Crónicas Urbanas
Maria José Serra Ribeiro Arthur
Quem
disse que os patos são animais pacíficos? Tal como vejo as coisas e de acordo
com a minha experiência, até a mais letárgica das criaturas se pode encontrar
no meio de um conflito, daqueles cabeludos, de envolver meia cidade e as mais
altas autoridades. Foi o que aconteceu com um pato de vida anónima, quarto
filho de uma ninhada, que depois de uma breve exposição à fama teve um trágico
destino. O problema é que nesta estória, dele, que foi a principal vítima,
pouco se ficou a saber dos desígnios, das intuições e dos seus secretos sonhos
de animal. Se deixou viúva e filhos, ignora-se. O que é certo é que ele era
indisciplinado, pois tinha criado o hábito de se escapar da cerca da casa e
atravessar a rua ao sabor dos seus caprichos. E foi numa dessas escapadelas que
se atirou contra o chapa que
circulava a alta velocidade ainda tão cedo na manhã, pois mal haviam dado as
seis horas. O pato desatou a fugir, bateu as asas para ir mais depressa,
esvoaçou, e por isso o embate deu-se ao nível do vidro párabrisa da carrinha,
estilhaçando-o de imediato.
O
motorista do chapa não percebeu logo
o que se passava. Num momento deslizava veloz pela rua da Estratégia Popular e
no instante seguinte ficou com o vidro no colo, felizmente em pedaços não
cortantes. Jacinto, de seu nome, era um jovem empreendedor, que em três anos
tinha passado de cobrador a motorista, que é o mesmo que dizer, o topo da
hierarquia neste negócio de transportes. Mais adequado à dignidade que exibia.
Muito se tinha esforçado para isso, evidenciando-se por ser expedito e duro o
bastante para enfrentar qualquer cliente mais exigente ou recalcitrante. Sendo
que o sistema de pagamento estava baseado no número de viagens excedentárias
para além das suficientes para atingir o montante diário que tinha de entregar
ao proprietário do chapa, o tempo era
um factor muito importante. Por exemplo, se conseguisse ter a camioneta cheia,
bastavam oito viagens por dia para juntar a quantia devida ao dono da viatura.
Todas as que fizesse a partir daí destinavam-se ao pagamento do combustível e
depois era só lucro pessoal. Também devia assumir os riscos de acidente, desde
que provado que fora por sua culpa, e as multas por excesso de velocidade. O
percurso normal era do subúrbio mais remoto, até ao centro da cidade. Ir e vir
consumia-lhe uma hora em períodos calmos e quase duas horas nos momentos de
maior tráfego. Em suma, Jacinto era uma máquina de fazer dinheiro para o seu
empregador, e a única possibilidade de reverter essa situação a seu favor era
conseguir rendimentos razoáveis para si mesmo. Nem aos Domingos podia parar,
não fosse entrar outro jovem que se propusesse ao patrão, prometendo trabalhar
mais e todos os dias, acabando por ser posto de lado. Aliás, tinha sido dessa
maneira que ele conseguira aquele lugar. Muito intrigara até demonstrar que o
anterior motorista se dedicava pouco ao trabalho.
