Escritores e Artistas Negros (1958) e o 1.º Festival Internacional de Artes Negras (1960).

     Entretanto, Craveirinha estava permanentemente sob suspeita, mesmo que eventualmente pudesse ser inocente. Uma prova disso verificou-se em 1961, quando o jornal «Daily Nation», de Nairobi, publicou, em 10 e 11 de Julho, dois artigos de um «correspondente especial» de Moçambique, não identificado.

     Segundo um ofício enviado ao Ministério do Ultramar pelos Serviços de Coordenação e Centralização de Informações de Moçambique (que transcreviam uma informação da PIDE de Lourenço Marques), as razões da suspeita decorriam do facto de Craveirinha, «em tempos, ter abordado um colaborador desta Delegação para que lhe traduzisse os seus escritos, que se destinavam a um jornal do Quénia.» Todavia, acrescenta, «não chegou a utilizar os serviços desse indivíduo, por o mesmo ter sido transferido para a Beira.»

     Como se vê, Craveirinha, sem o saber, tinha-se metido na toca do lobo, pois solicitara os serviços de um tradutor que, afinal, estava ao serviço da polícia política! E apenas o facto de tal tradutor ter sido transferido evitou que a PIDE soubesse realmente o teor do trabalho que Craveirinha desejava enviar para um jornal do Quénia.

     Assim, embora nada o pudesse provar, ninguém o livrou da suspeita de ter sido ele o «correspondente especial» que redigira os artigos publicados no «Daily Nation» de Nairobi, artigos esses obviamente críticos em relação à política portuguesa em Moçambique.

     Agora, que Craveirinha morreu, é tarde para lhe pedir que esclareça o mistério.

 

Auxiliar de revisor

e cronista semanal

 

Embora «O Brado Africano» tenha sido o jornal onde mais longamente colaborou, não foi nas suas páginas que José Craveirinha se estreou na Imprensa de Moçambique. «Ainda na segunda metade da década de 40» - segundo revela António Sopa na «Nota de apresentação» do livro «Hamina e outros contos» - «os seus primeiros textos assinados encontram-se  no semanário “O Oriente”, propriedade do indo-português Tomás Aquinas Álvares, periódico na órbita dos grandes valores do catolicismo tradicional».

     «Durante muito tempo» – escreve António Sopa – «tive dificuldade em relacionar Craveirinha com aquele jornal. Um dia, em conversa com o poeta, pude confirmar que os textos eram da sua autoria e vinham no seguimento do convite que lhe tinha sido feito pelo proprietário daquela folha. Disse-me então que a sede de “O Oriente” ficava a caminho da sua casa, no bairro da Mafalala.»

     Assinale-se, todavia, que tanto no caso de «O Oriente» como no de «O Brado Africano», a colaboração de José Craveirinha configurava um regime de voluntariado, isto é, sem retribuição. Neste último caso com características militantes, pela responsabilidade acrescida de pertencer ou de presidir, em vários mandatos, aos corpos directivos da Associação Africana, proprietária do jornal.

     Assim, só em finais dos anos 50 se pode considerar a sua profissionalização (ou semi-profissionalização) na Imprensa moçambicana, com a entrada no matutino «Notícias», de Lourenço Marques. Aí, começou por ingressar no departamento de revisores, por extensão da sua actividade como funcionário público na Imprensa Nacional, onde era «auxiliar de revisor» e tinha horário seguido para poder «arredondar o salário» noutro  local.

     A propósito, o seu amigo João Reis (hoje residente em Macau, onde o contactamos para colaborar nesta investigação), depois de lembrar que José Craveirinha, antes de ser «auxiliar de revisor», começou a vida profissional numa cooperativa como «auxiliar de escritório», observa ironicamente: «Naqueles tempos, os pretos e os mulatos eram quase todos, e quase sempre, “auxiliares” de qualquer coisa!»

     O certo é que, pouco a pouco, o «auxiliar de revisor» foi-se transformando em «auxiliar» de jornalista, por obra e graça dos trabalhos que ia publicando, primeiro na página de artes e letras, depois no corpo do jornal. Segundo João Reis, «a actividade do poeta no jornal ganhava outro relevo» e «acabaria mesmo por sobressair, e de que maneira, através de umas “cartas” dirigidas, onde dizia coisas que ninguém mais se atrevia a dizer, por falta de competência ou de coragem.»

