A descolonização que Salazar recusou

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Ditadura, Franco Nogueira, propôs a Salazar, em Janeiro de 1962, escassos dias depois da anexação de Goa pela União Indiana, a entrega de Macau à China e de Timor à Indonésia, acompanhadas de negociações sobre a independência da Guiné e de São Tomé e Príncipe, como forma de assegurar o domínio colonial sobre Angola, Moçambique e Cabo Verde. O documento que explicita o surpreendente volta-face da estratégia política do chefe da diplomacia do Estado Novo, mantido até hoje secreto, foi encontrado no espólio do ditador, depositado na Torre do Tombo, à guarda da Biblioteca Nacional.

Texto de Orlando Raimundo*

 

 

 

Intitulado «Notas Sobre a Política Externa Portuguesa», o documento, de 18 páginas, datado de 12 de Janeiro de 1962, não está assinado, como era costume entre os diplomatas, mas não há grandes dúvidas sobre a sua autoria. O «dossier» onde foi encontrado reúne pastas do gabinete de Franco Nogueira nas Necessidades, relativas a conversas mantidas com Salazar e com embaixadores acreditados em Lisboa, no ano de 1962 e inícios de 1963. A anotação aposta na primeira página, pelo punho do próprio ditador - «Começado a analisar com o ministro dos Negócios Estrangeiros numa das nossas conferências» - é a prova da sua autenticidade e a confirmação categórica de que o tema foi discutido com Salazar.

A iniciativa de Franco Nogueira surge num momento de grande vulnerabilidade para o regime: a 18 de Dezembro de 1961, as tropas indianas tinham invadido Goa, Damão e Diu. Os 50 mil homens armados, dos três ramos das Forças Armadas, só precisaram de 24 horas para obter a rendição total, assumindo soberania plena sobre os territórios e abalando fortemente o edifício político da Ditadura. Apesar de «avisado», desde Julho de 1954, pelo assalto aos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, Salazar não acreditava que a invasão se concretizasse.

Apostado em conseguir a admissão de Portugal na ONU, o ditador ensaiara, no rescaldo da II Guerra Mundial, uma pequena operação de cosmética, na tentativa de convencer a comunidade internacional de que Portugal vivia uma «democracia orgânica» e não uma ditadura. Anunciou eleições «tão livres como na livre Inglaterra», e mudou o nome da polícia política (de PVDE para PIDE); do secretariado de propaganda (de SPN para SNI) e dos Tribunais Militares Especiais (que passam a chamar-se Tribunais Plenários). Durante os anos de 1946 e 1947, concede um espaço de breve respiração à oposição, no que apelidou de «liberdade suficiente», sempre vigiada pela polícia política, e mandou transformar o Tarrafal de campo de concentração em «prisão normal».

Apesar dos protestos da oposição, sobre a ausência de liberdades, a ONU acabou por aceitar a entrada de Portugal em Dezembro de 1955, em simultâneo com a Espanha franquista. A decisão da comunidade internacional foi determinada por dois factores associados: o receio de que o comunismo se instalasse na Península Ibérica, que obrigava a ter em atenção o papel de Franco e Salazar; e a necessidade de encontrar uma compensação, de sinal contrário, para a entrada da União Soviética na organização.

 

 

Apesar dos ataques e das condenações, a elite salazarista continua a resistir à descolonização.

A posição do ditador é determinada por razões exclusivamente políticas. Salazar, que recusara todas as tentativas dos movimento nacionalistas africanos para consigo negociar uma transição pacífica, já não está convencido de que a sobrevivência económica do país dependa das colónias. Os resultados da exploração económica são cada vez menores. E não são os interesses da CUF na Guiné, ou os investimentos em Angola, que o fazem mudar de posição. A tese de Salazar é outra: fundamenta-se na convicção de que o regime ditatorial não sobrevive sem as colónias. E não hesita, por isso, em enfrentar tudo e todos, resistindo mesmo às pressões dos países que o apoiam.

O avanço de Nehru sobre Goa, para além de pressionado pelo movimento terceiro-mundista, tinha sido discretamente encorajado pelo Presidente norte-americano John Kennedy, adepto assumido da descolonização. «A Índia, onde estava como embaixador americano John Kenneth Galbraith, era muito importante para os Estados Unidos. Kennedy, de acordo com o Governo brasileiro, tinha tomado antes uma iniciativa diplomática, oferecendo a Salazar uma solução gradual e negociada para os territórios chamados então províncias ultramarinas. Mas Salazar voltou a recusar o diálogo, pensava que podia resistir», recorda Mário Soares, na longa entrevista memorial concedida a Maria João Avillez em 1996.