Quando o
pato partiu o vidro párabrisas, Jacinto já ia na segunda viagem da manhã e o
incidente estragou-lhe o dia. Ao preço a que estavam as peças, repor os
estragos ia-lhe custar uma semana inteira de lucros. Havia, pois, razão para
lamentar e praguejar contra o azar. Parou imediatamente o chapa com intenção de procurar pelo dono do pato, para
responsabilizá-lo pelo acidente. Pelo sim, pelo não, deitou a mão ao animal,
prova material do que acontecera. Ajudado pelo cobrador e observado pelos
trinta passageiros que se amontoavam no interior da carrinha, interpelou
vigorosamente os passantes e as mulheres que àquela hora procediam à limpeza
dos quintais das casas na proximidade. O dono do pato, se deu conta do alarido,
manteve-se prudentemente escondido. Afinal, mais valia ficar sem um animal do
que assumir estragos que dariam para comprar mais de dez patos. De nada valeram
as ameaças e os insultos, não se conseguiu descobrir a quem imputar as culpas
do desastre. Foi aí que um dos passageiros sugeriu uma queixa na esquadra de
polícia mais próxima, o que poderia talvez, e frisou o talvez, servir como
prova para o proprietário do chapa,
de que o motorista estava inocente de culpas no acidente. Este, a quem não
restava mais nenhuma alternativa, agarrou-se à sugestão e, desviando o chapa da sua rota, para lá seguiu com os
seus trinta passageiros e com o pato que, para além do vidro partido,
constituía evidência única do acontecido.
Perante
este acto intempestivo, os passageiros ficaram revoltados. Até mesmo o que
fizera a sugestão, não esperara ficar envolvido directamente nessa aventura.
Àquela hora da manhã, com pouco movimento ainda na cidade, os passageiros
conheciam-se vagamente uns aos outros. Havia operários que se apresentavam para
a mudança de turno, guardas de prédios e de estabelecimentos comerciais,
empregados domésticos e vendedores, que ou iam comprar verduras e fruta para as
revender mais tarde noutros mercados, ou iam montar as suas bancas. Embora já
de há muito habituados às decisões arbitrárias dos condutores dos chapas, como mudar de rota a meio do
caminho ou fazer paragens não previstas para o almoço ou lanche do motorista e
do cobrador, o desvio do veículo para uma esquadra da polícia, onde toda a
gente sabe que os assuntos demoram imenso tempo a resolver, já parecia
exagerado. D. Guilhermina, grande e obesa, que por esse motivo fora obrigada a
pagar o equivalente a dois passageiros, era quem se sentia com mais direito de
refilar e não se coibía de fazê-lo, enchendo a viatura com a sua voz aguda mas
forte. Escudando-se nela, ergueu-se um coro de vozes discordantes, protestando
contra o que seria um inevitável atraso nos seus afazeres diários.
Jacinto
ignorou este coro de protestos não se dignando sequer a responder e, com a
autoridade de quem tem o volante nas mãos, continuou em direcção à esquadra. O
cobrador sentiu-se obrigado a intervir, talvez por estar do lado de cá, perto
dos passageiros, e mandou um berro para se fazer ouvir dizendo que se calassem
pois todos eram necessários como testemunhas. Este tom autoritário ainda
exacerbou mais os ânimos e em breve, no apertado espaço da camioneta, se
instalou a confusão. Aproveitando que todos se encontravam concentrados na sua
revolta, Jorge foi metendo as mãos nos bolsos dos passageiros mais próximos,
com o que conseguiu arrecadar algum dinheiro. Do lado contrário, Damião,
pensando passar despercebido no meio de tantos encontrões e empurrões, foi-se
insinuando entre as coxas da passageira à sua frente, roçando-se primeiro
devagar e depois mais descaradamente. Nessa altura perdeu o controle e foi
desmascarado, o que lhe valeu uma bofetada e um pontapé da visada, mulher séria
nada dada a aventuras casuais com qualquer desconhecido e ainda para mais em chapas! O berreiro que fez chamou a
atenção dos outros, que alertados, voltaram a tomar as precauções habituais
neste tipo de transporte, deitando imediatamente a mãos aos bolsos. A agitação
ganhou mais consistência com o coro dos que acabavam de descobrir terem sido
roubados.
Assim,
quando o chapa parou finalmente em frente à esquadra, as queixas a apresentar
não se limitavam só ao infeliz acidente com o pato, mas tinham entretanto sido
estendidas a outros assuntos. Ao abrirem-se as portas saíram todos em tropel e
no meio de um vozeiral que despertou imediatamente os agentes sonolentos, que
completavam o turno da noite e contemplavam ansiosamente o relógio a calcular
quanto mais tempo lhes faltava para despegar. Jacinto avançava na frente com o
pato na mão, seguido do cobrador e de trinta e tal passageiros enfurecidos, que
falavam ao mesmo tempo.