     Quanto ao efeito dessas «cartas», adianta: «Os destinatários (quando não tugiam nem mugiam, dada a elegância e a aparente bonomia do crítico, e o medo da tréplica) nem sempre reagiam bem ao atrevimento do mulato. E as coisas passavam.»

     «A verdade» – opina João Reis – «é que o jornal, sempre aos sábados, ganhava uma dimensão que nunca antes (nem depois) alguma vez tivera.»

 

Finalmente reconhecido

repórter do «Notícias»

 

     O escritor e jornalista Guilherme de Melo, na altura colega de redacção de Craveirinha e também seu amigo (ao ponto de, quando deixou Moçambique sem saber se ia voltar, lhe ter confiado a chave de casa, além das muitas obras de arte que possuía), relembra sobretudo a «alta qualidade humana» do poeta que tantas vezes levou à Mafalala no carro do jornal, quando à noite saíam juntos do trabalho e regressavam a casa.

     Ao voltar a Moçambique dez anos depois, Guilherme de Melo ficou siderado ao deparar com tudo o que deixara e que José Craveirinha tinha guardado religiosamente, à sua espera. E só por muita insistência do poeta, que sabia do seu especial apreço por aquela escultura, acabaria por trazer para Portugal um Cristo talhado num tronco de árvore e que lhe fora oferecido pelo artista Alberto Chissano, o qual entretanto se suicidou em 1994.

     Ao evocar o amigo, Guilherme de Melo realça também a crónica que Craveirinha assinava aos sábados, tal como ele assinava outra aos domingos. E tanto quanto se lembra, Craveirinha «deu-se muito bem» no «Notícias».

     Mas nem tudo foram rosas, afirma João Reis, ao recordar que, em certa ocasião, «um ou dois colegas foram à então directora do jornal sugerir (porque era justo) que se desse ao Craveirinha o estatuto de jornalista, com a adequada compensação.»

     «A resposta que obtiveram» - afirma - «ficou na história do jornal: “Para aquilo que ele é, e o seu nível de vida, ele até ganha de mais!”»

     Comentário de João Reis: «O que ele recebia não chegava a metade do que ganhava um repórter – mas, claro, o repórter era branco e tinha um nível de vida diferente, isto é, comia três refeições diárias, tinha que vestir, calçar e viver numa casa de alvenaria, tudo como um branco. E, além disso, representar e honrar o jornal!»

     Seja como for – e a acreditar numa informação que, em Abril de 1958, foi enviada ao director-geral da PIDE, em Lisboa,  pelo Corpo de Polícia de Lourenço Marques – nessa altura José Craveirinha era dado como «repórter do jornal “Notícias”, desta cidade, onde aufere o ordenado mensal de 3500$00.» Ou seja: a  titularidade de jornalista acabaria por ser-lhe reconhecida.

     Para tal desfecho haveria de concorrer decisivamente a intervenção do jornalista – e  também poeta – Nuno Bermudes, então redactor-chefe do «Notícias», que em defesa de vários camaradas de Redacção chegou ao extremo de se incompatibilizar com a administração do jornal, sendo despedido. No entanto, como adiante se verá, procedimentos posteriores de natureza política haveriam de gerar uma polémica de graves e insanáveis consequências, que iriam contribuir para o fim da actividade jornalística de Craveirinha.

 

Paternidade dos escritos

sujeita a confirmação

 

Ao recordar mais tarde a sua experiência no «Notícias», José Craveirinha publicaria no jornal «A Tribuna», em cujo quadro redactorial ingressou a seguir, uma crónica em que dava conta de um significativo preconceito de que fora alvo por parte de certos leitores.

Conta ele: «Estando ainda a trabalhar no “Notícias” foram várias as vezes e as pessoas que se não coibiram de manifestar a sua estranheza quando me sendo apresentadas e a terceiros confessarem-se admiradas de ao jornalista cujos escritos apreciavam nunca haverem admitido relacionar com o indivíduo de cor que vinham de conhecer.»

     Esta estranheza, porém, ganhava contornos de ofensa quando se transformava em desconfiança sobre a natureza apócrifa dos escritos. Assim é que, segundo Craveirinha, «casos houve em que  a dúvida levaria à suspeita de que eu assinasse artigos, crónicas e reportagens que outrem para mim generosamente escrevia.»

     Por tal motivo, chegou a ser imperativa a palavra alheia para deslindar o intrigante enigma do mulato que, tendo simplesmente a quarta classe elementar, discorria com tanto à-vontade no idioma de Vieira e Camões.