Significativo é o facto, que não passou despercebido a ninguém, de o avanço das tropas indianas cobre a colónia portuguesa ter sido concretizado escassas semanas após o pacifista Nehru ter regressado de uma viagem aos Estados Unidos.

O célebre «Discurso de Goa», de 3 de Janeiro de 1962, em que Salazar desafia Nehru, dizendo que «a questão não acaba ali, antes começa» - lido de forma teatral pelo presidente da Assembleia Nacional, Mário de Figueiredo, por o ditador estar supostamente «com a voz embargada pela emoção», serve de mote à proposta. A iniciativa partiu do próprio Franco Nogueira, que faz questão de anotar, logo a abrir, que se trata de uma «contribuição não solicitada».

 

 

Dando por adquirido que as bases da política colonial «não se coadunam com o mundo ocidentalem que somos obrigados a viver» e que o objectivo da pressão anticolonial «não é uma vitória militar, mas a queda do regime», o chefe da diplomacia do Estado Novo divide as colónias entre «essenciais e não essenciais». No lote das primeiras inscreve Angola, Moçambique e Cabo Verde, colocando todas as outras na posição de dispensáveis.

Desprezando por completo S. Tomé e Príncipe, onde então se não vislumbrava qualquer possibilidade de haver petróleo, lembrava que a Guiné se configurava já «como o território para o qual é mais difícil delinear uma solução aceitável». E propunha, para abrir caminho, a realização de «conversas exploratórias secretas» com o regime senegalês.

No caso de Macau, o ditador não é confrontando de chofre com a necessidade de promover a «transferência de soberania com manutenção de laços simbólicos com Portugal». Como qualquer bom negociador, Franco Nogueira descortina duas hipóteses alternativas, como forma de ganhar tempo, embora não pareça acreditar em nenhuma delas: o estatuto de «porto franco» ou a criação de um «condomínio». E sugere «negociação semelhante com a Indonésia em relação a Timor».

Para Angola, Moçambique e Cabo Verde, elevadas à condição de «jóias da coroa», Franco Nogueira prescreve várias soluções cruzadas, destinadas todas elas a assegurar o poder colonial: «pactos militares secretos de assistência mútua local» com a Rodésia e a África do Sul, obtendo empréstimos financeiros e mão-de-obra barata a troco de energia; a criação de elites locais; a fixação de «colonos espanhóis» e emigrantes de outros países, «designadamente italianos, gregos e franceses da Argélia, da Metrópole ou do norte de África»; a concessão de facilidades económicas a Espanha, na base de um novo Tratado Peninsular, e de facilidades ou preferências comerciais ao Brasil; e a «captação», no caso específico de Angola, «de certos grupos políticos estabelecidos no Congo, de feição nacionalista angolana mas moderados e ainda não lançados na luta armada». Um pedido de associação rápida ao Mercado Comum (actual União Europeia) facilitaria imenso as coisas, em sua opinião.

 Advertindo para a necessidade de se dispor de recursos financeiros para o êxito da operação, que deveria provocar um surto de desenvolvimento, o diplomata propunha-se ainda negociar com os países vizinhos o estatuto de Cabinda, que na sua opinião «nem historicamente nem em função da geografia ou da economia terá (teria) necessariamente de acompanhar Angola»; reduzir a contribuição financeira na NATO, «procurando libertar-nos da rede de obrigações impostas pela organização»; e aumentar «substancialmente» o montante do arrendamento da base das Lajes, reduzindo o prazo da durabilidade dos acordos.

A chegada de John Kennedy à Casa Branca mudara por completo o modo como os norte-americanos encaravam as ditaduras ibéricas e os impérios coloniais. Salazar foi a primeira vítima da nova política de Washington para com África. E o embate entre o Presidente democrata e o ditador de Santa Comba foi inevitável. O inquilino da Casa Branca chegou a propor ao ditador a completa independência das colónias, sob a fórmula da autodeterminação, mas Salazar recusou liminarmente a proposta. Inaugurando um novo estilo, Kennedy privilegiou sempre os contactos directos com os movimentos de libertação, que apesar da desconfiança correspondiam aos acenos de simpatia norte-americanos.

