A Circuncisão Feminina

É comum se ler em jornais e revistas que a circuncisão feminina é parte da prática islâmica. Em raras ocasiões entretanto, os que difundem tais fatos se dão ao trabalho de uma pesquisa mais profunda. O fato de, infelizmente, existirem muçulmanos que adotam esta prática, não a legitima dentro do ponto-de-vista religioso. Aliás é um erro comum atribuir todo e qualquer comportamento de comunidades de maioria muçulmana ao Islam, e a prática da circuncisão feminina não foge à regra.

A permanência desta prática tem muitas implicações, entretanto será feita uma tentativa de abordar o tema com o máximo de objetividade. A discussão deste tema tem na realidade dois objetivos básicos: o principal é tentar esclarecer não-muçulmanos e muçulmanos sobre as verdadeiras origens deste costume; o secundário é demonstrar que no Islam não existe lugar para tabus. Existem inúmeros "hadiths" do profeta Muhamad (SAWS) abordando temas íntimos e um "hadith" autêntico que diz:

"Não existe vergonha na religião".

Todo e qualquer assunto pode e deve ser discutido desde que seja para adquirir conhecimento e aperfeiçoar a prática religiosa, não importando o quanto o tema em questão possa ser considerado "delicado". O importante é que não se "resvale" para a vulgaridade. Esta é a única exigência real do Islam. A omissão de algumas comunidades muçulmanas em abordar francamente o tema só contribui para a sua perpetuação.

Os dados utilizados aqui foram recolhidos de pesquisas realizadas principalmente em dois países: Egito e Sudão. No Egito se adota na maioria dos casos a forma mais branda de circuncisão feminina e em alguns casos a forma intermediária. No Sudão é praticada a forma mais severa e que causa maiores danos à mulher: a infibulação.

Mas deve-se destacar que nem todas as mulheres destes países são circuncisadas. Famílias com bom nível cultural e conhecimento religioso não adotam esta prática, mas infelizmente, a maioria da população apresenta um baixo nível sócio-econômico, contribuindo para a alta incidência da circuncisão feminina.

Apesar do enfoque nestes dois países, esta prática se alastra por quase todos os países da África e alguns países do Oriente Médio e Ásia. As observações em relação a estes dois países servem para dar pelo menos uma idéia das motivações para a permanência deste costume em outros locais. Deve-se também ressaltar que alguns países, como o Egito por exemplo, são incluídos tanto em estudos enfocando a África quanto nos que enfocam o Oriente Médio, podendo provocar um "falso resultado" nas estatísticas.

Definição de Circuncisão Feminina:

Circuncisão feminina é um termo "popular" para um procedimento que seria melhor denominado como excisão ou mutilação genital feminina. Existem três tipos:

1 - Cliteridectomia: remoção da pele sobre o clitóris ou sobre a extremidade do clitóris.. É denominada "sunnah" nos países onde é praticada e é a forma mais suave de circuncisão.

2 - Excisão: remoção do clitóris por inteiro e do lábio menor, mas sem fechamento da vulva.

3 - Infibulação: remoção do clitóris, do lábio menor e de partes do lábio maior, costurando as laterais e deixando apenas uma pequena abertura para a passagem de urina e fluxo menstrual.

Origens da Circuncisão Feminina:

As origens deste costume não são firmemente estabelecidas mas não existe dúvida de que se trata de uma prática milenar. Seu nome popular no Sudão dá uma idéia de sua antiguidade: circuncisão faraônica. Outros afirmam que se originou na Eritréia pré-monoteísta se espalhando posteriormente pela Somália, Sudão, Egito e demais países da África.

De certo entretanto é que é mais antigo que o surgimento do Judaísmo, Cristianismo e Islam e é provavelmente tão velho quanto as pirâmides do Egito. Atinge indiscriminadamente a população feminina dos países onde se encontra, independente de religião: tanto cristãs, quanto animistas e muçulmanas são

vítimas desta prática.