Os agentes que se
encontravam nos fundos, crendo tratar-se de uma invasão ou manifestação a
propósito de qualquer motivo desconhecido, acorreram de armas nas mãos,
amedrontados, prontos a venderem cara a pele. Quando se aperceberam tratar-se
de um grupo animado simplesmente do propósito de participar ocorrências
policiais, veio-lhes ao de cima a natural arrogância das forças da lei e,
usando do tom mais imperativo e de gestos ameaçadores com os cacetetes em
punho, conseguiram restaurar um pouco a ordem. Quando o oficial de serviço
indagou sobre a ocorrência que ali os trazia, nova algazarra se verificou, com
Jacinto a falar do acidente e brandindo o pato, as vítimas do roubo a exigirem
justiça e a passageira molestada a querer denunciar o assediador.
Ao fim de
um certo tempo foi possível chegar a um consenso, de que primeiro se explicaria
a presença inusitada de um pato na esquadra, passando-se depois às outras
ocorrências. Entretanto, para não prejudicar nenhum dos queixosos, ninguém foi
autorizado a ir-se embora, pois ainda havia que revistar um a um os
passageiros, para se apurar quem tinha deitado a mão a bolsos alheios.
Após uma
primeira explicação de Jacinto, a medida imediata que se impôs foi encarcerar o
pato que, bastante abalado com o acidente, nem forças tinha para reagir perante
tanta balbúrdia. O animal foi colocado na cela dos fundos, destinada à prisão
preventiva dos infractores que passavam pela esquadra. Em seguida foi
perguntado ao queixoso o que pretendia exactamente, ao que este respondeu
querer descobrir o dono do pato e um papel oficial, garantindo que o acidente tinha
sido notificado à polícia e que ele, o motorista, estava isento de culpas. Os
agentes, que não gostam de se comprometer de qualquer maneira, foram observar
cuidadosamente a viatura e o vidro partido, para no fim emitirem o veredicto:
assim do pé para a mão, era difícil de saber de quem tinha sido a culpa.
Jacinto não gostou e disse que, uma vez que havia várias testemunhas, que lhes
perguntassem como é que as coisas se tinham passado. O problema com esta
sugestão é que uma parte dos passageiros, já muito irritados com a situação e
vendo o tempo a passar, por vingança, declararam não saber quem tinha
atropelado quem. Seria o pato que se pusera no caminho do chapa ou Jacinto que manobrara propositadamente para matar o
animal? Perante estas afirmações, o grupo cindiu-se em dois: os pró-pato e os
pró-Jacinto, que de repente se viu no meio de uma disputa em que era colocado
em pé de igualdade com um animal.
Entretanto,
e porque aos poucos se sentiam mais confiantes, os passageiros começaram a
exigir dos polícias o seu dever de hospitalidade. Uns pediram água e, sobretudo
as mulheres, exigiram ter acesso à casa de banho da esquadra. D. Guilhermina
capitaneava esta reivindicação e, quando alguém ousou insinuar uma recusa, sob
pretexto de que as mulheres sujavam as sanitas e o chão, ela avançou com ar
ameaçador e saiu vitoriosa neste breve confronto. Conforme a discussão avançava
foram-se pondo mais confortáveis, sentando-se nos bancos e nas poucas cadeiras
disponíveis, aproveitando a ocasião para bisbilhotarem um pouco por toda a
parte.
O bate
boca aquecia mas, como não se adiantava nada com o assunto, um dos presentes
sugeriu que se examinasse atentamente o pato, para tentar entender o ângulo do
embate no vidro, o que poderia trazer luz sobre as responsabilidades
respectivas no acidente. Acatando esta proposta, o oficial ordenou a um dos
agentes que trouxesse o animal. No entanto, quando o referido agente se dirigiu
à cela, deu conta do seu desaparecimento.