«Salazar tinha traçado a política externa portuguesa, tornando-se prisioneiro das suas opções políticas. Tendo assumido o poder quando Portugal tinha fronteiras imperiais respeitadas internacionalmente e motivo de orgulho para os portugueses, incluindo intelectuais e políticos de oposição ao regime, Salazar empenhou-se em defender essas fronteiras sem fazer concessões, consciente de que se tratava de uma política nacional, legítima e julgada exequível, e convencido de que a menor cedência teria efeitos em cadeia que seriam incontroláveis e irreparáveis», observa o embaixador João Hall Themido no seu livro de memórias.

Na lógica radical do ditador, a defesa intransigente das colónias portuguesas, «cobiçadas pela URSS através dos seus peões no terreno», os movimentos nacionalistas de libertação, deveria ser encarada pelos países capitalistas como causa sua. Estava mesmo convencido - assegura Hall Themido - que o mundo ocidental «acabaria por reconhecer as vantagens de poder contar com um espaço territorial português de incontestável valor estratégico, mesmo que discordasse do regime existente em Lisboa e da política colonial prosseguida».

 

Enquanto Franco Nogueira, encarregue de aplicar no terreno as suas orientações pessoais e directas, procurava construir um argumentário coerente - manipulando como podia a memória histórica e os documentos oficiais das próprias Nações Unidas -, Salazar apostava forte no agravamento da Guerra Fria. Era a fobia do comunismo, encarado como ameaça séria não apenas pelo regime do Estado Novo mas também pelas potências ocidentais. Na esperança de que fosse tudo uma questão de tempo, o ditador enfrentava com grande convicção e com muita firmeza as adversidades, tanto a nível interno como no plano internacional.

A 4 de Fevereiro de 1961 rebentara a rebelião em Angola, com o assalto às prisões de Luanda onde se encontravam presos activistas e dirigentes da resistência nacionalista. A Argélia tornara-se já independente e 17 outros Estados do continente africano também. Mas a questão colonial continuava a ser o mito e a obsessão do salazarismo.

O ano começou da pior maneira para Salazar, com o assalto ao paquete «Santa Maria», logo em Janeiro, numa operação comandada por Henrique Galvão, que contribui fortemente para desacreditar o regime a nível internacional. A 15 de Março, o Norte de Angola é sacudido por ataques terroristas e dias depois os Estados Unidos, seguindo uma orientação de John Kennedy, eleito dois meses antes, votam no Conselho de Segurança das Nações Unidas uma resolução contra Portugal. Segue-se a decisão do Congresso norte-americano de decretar um embargo à venda de armas a Portugal. O ditador sente-se traído pelo «amigo americano» mas assume directamente o comando das operações. «Se é precisa uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional, mesmo antes da remodelação do Governo que se verificará a seguir, a explicação pode concretizar-se numa palavra, e essa é Angola», diz, num célebre discurso, difundido por todos os meios de informação .

Internamente, a situação complica-se também bastante: a 13 de Abril, o general Botelho Moniz, ministro do Exército, lidera uma tentativa de golpe de Estado, que fracassou; em Novembro um avião da TAP é desviado, em pleno voo, por um grupo de opositores liderado por Hermínio da Palma Inácio, que depois lança «panfletos subversivos» sobre Lisboa; e a 31 de Dezembro dá-se o «Golpe de Beja», uma nova tentativa (também falhada) de derrubar Salazar, durante a qual o general Humberto Delgado entra e sai clandestinamente de Portugal.

O golpe de Botelho Moniz, um homem de direita, visava precisamente a procura de uma solução negociada para o problema colonial, no pressuposto de que a guerra era uma opção sem saída. O conspirador contava com o apoio dos comandos militares e o discreto incentivo dos americanos, com quem contactava directamente nas reunião da NATO. Mas cometeu uma ingenuidade de última hora, ao pressionar Américo Thomaz para demitir Salazar, acabando por ser por ele denunciado e colocado em prisão domiciliária. É no rescaldo desse processo que Salazar, em jeito de resposta, profere a célebre frase: «Para Angola, rapidamente e em força».

O «Golpe de Beja», que não passou afinal de um assalto mal sucedido ao quartel daquela cidade alentejana, durante o qual foi morto o secretário de Estado do Exército, foi liderado por um grupo de militares e civis que incluía os capitães Varela Gomes e Eugénio Oliveira, que foram presos, e Manuel Serra, Fernando Piteira Santos e Ramos da Costa, que tiveram que fugir clandestinamente do país.