O fato de atualmente a maioria da população em alguns destes países ser muçulmana, é o argumento mais usado para justificar que esta é uma prática islâmica. Entretanto, antes do Islam o Judaísmo e o Cristianismo penetraram na região e o costume não foi abolido. Se as religiões que vieram antes tivessem sido bem-sucedidas na eliminação desta prática, ela já não existiria mais quando o Islam chegou na África e consequentemente, os muçulmanos não a teriam incorporado.

Na realidade a influência de crenças ancestrais africanas na prática religiosa dos habitantes destas regiões é um dos motivos para a permanência da circuncisão feminina, apesar da maior parte destes habitantes ter se convertido às religiões monoteístas. Além disso, existem indícios de que algumas tribos da península arábica praticavam a circuncisão feminina no tempo do profeta (SAWS), sem entretanto existirem registros de como esta prática teria chegado até eles.

Muitas das práticas "islâmicas" no Egito por exemplo, estão fortemente influenciadas por cultos ancestrais. Estes muçulmanos quando em contato com outros povos, passam seus ensinamentos e práticas como parte da religião, por ignorância ou teimosia em manter seus costumes. Atribui-se à imigração de muçulmanos originários de países onde a circuncisão feminina é largamente praticada a chegada deste ritual a outros países do Oriente Médio e alguns países asiáticos de maioria muçulmana, como Indonésia e Malásia.

Razões Para A Persistência da Circuncisã Feminina:

Segundo as pesquisas, a justificativa mais comum para a manutenção desta prática é "tradição". Para muitos homens e mulheres é um símbolo de herança de um grupo étnico específico. A segunda razão mais citada é de que é um requisito religioso, particularmente do Islam. Entretanto, reconhecem os pesquisadores, em nenhum lugar no Alcorão ou na Bíblia (já que os cristãos que vivem nestes países também adotam este costume), se encontra tal exigência e isto tem sido frequentemente reiterado tanto por autoridades cristãs quanto muçulmanas que tem se manifestado contra esta prática.

As outras razões apresentadas para a manutenção deste ritual são:

ajuda a preservar a virgindade da mulher até o casamento;

protege a honra da família e garante a legitimidade dos descendentes;

reduz o desejo sexual da mulher tornando-a uma esposa mais dócil e menos propensa à promiscuidade;

aumenta o prazer do homem durante o ato sexual;

as jovens não serão aceitas como esposas se não forem circuncisadas;

é necessária por motivo de higiene;

é mais estético;

é melhor para a saúde da mulher e garante fertilidade.

Apesar de todas as evidências em contrário, estas crenças estão firmemente enraizadas na população e os pais que circuncisam suas filhas estão convencidos de que estão fazendo o melhor para elas.

Outros fatores entretanto contribuem para a manutenção desta prática, um deles é o fator econômico: as parteiras e enfermeiras, que são em geral as encarregadas de executar o procedimento, possuem um "status" social e econômico muito baixo. Seus salários oficiais não são suficientes para satisfazer suas necessidades básicas e a circuncisão se torna uma fonte importante de ganhos extras e elas, ao mesmo tempo, se valem de sua técnica e conhecimento para desfrutar de um certo poder social.

Os médicos, em geral requisitados pelas pessoas de maior poder econômico, também contribuem para a manutenção deste costume por razões financeiras, e muitas vezes se pronunciam a favor da prática dando "justificativas médicas" que nada mais são do que um meio de garantir um "dinheirinho extra".

Existe também um fator sócio-econômico: pesquisa realizada entre mulheres egípcias que sofreram este tipo de mutilação indica que embora as mulheres em questão possuíssem em geral curso superior, suas famílias eram de padrão sócio-econômico baixo. Seus pais, que efetivamente são os que tomam a decisão de recorrer à circuncisão, eram analfabetos, semi-analfabetos ou na melhor das hipóteses, com um baixo nível de escolaridade. Além disso a incidência desta prática é maior em famílias das áreas rurais. Existe também um aspecto geográfico: as comunidades localizadas mais ao sul do Egito (onde existe um maior contato com outros países africanos) tendem a apresentar uma incidência maior de jovens circuncisadas.