Assim, segundo Craveirinha, «desfaria até uma dessas suspeitas, garantindo a paternidade da lavra dos escritos à minha humilde pessoa, o sr. capitão Ismael Mário Jorge, o que pela boca do sr. capitão Ismael eu por minha vez ficaria a saber. É ou não sintomático?»

Estas revelações, feitas n’«A Tribuna» de 21 de Setembro de 1963, vinham a propósito de uma crítica que Guilherme de Melo fizera, no «Notícias», à epidemia de «papagaios de salão» que, de repente, havia assolado Lourenço Marques, reclamando um «travão a este aflitivo palrar». Isto porque, a seu ver, «falar por falar, só por simples espírito de periquito sacudindo as penas, redunda afinal no mesmíssimo resultado que advém da mordaça para outras coisas: zero.»

Reconhecendo embora as razões de tal crítica, Craveirinha intercedia no entanto pelo direito à palavra mesmo dos mais impreparados, considerando «tal experiência como louvável» em nome da «difusão da Língua Portuguesa» resultante de «uma campanha encetada na vigência governativa da equipa Almirante Sarmento Rodrigues – Dr. Adriano Moreira.»

E para desvanecer quaisquer dúvidas quanto ao seu apoio àqueles governantes nesta matéria, acentuaria: «Em boa verdade e muito sincera opinião pessoal, nunca em Moçambique se deu tamanha consagração à Língua Portuguesa como neste período histórico».

Em conformidade, salientava: «Quando surgem moçambicanos de raiz, digamos negros, a falar português tu-cá-tu-lá em sessões públicas, percebendo e fazendo-se perceber perfeitamente, é a consagração da Língua Portuguesa, a sua ecumenicidade, que se corporiza ou sublima e um processo de unidade que se estrutura pelos únicos valores insujeitáveis a qualquer contestação: a cultura do espírito e um veículo linguístico comum.»

E a concluir: «Que se fale, pois, livre e francamente em sessões públicas, e se digam uns aos outros as coisas que se sentem e que necessariamente é tempo de conhecerem a luz do sol, já porque nisso se extremam campos e os homens se nivelam, para já e salutarmente, em exercícios de Português!»

 

Um documento inédito

em defesa do Português

 

Esta preocupação de Craveirinha com a Língua Portuguesa seria um dos traços dominantes do seu perfil de cidadão, antes e depois da independência de Moçambique. O deputado Almeida Santos, que com ele privou ao longo dos tempos e chegou a visitá-lo pouco antes de morrer, mas já não foi reconhecido pelo poeta,  afirmou-nos: «Mais do que um amigo de Portugal, Craveirinha era sem dúvida amigo da Língua Portuguesa».

 Também o crítico e ensaísta Eugénio Lisboa manifestou opinião idêntica, ao declarar-nos que ele tinha pelo nosso idioma «um amor frenético». Esse «amor frenético» pela Língua Portuguesa haveria, aliás, de manifestar-se  com veemência junto de alguns frelimistas que, no delírio da luta anticolonial, quiseram condená-la à morte como instrumento do imperialismo. 

Num documento inédito a que tivemos acesso por gentileza do seu detentor, o advogado Adrião Rodrigues – e que faz parte da correspondência clandestina que Craveirinha  manteve com o escritor Luís Bernardo Honwana durante o período em que ambos estiveram prisioneiros da PIDE para instrução do processo em que foram condenados por «actividades subversivas» –, a sua opinião não podia ser mais clara nem mais firme.

Não obstante as condições difíceis em que esta correspondência se realizava, escrita às ocultas e utilizando material precário (uma simples Bic e papel higiénico), com permuta de mensagens atrás do autoclismo da retrete, a verdade é que nem assim as palavras de Craveirinha perdiam fulgor. Neste caso, em defesa da Língua Portuguesa, como se verá:

« Irmão Luís:

« Bem! Tens de arranjar argumentação simples para esmagar as teses desse  Mulhanga. Sobre o português pergunta-lhe sobre a camisa, as calças e o sabão ou a pasta Colgate que ele naturalmente usa, bem como sapatos chuveiro, bacia com autoclismo, etc., e faz que ele te diga se isso não é contra a tradição, se isso não é uma concessão às coisas dos brancos e neste caso às coisas que os portugueses puseram cá. E no entanto ele usa a camisa, já pôs com certeza uma gravata ao pescoço e foi ao cinema e apanhou o machimbombo.