Esta nova
ocorrência, da total responsabilidade dos polícias, uniu de novo os passageiros
na comum acusação de que agora até nas esquadras havia roubos, porque um pato
dificilmente teria inteligência para se evadir da prisão. Instaurado de imediato um inquérito,
apurou-se que um dos agentes largara entretanto o serviço e que, na ausência de
outra explicação, só ele poderia ter levado o animal. Não querendo abrir mão
dessa importante evidência que contava apresentar ao seu patrão, Jacinto
propôs-se a conduzir os agentes até à casa do colega para tentar recuperar o
pato. Como nenhum dos passageiros estava autorizado a ir-se embora chegou-se à
conclusão de que o mais seguro era seguirem todos em grupo para fazer essa
diligência, pois dessa forma continuariam sob vigilância policial. Ignorando-se
os protestos dos que discordavam desta decisão, todos foram forçados a entrar
de novo na carrinha, agora ainda mais apertados do que antes, pois levavam
consigo os três agentes destacados para conduzir o inquérito. Felizmente que a
casa do suspeito não ficava muito longe.
Camarinha
Mavate, assim se chamava o presumível ladrão do animal, tinha efectivamente
levado o pato. Note-se que ele não considerava que tinha roubado, mas
simplesmente, perante o absurdo da prisão de um animal, decidira dar-lhe um uso
mais racional, até porque o seu magro salário não lhe permitia muitas vezes o
luxo de provar tais iguarias. Claro que quando lhe chegaram a casa a gritar e a
acusar, Camarinha negou tudo. Só não conseguiu manter a sua versão porque lhe
forçaram a entrada e, no quintal, encontraram o pato que tinha acabado de ser
morto pela sua mulher, que se preparava para o arranjar para o almoço. O pobre
animal terminava assim a sua breve mas aventurosa vida.
Jacinto
foi-se abaixo com esta novidade e ele, que tinha adquirido na vida uma couraça
que lhe permitia sobreviver nas condições mais adversas, sentiu-se de repente
cansado de tudo. De que adiantava lutar, espernear, intrigar, se no fim de
contas todos estavam presos nas teias de algo que não controlavam e que ao fim
e ao cabo os mantinha no limiar da pobreza e os impedia de desfrutar da vida?
Nesse momento teve saudades da sua infância despreocupada, de antes da guerra,
lá na aldeia, onde a sua única responsabilidade era levar os cabritos a pastar.
Foi
quando um dos presentes, não se sabe se por solidariedade ou por querer
encerrar aquele assunto, propôs que se fizesse uma declaração sobre o que havia
ocorrido e que ele, pelo menos, mesmo não sabendo se teria algum valor,
assinaria a comprovar tudo. Este gesto teve a adesão geral e até Camarinha, na
sua qualidade de agente, talvez por sentir que tinha culpas, declarou não se
importar de deturpar um pouco as coisas e apresentar-se como mais uma
testemunha do acontecido.
De novo
na esquadra, desta vez para tratar das outras queixas, foi impossível recuperar
o dinheiro roubado e descobrir quem fora o ladrão. Já praticamente ninguém
reagiu, pois a manhã ia avançada e a maioria estava cansada e exasperada. A
passageira molestada, também entretanto fatigada com tudo aquilo, desistiu da
queixa. Finalmente foi dada permissão para que se retirassem e cada um se
dispersou para seu lado, procurando encontrar outro chapa e já a pensar na desculpa que dariam aos empregadores para
aquele atraso, na certeza de que um episódio destes dificilmente poderia ser apresentado
como justificação. É que há pessoas que vivem como os outros nesta cidade, mas
o mundo deles na prática fica a milhas de distância de coisas como estas que
acontecem diariamente e que, afinal, constituem a realidade que sustenta esta
metrópole.