Diário
de Notícias
Maputo,
10 de Março de 2004
Corrupção governamental? - por Ericino de Salema
(Maputo) A actual Primeira-Ministra (PM) de Moçambique, Luísa Dias Diogo, foi
ouvida a 20 de Fevereiro último - um dia depois de ter tomado posse nestas
novas funções - como declarante pela Unidade Anti-Corrupção (UAC), para
"esclarecer e confirmar" a forma como um edifício do Estado - hoje o
Polana Shopping Centre* - foi transferido para propriedade de uma firma
estrangeira, com aparente violação às leis moçambicanas.
No mesmo processo, foi ouvido o
actual ministro das Obras Públicas e Habitação, Roberto White. O seu
antecessor, João Salomão, foi também ouvido como declarante no mesmo processo,
à semelhança de Carlos Jessen, antigo vice-ministro do Plano e Finanças. A
qualquer momento, será ouvido o actual ministro dos Transportes e Comunicações,
Tomaz Salomão, que, no anterior Governo, era ministro do Plano e Finanças e que
tinha como "vices" Luísa Diogo e Carlos Jessen.
Sobre todos os nomes supra, há, na
óptica da UAC, fortes indícios de envolvimento em manobras criminais, com as
quais o Estado para o qual trabalham foi lesado em avultados valores
monetários. E as evidências mostram que centenas de milhar de contos continuam
a ficar por entrar nos cofres públicos, tudo devido à
"arranjos suspeitos", cujo zénite é a isenção de vários impostos aos
que estão a beneficiar daquele imóvel.
O processo poderá evoluir, nos
próximos dias, para a exigência de responsabilidade criminal por parte
daqueles. Há, para já, fortes indícios de haver abuso de cargo ou de função. A
UAC, apurámos, baseará a sua acusação no artigo 16º da
lei 9/87, de 19 de Setembro, que a seguir o transcrevemos ipsis verbis:
"Todo aquele que exercer as
funções inerentes ao seu cargo de modo contrário às leis, às ordens ou
instruções superiores, ou ultrapasse arbitrariamente os limites da sua competência
com intenção de prejudicar alguém ou com o intuito de obter, para si ou outrem,
benefício ilícito, é punido com pena de prisão até dois anos".
O CERNE DA QUESTÃO
O caso começa com uma denúncia
telefónica e anónima, acolhida por um funcionário da UAC a 17 de Julho de 2003.
Basicamente, o "ilustre denunciante" pedia àquele organismo que
procedesse à investigação em três pontos: Polana Shopping Centre, constituição
da Vodacom-Moçambique e contrato Governo-Crown-Agency.
Logo, uma equipa da UAC iniciou com
algumas averiguações e, depois destas terem dado fortes pistas de existência de
manobras corruptas, o caso foi transformado em processo-crime, no qual "há
quem já foi ouvido como arguido".
No espaço onde hoje está localizado
o majestoso edifício do Polana Shopping Centre, até há poucos anos, existiam
apenas fundações, essas que, em rigor jurídico, são igualmente tratadas como
sendo edifício.
O "cheiro à corrupção"
transpira a partir dos dados constantes da Conservatória do Registo Predial de
Maputo face àquele edifício, registado sob o número 2714: é que, nos termos do
artigo 16, do decreto 2/91, de dezassete de Janeiro, aquela infraestrutura do
Estado é intransmissível a estrangeiros. Mas esse postulado legal acabou sendo
violado, a partir do que o edifício passou a ser propriedade da IMOPAR, SA, de
capitais estrangeiros.
João Salomão foi o primeiro a ser
ouvido como declarante pela UAC.
Apurámos ter sido esta a primeira
pergunta que lhe foi colocada: como é que se torneou a intransmissibilidade do
edifício? A resposta de João Salomão, irmão mais velho de Tomaz Salomão, foi
esta: "Isso nunca me ocorreu".
Ao que o DN apurou, a mesma pergunta
viria a ser colocada ao actual ministro das Obras Públicas e Habitação, ao que
respondeu: "Pelo que sei, nenhuma intransmissibilidade existe".
Outra questão que os investigadores
da UAC colocaram aos seus declarantes tem a ver com a forma como a IMOPAR
efectuou (?) os pagamentos decorrentes da aparentemente ilegal adjudicação
daquele edifício.
Soubemos ter sido acordado um preço
que não chegou a ser pago, com o que o Estado ficou mais prejudicado ainda. Depois de
discutidas as modalidades da alienação, estipulou-se um preço de USD 221.648.50
(duzentos e vinte e um mil, seiscentos e quarenta e oito dólares norte
americanos e cinquenta cêntimos), referente ao título da adjudicação.
As partes decidiram que o pagamento
não seria em dinheiro físico: o Estado ficaria com uma área bruta de 488 metros
quadrados no edifício a construir, referentes a escritórios e apartamentos.
Mas, sete anos após a feitura do
termo da adjudicação, datado de Março de 1991, a IMOPAR encetou diligências
junto dos Ministérios das Obras Públicas e do Plano e Finanças, no sentido de
se reduzir o valor combinado, alegadamente por os seus (Corrupção
governamental?) técnicos terem concluído que as supracitadas fundações eram
inúteis, pelo que tinham que ser destruídas.