«A traição não está na língua portuguesa, se pusermos a língua portuguesa ao serviço de Moçambique, a traição é pôr o ronga, o changana, o suaíli, o maconde, etc., ao serviço dos portugueses.

«Os ingleses espalharam a língua inglesa pelas suas colónias e é com a própria língua que os povos se libertam e discutem com eles ao nível internacional.

«A língua é um instrumento como o alicate, o tractor, a carabina, a bala, o compasso, o radar. A partir do momento em que os pomos ao nosso serviço passa a ser uma coisa nossa, pertence ao nosso domínio.

«Esse é outro problema que temos de enfrentar corajosamente. Agarrar na língua portuguesa e moçambicanizá-la. Tal como foi abrasileirada ou como o espanhol foi sul-americanizado, mexicanizado, cubanizado, etc.

«Pergunta-lhe como é que ele se entenderia com um maconde  e um maconde com um sena, um sena com um ronga, um ronga com um macua, um macua com um suaíli, um suaíli com um changana, um changana com um chope, um chope com um bitonga se não houver um meio de comunicação comum para todos? Teremos todos de aprender todos os idiomas e dialectos moçambicanos oficialmente?

«Diz-lhe que não tome café e não coma o pão. Isso não é tradicional. E recuse o banho de chuveiro e o cagar sobre uma tampa de baquelite.

«Não devemos ser reaccionários mas revolucionários. Ele que pegue na azagaia e faça frente aos tipos. Haverá logo outros Magul, Marracuene, Macontana, etc.»

 

Hostilidade ao Ronga

mas não ao Inglês

 

Esta defesa da Língua Portuguesa, até como estratégia para a unidade da nação futura, não significava, porém, o repúdio dos idiomas e dialectos indígenas. Nesse sentido, José Craveirinha foi um dos responsáveis pela publicação, n’«O Brado Africano», a partir de 24 de Dezembro de 1954, de uma página informativa denominada «Xi-Ronga», utilizando aquele idioma.

O facto daria origem a acusações de nativismo e a um clima de hostilidade por parte dos meios reaccionários do costume, o que levou o jornal a pôr os pontos nos is, demonstrando que havia melhores razões para publicar uma página em ronga (afinal uma língua de Moçambique) do que fazê-lo em língua inglesa, tal como procediam, sem que ninguém protestasse, dois grandes diários da capital: o «Guardian» e o «Notícias da Tarde».

E mais aberrante ainda, conforme «O Brado Africano» assinalou na mesma edição, era o facto de a Sociedade Comercial de Lotarias de Moçambique «publicar a lista dos seus prémios – no verso dos bilhetes e nas folhas volantes que distribui – em moeda estrangeira, ou seja, em libras. Os prémios são pagos na nossa moeda, os bilhetes são comprados por portugueses (a sua maior parte, supomos), estamos em território nacional, falamos português (...), mas, incompreensivelmente, os prémios dos bilhetes daquela lotaria são indicados em moeda estrangeira.»

 Foram aspectos como estes, de subordinação acrítica à vizinha África do Sul – para muitos a verdadeira «metrópole» de Moçambique durante o período colonial – que no início de 1958 levaram o Prof. Jorge Dias a proferir em Lisboa, no Centro de Estudos Políticos e Sociais da Junta de Investigações do Ultramar, uma conferência em que dava conta das suas preocupações com o que observara durante uma viagem por terras moçambicanas. Nessa conferência, terá sido especialmente contundente com a sociedade branca de Lourenço Marques e da Beira, quer pelas manifestações de racismo verificadas, quer pela ostenção do luxo e da ociosidade que ali detectou, em flagrante contraste com a situação de miséria e inferiorização dos nativos.

O escândalo suscitado pelas observações do Prof. Jorge Dias fez eclodir nos principais órgãos da Imprensa de Moçambique, por parte de representantes da população branca (e apenas desta, o que é sintomático), um fortíssimo clamor de contestação e repúdio. Este clamor só abrandaria por interferência da censura, devido ao incómodo de tais acusações partirem, não de um inimigo declarado da Pátria portuguesa, mas de um antropólogo credenciado no meio oficial. Por algo muito semelhante, aliás,  fora já proibido de residir em Angola o escritor Alfredo Margarido (hoje professor na Universidade Lusófona), que se atrevera a pôr o dedo em idênticas feridas!