O documento encontrado no Arquivo Salazar contraria em toda a linha tudo quanto Franco Nogueira disse e escreveu sobre o assunto, antes e depois do 25 de Abril, alterando profundamente a imagem de total intransigência que dele retém a História. Esse facto constitui, por si só, um elemento de grande perturbação para os homens do regime que com ele partilharam missões. Adriano Moreira, o ministro do Ultramar - que reconhece de imediato a caligrafia de Salazar e a «maldita caneta com o aparo já gasto», que dificultava a decifração -, diz que o documento nunca lhe foi mostrado.

O ex-presidente do CDS sublinha, sem arriscar qualquer comentário, o facto de não figurar na obra supostamente minuciosa de Franco Nogueira, «nem referência ao documento nem apontamento de que esta política tenha sido por ele sugerida ou assumida». Mas evoca uma recordação capaz de ajudar a decifrar o mistério: «O dr. Salazar, que raras vezes reunia o Conselho de Ministros, mantinha uma relação bilateral com cada um dos ministros, a quem fazia muitas vezes notar que saber secreto é poder, não partilhando com outros as reflexões feitas a dois». Poderá estar aí a explicação para o secretismo.

 O general Silvino Silvério Marques, na altura governado de Cabo Verde, contactado também pelo Expresso, confessa-se igualmente estupefacto. «Falei muitas vezes com ele e custa-me muito a acreditar que tenha feito uma proposta dessas. A ser verdade, é uma viragem completa na sua actuação política.»

De Angola - onde o MPLA, a FNLA e a UNITA contam com a cumplicidade dos países vizinhos (Congo-Brazzavile, Zaire e Zâmbia, onde possuíam bases) e o apoio mais ou menos discreto da URSS e da China (a que se juntam mais tarde os EUA, confiantes em Holden Roberto) -, o rastilho independentista estende-se à Guine. É a fase em que Kennedy manda oferecer a Salazar apoio ao desenvolvimento económico e social das colónias, a troco de abertura à negociação. Paralelamente, Amílcar Cabral, o fundador do PAIGC e seu primeiro presidente, (que em Dezembro de 1960 participara com outros líderes nacionalistas numa conferência de Imprensa em Londres contra o colonialismo português), escreve em Outubro de 1961 uma «Carta Aberta» a Salazar. O ditador despreza uma iniciativa e outra. E /CW>Chega depois a vez de Moçambique, onde os combates começam a 25 de Setembro de 1964. Kennedy tinha sido assassinado há quase um ano, a 22 de Novembro de 1963, e na Casa Branca estava agora Lyndon B. Johnson. Mas «Lisboa estava informada da ajuda secreta americana à Frelimo de Eduardo Mondlane e à FNLA de Holden Roberto, além de conhecer o apoio dispensado pela CIA aos missionários que em Angola desenvolviam actividade hostil à política portuguesa. Salazar pensaria ainda que uma reforma profunda da vida do país podia levar à queda do regime político que construíra», recorda o embaixador Hall Themudo. O ditador avalia como imprevisíveis, nos planos nacional e externo, as consequências de uma cedência. E resiste uma vez mais.

Com as três frentes de guerra em crescendo, o ano de 1965 surge também particularmente difícil para o regime. Num momento em que Ian Smith declara a independência unilateral da Rodésia, a PIDE assassina perto de Badajoz o general Humberto Delgado, e «Luanda», de Luandino Vieira (então a cumprir no Tarrafal uma pena de 14 anos de prisão por «actividades subversivas contra a segurança do Estado»), ganha o Grande Prémio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores.

O regime abre uma grande brecha, mas não entra ainda em agonia. A guerra, em vez de isolar o ditador dá-lhe novo alento, com a exploração manipulada da teoria da vitimização. O grande problema decorria da posição hostil dos Estados Unidos, que perturbava a política externa portuguesa, toda ela centrada no problema colonial. Numa entrevista concedida em Abril de 1966 ao «Chicago Tribune», Salazar manda um recado directo ao Presidente Johnson: «As dificuldades com o Governo (americano) vêm apenas deste, ante o facto de a Nação portuguesa ser constituída por parcelas dispersas em vários continentes, julgar ser-lhe lícito aplicar-nos o estatuto de aliados numa parte do território e o de inimigos noutra.»

Enquanto se mantém no poder, Salazar não dá o mínimo sinal de cedência em relação à questão colonial, que irá deixar como herança fatal ao seu sucessor, Marcello Caetano. Nem Franco Nogueira, que só abandona a pasta após a morte política do ditador, em 1968, fará qualquer referência à «solução» recusada. Falecido em Março de 1993, com 75 anos, o diplomata manteve-se fiel até ao fim ao pacto de silêncio.

* Investigação de Luísa Amaral

Publicado no Expresso, em 31.08.2002

 

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