A IMOPAR defendeu, nessa altura,
que a destruição daquela fundação e posterior construção doutras estavam
avaliadas em USD 84.539.14 (oitenta e quatro mil, quinhentos e trinta e nove
dólares norte-americanos e catorze cêntimos).
Nisso, Roberto White e Carlos Jessen, que respondiam, respectivamente, pelos
Ministérios das Obras Públicas e do Plano e Finanças, não se entendiam nos descontos
que deviam ser feitos sobre o valor que tinha sido aprovado.
O ministro das Obras Públicas e
Habitação autorizou, unilateralmente, que o valor combinado em 1991 fosse
reduzido nesse ano (1997) em 50 por cento.
Indagado pela UAC sobre o que teria
motivado esta sua decisão, White afirmou que "era imperioso que o
investimento não falhasse", tendo ajuntado que "não há corrupção nem
irregularidade alguma".
Até aqui, Carlos Jessen se afigurava
à margem do problema. Mas não tardou em estar na berlinda. As coisas foram
assim: a IMOPAR alterou a modalidade de pagamento, pelo que, ao invés de ceder
a área retromencionada, pagou em dinheiro.
É aqui, apurámos, onde aquele antigo
vice-ministro do Plano e Finanças começa a ter alguma "culpa no
cartório".
Para já, a obviosidade manda inferir
que, para o Estado, era economicamente mais racional receber pela via daquela
área bruta e não naqueles valores monetários.
O auto de entrega daquele edifício à
IMOPAR data de 19 de Janeiro de 1993. Representou o Estado Victorino Joaquim,
na altura presidente da Comissão Nacional de Avaliação e Alienação, enquanto
que aquela firma estrangeira fez-se presente pela via do cidadão português
Pedro Mário dos Santos Baptista.
A "MAKA" DE LUÍSA DIOGO
Luísa Diogo foi prestar declarações
na UAC na sua qualidade de ministra do Plano e Finanças. O mote da sua audição
é o facto dela ter isentado a IMOPAR e todos quanto comprassem os apartamentos
do Polana Shopping Centre do imposto do Sisa, que é pago, obviamente, ao
Estado, quando há alienação de um imóvel.
Guiada pela aparente inexistência de
um fundamento legal na decisão de Luísa Diogo, a UAC ouviu-a, tendo aquela
dito, dentre vários aspectos, que se trata de um projecto de investimento, que
beneficiou de incentivos fiscais e aduaneiros, ao abrigo do decreto 12/93, de
21 de Julho, que viria a ser alterado pelo decreto 37/95.
Apurámos que a actual PM admitiu à
UAC ter constatado, quando o dossier chegou às suas mãos, que havia benefícios
exagerados a favor da IMOPAR. Mas terá dito que não podia quebrar o curso dos
acontecimentos, pelo que tinha que prosseguir, além de que se estava perante um
projecto "que estava a ser muito acarinhado". Alguns dos que foram à
UAC prestar declarações são proprietários de apartamentos no "Shopping
Centre".
Técnicos de várias especialidades ouvidos
pela UAC referiram que a isenção do imposto do Sisa nenhum fundamento legal tem
e frisam que esta é a primeira vez que uma coisa similar acontece no País. O
Estado perdeu e continua a perder, com isso, avultadas somas de dinheiro.
Sobre o Sisa, existem dois despachos
de Luísa Diogo, um dos quais é dado como desaparecido dentro do próprio
Ministério do Plano e Finanças. O primeiro tem a ver com a isenção à IMOPAR,
que é o primeiro adquirente, enquanto que o segundo despacho isenta os
subsequentes compradores. A isenção à IMOPAR pode ser mesmo compreendida como
"um incentivo", mas, quanto aos subsequentes compradores, a situação é
outra, com a agravante de haver muitos estrangeiros que estão a adquirir os
referidos apartamentos, sem nada pagarem ao Estado moçambicano, que vive
apelando à caridade pública internacional.
Aliás, a IMOPAR já tinha beneficiado
doutras isenções fiscais e aduaneiras, pela via do anterior ministro do Plano e
Finanças, Tomaz Salomão, como o ilustra um despacho por ele assinado, datado de
25 de Março de 1997.
Dados avançados por Francisco Ilídio
Rocha Dinis, representante legal da IMOPAR, indicam que o Centro Cimpor, vulgo
Polana Shopping Centre, tem 24 andares. O espaço que vai do quarto ao décimo
primeiro andar está reservado a escritórios, enquanto que do décimo segundo ao vigésimo
quarto andar localizam-se os apartamentos. Segundo Rocha Dinis, já foram
vendidos 21 apartamentos.
O DN apurou que a equipa de
investigadores da UAC tem já elaborado os seus postulados. O que poderá suceder
nos próximos dias, se não houver algum "curto-circuito", se resume no
seguinte: alguns dos governantes que foram ouvidos na
qualidade de declarantes serão chamados à responsabilidade criminal.
Há cerca de três semanas, o ex- Primeiro-Ministro de Moçambique, Pascoal Manuel Mocumbi,
concedeu uma entrevista ao semanário independente ZAMBEZE, na qual dizia, dentre
várias coisas, que a corrupção em Moçambique não é assim tão alta como se
especula nalguns círculos.
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* o actual edifício é propriedade da Cimpor, da qual a
Imopar é provavelmente parte integrante.