 

Jornalismo e jornalistas

no contexto colonial

 

Obviamente incomodado com os ataques então desferidos ao Prof. Jorge Dias por vários jornalistas luso-moçambicanos, uns de forma aberta com o nome impresso, outros a coberto do anonimato que era então prática habitual, José Craveirinha, perante a manifesta impossibilidade de dizer frontalmente o que pensava sobre o assunto, torneou a situação escrevendo um artigo sobre a missão do jornalismo e dos jornalistas.

Em tal artigo, publicado no «Notícias» de 21 de Março de 1958 sob o título «O jornalismo e a opinião pública», Craveirinha autodenominava-se «mero aprendiz de jornalista», manifestando-se todavia com o direito de expor os seus conceitos sobre «a função da Imprensa» e «a responsabilidade que pesa sobre o jornalismo» como «orientador da opinião pública».

Nesse sentido, considerava que «o profissional da Imprensa deverá firmar-se numa linha de isenção a toda a prova e ser um expositor de ideias baseadas em factos ou em argumentos assentes num raciocínio lógico e coerente.»

Depois de acentuar que «o jornal, desde que sai à rua, já não é uma simples folha volante com caracteres impressos, mas, sim, um agente da opinião pública perfeitamente em acção», e que «um jornal, de mão em mão, é um agitador de consciências», José Craveirinha considerava que «compete ao jornalista fazer que o jornal actue como fonte fidedigna de informação e de educação».

Mais adiante – e numa alusão indirecta à polémica levantada pelo Prof. Jorge Dias –, afirmaria que o jornalismo «deve orientar com elevação a opinião pública mesmo quando entra em polémica», pois «a polémica, para o jornalista, será sempre uma discussão de ideias. E todo o escrito na Imprensa outra razão não deve ter senão a de pôr o leitor perante opiniões contraditórias ou divergentes, das quais, ele, jornalista, extrairá, por sua vez, a opinião destinada a servir a consciência do público».

Assim – e em conclusão –, «quando o jornalista consegue  que o leitor se identifique consigo intelectualmente e emocionalmente, usando a expressão da verdade, a missão do jornal cumpre-se integralmente.»

Não deixa de ser curioso que, logo na edição do dia seguinte, Nuno Bermudes, um dos atacantes do Prof. Jorge Dias, viesse «acusar o toque», proclamando que «tudo quanto se possa dizer dos vários processos jornalísticos corre o inevitável risco de ser discutido a partir de um ou mais pontos de vista diametralmente opostos.»

O jornalismo seria, em muitas outras ocasiões, objecto de análise de Craveirinha. E não deixa de ser interessante verificar que, confessando-se «aprendiz» da profissão em 1958, cinco anos depois já se sentia à vontade para, em carta aberta, aconselhar publicamente um «jovem aprendiz de jornalista» que se mostrara fascinado com o «jornalismo à brasileira» do repórter David Nasser na revista «O Cruzeiro».

Observando, com grande lucidez, que aquele «monstro» do jornalismo sul-americano já não era o que fora, pois «há um tempo para cá parece que mudou, não o estilo (...), mas as ideias que caracterizavam a sua personalidade», Craveirinha dirigia-se ao hipotético neófito admirador de Nasser, esclarecendo-o:

«Sabes que mais? Não há jornalismo à brasileira nem jornalismo à americana, nem jornalismo à Xipamanine ou jornalismo à Munhava. Jornalismo é jornalismo em toda a parte (...). Sempre que autêntico. (...) Jornalismo é aquilo que o jornalista comunica ao grande público. O público que compra o jornal para ler a verdadeira notícia, a reportagem séria, a crítica aberta. Esse público é que precisa de não ser mistificado pelo jornalismo, seja da Patagónia ou da Cochinchina. Não se lhe dar “gato por lebre”.»

Chamava depois a atenção para as condições de trabalho (e de liberdade de expressão) que diferenciavam  os recursos de David Nasser e dos jornalistas moçambicanos, imaginando o que ele poderia fazer se trabalhasse num órgão de Imprensa de Moçambique, na certeza de que, apesar de mestre, «falhava redondamente».

Daí que ironizasse: «Era ou não um gozo ver o David Nasser em palpos de aranha para arrancar uma das suas reportagens aqui? Está claro que era, embora por outro lado fosse muito triste. Para ele e para nós.»

Por fim, em defesa do valor e do prestígio dos jornalistas de Moçambique, entre os quais já enfileirava, José Craveirinha escrevia: «Não julgues que nós aqui não somos jornalistas eméritos. Somos. Há mais mérito no pouco que escrevemos do que no muito que David Nasser já disse ou tem dito. Somos jornalistas de academia. O que o público lê da nossa lavra é muito suor, muito esforço. O David Nasser, tenho a certeza, não conhece estas dores de parto jornalísticas.»

Como que a ilustrar as dificuldades assim enunciadas, o jornal «A Tribuna», onde este texto saiu em 9 de Novembro de 1963, apresentava por vezes uma insólita mensagem publicitária no local fixo da segunda página diariamente reservado ao editorial. Era a demonstração óbvia de que tinha havido um corte de censura e não houvera tempo de substituir o texto por outro.

 

«A Tribuna»: uma cilada

político-financeira

 

Último órgão onde José Craveirinha fez jornalismo efectivo, embora mantendo a qualidade de funcionário público como revisor na Imprensa Nacional (ambivalência que nessa época era bastante comum e não apenas em Moçambique), «A Tribuna» foi criada em Lourenço Marques pelo jornalista João Reis, que embora figurasse no cabeçalho como editor era o verdadeiro proprietário do periódico.

     Não cabe aqui fazer o historial deste matutino, que só por si justificaria um longo trabalho de investigação, eventualmente a efectuar noutra oportunidade. De momento, referiremos apenas que «A Tribuna», cuja publicação se iniciou em 7 de Outubro de 1962, teve desde início uma vida financeiramente atribulada. Os gastos com a instalação e o equipamento, agravados com o pagamento de alguns salários sem produtividade durante o período excessivo em que se arrastaram as diligências para a concessão do alvará, esgotaram praticamente as reservas financeiras do fundador. E como, após a publicação do jornal, os recursos da venda ao público e da publicidade não chegavam para cobrir os encargos fixos, a derrapagem foi inevitável.

     As dificuldades atingiram de forma drástica muitos trabalhadores, entre eles o próprio chefe de Redacção, Gouvêa Lemos, poeta de mérito e um dos grandes jornalistas de Moçambique, mas que, conforme nos disse Adrião Rodrigues,  «passava fome para ter a espinha direita». Não tendo outra saída senão demitir-se, valeu-lhe na emergência – segundo Eugénio Lisboa –,  o facto de o célebre eng.º Jorge Jardim, cuja personalidade ambígua dava azo a estas surpresas, ter feito «vista grossa» à sua reconhecida hostilidade ao regime colonial-fascista, dando-lhe emprego no jornal que então controlava, o «Notícias da Beira». Mais tarde, Gouvêa Lemos abandonaria Moçambique com destino ao Brasil.

     O quadro de colaboradores permanentes do jornal era então um verdadeiro luxo, dele fazendo parte, entre outros, os poetas Rui Knopfli e Rui Nogar, além dos já referidos Eugénio Lisboa e Adrião Rodrigues, este último especialmente encarregado de comentar a política internacional. Todos se empenharam no projecto de alma e coração, «apenas por amor à causa e sem nunca receberem um chavo», afirma Eugénio Lisboa.

     Por isso, diz ele, «a desilusão foi enorme», sentindo-se «ludibriados» quando souberam que o proprietário tinha vendido «A Tribuna» ao Banco Nacional Ultramarino (BNU).

As coisas, porém, não foram tão lineares, conforme nos foi dado apurar. De facto, as cartas que João Reis nesse tempo dirigiu ao advogado Eurico Ferreira, seu amigo residente em Lisboa, demonstram inequivocamente que ele tudo fez para não perder o controlo do jornal. Essas cartas foram interceptadas e copiadas pela PIDE, em cujos arquivos, depositados na Torre do Tombo, tivemos agora oportunidade de as consultar.

De acordo com a sua leitura concluímos, em síntese, que o aumento de capital efectuado pelo BNU conferia a João Reis uma posição minoritária (apenas um terço das acções), mas sob promessa de que manteria as prerrogativas anteriores e que, durante dois anos, o Banco se abstinha de transacionar os dois terços de acções de que dispunha, por forma a dar-lhe preferência na aquisição.

A verdade é que tais promessas não passaram de um «31 de boca». Entre o prometido e o sucedido interpôs-se o intuito político de silenciar uma voz que, ao pretender-se independente, não agradava à classe dirigente. E não deixa de ser curioso que o mesmo governador-geral, almirante Sarmento Rodrigues, que em 4 de Agosto de 1962 deferira a autorização para o lançamento d’«A Tribuna», 18 meses depois evidenciasse satisfação em vê-la mudar de rumo, como se prova por esta informação da PIDE datada de 31 de Janeiro de 1964:

«O Banco Nacional Ultramarino tem presentemente a posição chave deste jornal na mão, podendo considerar-se para já sua propriedade. Sua Excelência o Governador-Geral disse há dias a determinados funcionários superiores directamente interessados em problemas africanos que, dada esta presente posição do banco, poderá o Governo contar com o apoio político-jornalístico da “Tribuna”.»

Como se vê, houve uma cilada político-financeira para retirar todo o poder a João Reis, aproveitando para o efeito as grandes dificuldades económicas em que se dabatia e ludibriando a sua boa fé. O certo, porém, é que muitos dos que o acompanharam nesta aventura sentiram-se igualmente ludibriados ao serem surpreendidos com o desfecho do caso.

 

Polémica dá origem a

demissão compulsiva

 

     Apanhado no turbilhão que constituiu esta mudança editorial, José Craveirinha ficou desenquadrado e desprotegido, envolvendo-se numa polémica que ditaria a sua sorte. O caso foi contado, de forma bastante esclarecedora, na já referida correspondência de João Reis para o seu amigo Eurico Ferreira, pelo que achamos preferível dar-lhe a palavra. Em carta de 11 de Março de 1964, escrevia ele:

     «O público perdeu a confiança no jornal. Os melhores elementos, entre os quais um José Craveirinha, grande poeta e grande jornalista, de quem já lhe falei, afastaram-se ou foram obrigados a afastar-se.»

E depois de algumas derivações sobre outros problemas relacionados com «A Tribuna», João Reis retomava o assunto:

«Um parêntesis para dizer alguma coisa sobre a demissão praticamente compulsiva do José Craveirinha. Há meses, um poeta local, de tendências e filiações nacionalistas, Nuno Bermudes (neto, julgo eu, do poeta Félix Bermudes), funcionário do Ultramarino, foi convidado a ir ao Brasil por conta duma dessas organizações semi-oficiosas portuguesas ali radicadas. Foi e disse para lá umas barbaridades sobre diversos assuntos, entre os quais o famigerado colonialismo, etc.

«O Craveirinha fez um artigo, aliás excelente, em que punha o Bermudes em face de várias contradições, não só de atitudes anteriores, como nas mesmas palestras feitas no Brasil. O elemento reaccionário ficou de sobreaviso, porque embora ele fosse muito esperto para o não mencionar, a verdade é que ficaram à mostra várias implicâncias de ordem política, o que alarmou os chamados poderes.

«O Bermudes, semanas mais tarde, vem à estacada defender a sua dama e os seus dizeres, atacando a pessoa (mulato) do Craveirinha pela sua raça, etc. Este responde, aliás magistralmente, e a publicação do artigo seria definitiva. A Censura leva o artigo ao Governador, que não se atreve – em

presença do Craveirinha, a quem mandou chamar para discutir e levá-lo a modificar o que escreveu (sem o conseguir) – a não autorizar. Consente na sua publicação. Mas o Craveirinha a virar costas e o Governador a chamar primeiro o director do Banco [João Raposo de Magalhães] e depois o director do jornal [dr. Frederico Mittermeyer Madureira], para lhes deitar responsabilidades se o artigo fosse publicado. (...)

«O director do Jornal, que aliás não gostava nem gosta do Craveirinha (como é que poderia gostar!) e recebia inúmeras sugestões para o eliminar, inclusivamente do presidente da União Nacional, Gonçalo Mesquitela, que pertence a organizações comerciais e industriais de que o dr. Madureira é advogado) manda-lhe uma carta proibindo-o terminantemente de publicar tal artigo, e aduzindo considerações de ordem política perfeitamente identificadas, aliás, com a sua posição e a dos seus amigos e correligionários. Mas a carta não tem categoria, embora seja um documento precioso...

«Coarctado assim no direito, que eu nunca lhe negara, de escrever, o Craveirinha apagou-se, passou a ser um burocrata no Jornal, como de resto deveria e parecia convir ao director (...) e seus mentores. Semanas mais tarde voltou a escrever, mas desta vez sobre o tiro aos pombos, na secção desportiva, reprovando tal prática – artigo, aliás, sem a menor sombra de insinuação política.

«Foi, porém, o bastante. Foi igualmente proibido de continuar a escrever e, não contentes com isso, acusaram-no de pouco interesse pelo jornal e falta de colaboração escrita. Levaram-no assim a demitir-se (o que ele estava a evitar fazer, a meu pedido, e no interesse do próprio jornal).

«Este episódio» – conclui João Reis – «deve ser como um iceberg: dele se viu e conheceu apenas a parte de cima, a que fica à superfície, e, mesmo assim, o que se viu dele  foi bastante pouco digno.»

 

A dificuldade de ser

profeta na própria terra

 

Na sequência da sua demissão d’«A Tribuna», José Craveirinha terminaria a actividade como jornalista, gorada que foi a hipótese de obter uma bolsa de estudo para frequentar em Paris a Escola Superior de Jornalismo, até porque não tinha habilitações académicas para tal. A ideia fora-lhe apresentada pela correspondente d’«A Tribuna» em Paris, Carmen Gonzalez, que lhe escreveu na sequência de diligências realizadas na capital francesa, durante as férias, pelo poeta Rui Nogar, o qual, a pedido de Craveirinha, efectuara contactos exploratórios junto do poeta Gualter Soares e do escritor Castro Soromenho, com vista à sua eventual deslocação para a Europa.

Entretanto, continuou a colaborar literariamente noutras publicações, designadamente no semanário «Voz de Moçambique», cuja secção cultural era particularmente viva graças ao contributo de personalidades como Eugénio Lisboa, Rui Knopfli e outros.

     Segundo declarações que nos prestou Adrião Rodrigues, este semanário era propriedade da Associação dos Naturais de Moçambique (maioritariamente brancos), da mesma forma que a Associação Africana, proprietária de «O Brado Africano», era maioritariamente constituída por mestiços. Daí que o «O Brado Africano» fosse pejorativamente referido como «jornaleco de mistos», dando origem a que esta designação chegasse a ser analisada num dos seus editoriais, servindo-lhe de título. Havia ainda a Associação de Negros, cuja caracterização racial o próprio nome indica. Ou seja: uma tríade associativa perfeitamente talhada segundo o típico figurino do «apartheid».

     Ainda segundo Adrião Rodrigues – cuja permanência em Moçambique se prolongou até 1979, chegando a ser vice-governador do Banco Central –, com o encerramento da Associação dos Negros e a decadência da Associação Africana, à qual foi imposta uma comissão administrativa nomeada pelo Governo, a Associação dos Naturais passou a ser o respaldo das demais, visto dispor ainda de «alguma liberdade».

     Isso reflectia-se no jornal «A Voz de Moçambique», em grande parte graças ao eng.º Homero da Costa Branco, que era simultaneamente presidente da Associação e director do jornal. Adrião Rodrigues refere-o como «um tipo fabuloso, que embora escrevesse raramente no jornal, sacrificou-lhe tudo, empenhando-se na defesa da sua independência, bem como na da Associação dos Naturais, a ponto de perder o emprego.»

     Como se vê, José Craveirinha seria um, entre muitos, que em Moçambique seriam imolados na fogueira da liberdade de expressão. Mas no seu caso com a agravante de, após a independência por que lutou com as armas da palavra – e que a justiça político-militar da era colonial castigou com quatro anos de prisão –, só muito tarde ter visto o seu valor oficialmente reconhecido na Pátria que ajudou a fundar.

Mas isso é outra história.

 

 

Fontes

 

Além das fontes citadas no texto, cumpre referir que, nos arquivos da PIDE/DGS existentes na Torre do Tombo, os processos consultados referentes a José Craveirinha e instituições ou publicações com ele relacionadas, foram os seguintes:

·       Proc.º 5501- CI (2) NT 7396

·       Proc.º 3429 NT 7266 Fundo SC, Série CI (2)

·       Proc.º 2668/54  NT 2752  Grupo AC, Fundo SC, Série SR

·       Proc.º 1361 NT 1220 Grupo AC, Fundo SC, Série CI (1)

·       Proc.º 7935-SR NP 5241

Quanto aos periódicos referidos no texto, a sua consulta verificou-se na secção de microfilme da Biblioteca Nacional («O Brado Africano» e «Voz de Moçambique») e na Hemeroteca Municipal («O Oriente», «Notícias», «Notícias da Tarde» e «A Tribuna», neste último caso com grandes lacunas)

 

...............................................................................................................................

 

Trabalho publicado no n.º 14 (correspondente a Abril/Junho de 2003) da revista «JJ - Jornalismo e Jornalistas», editada trimestralmente pelo Clube de Jornalistas, em Lisboa.

 

VOLTAR