Justificativas Religiosas Para a Manutenção da Circuncisão Feminina:

Embora animistas e cristãos também pratiquem a circuncisão feminina, será abordada aqui apenas a perspectiva dos líderes religiosos muçulmanos. Neste caso , "hadiths" de autenticidade duvidosa são apresentados para justificar a permanência desta prática.

Os "hadiths" citados para justificar a circuncisão feminina como prática religiosa são os seguintes:

"A circuncisão é "sunnah" (tradição) para os homens e "makrumah" (honra ou caridade) para as mulheres".

Existem entretanto dúvidas com relação a autenticidade deste "hadith", ou seja, ele pode simplesmente ter sido fabricado. Além disso, ele não especifica uma obrigatoriedade, como pode ser claramente entendido de seu texto.

O outro "hadith" citado e compilado por Abu Dawud e Al-Bayhaq, se refere à uma suposta recomendação do profeta (SAWS) à uma mulher que costumava realizar a circuncisão em outras mulheres de Medina, onde o profeta (SAWS) teria dito:

"Não abuse (não retire muito); é melhor para a mulher e mais satisfatório para o marido."

Este "hadith" se refere à prática de um costume social da época do profeta (SAWS) e parece óbvio que visa mais limitar a extensão desta prática do que legitimá-la. Apesar disto, alguns teólogos destacaram que segundo a orientação existente neste "hadith", a mulher circuncisada ficaria mais sensível durante o ato sexual. Concluem também que seria retirado apenas o prepúcio, ou seja, a pele que cobre o clitóris e não o clitóris em si, deixando-o mais exposto e supostamente aumentando a obtenção de prazer. Este procedimento então seria teoricamente benéfico para a mulher e o marido. Destacam também a recomendação para a não-excisão total, que resultaria em problemas sexuais. Entretanto, não existe nenhuma explicação detalhada neste "hadith" sobre o que realmente deveria ser retirado, ficando difícil entender como os religiosos teriam chegado a tal conclusão.

Considerando que este "hadith" supostamente contivesse um ensinamento e mandamento religioso, seria impossível para o muçulmano observante de sua religião entendê-lo e aplicá-lo. Tal fato contrasta claramente com os "hadiths" autênticos do Profeta (SAWS) relacionados às normas de higiene e assuntos íntimos, que explicam em detalhes os procedimentos a serem seguidos. Por fim, este "hadith" foi relatado por Abu Dawud, que o classificou como "daâf" (fraco).

Existem muitas razões para que um "hadith" seja considerado fraco, as mais comuns são: o narrador é conhecido como mentiroso, desonesto e não-confiável; o narrador é displicente e não dá importância às informações, detalhes ou circunstâncias; o narrador não tem boa memória; existem suspeitas de que o "hadith" seja falso; entre muitas outras. No caso específico deste "hadith", um dos narradores é desconhecido, sendo por esta razão classificado como um "hadith" "Mursal".

Outro aspecto a destacar é que a intenção inicial destes "hadiths", supondo que fôssem fortes e autênticos, seria em primeiro lugar aumentar a satisfação sexual de ambos, marido e mulher, durante o ato sexual. Em segundo lugar, seria restringir a prática à forma mais branda que, pelo menos no aspecto físico e quando observadas normas de higiene, aparentemente não prejudicam a saúde da mulher e não impedem a obtenção do desejo sexual.

É uma regra básica no Islam que um "hadith" cuja autenticidade é contestada não pode ser usado para estabelecer uma obrigatoriedade religiosa. Dependendo da natureza de seus ensinamentos (se estiverem relacionados à prática de boas ações por exemplo) e se existirem outras evidências religiosas claras que confirmem ou suportem o seu conteúdo, podem ser tomados como bons conselhos ou recomendações.

A crença de que a circuncisão feminina poderia trazer algum benefício e aumentar o prazer sexual do casal pode, eventualmente, ter contribuído para a adoção destes "hadiths" fracos, propiciando a tolerância da circuncisão feminina em sua forma branda na comunidade muçulmana por um período, e a consequente recomendação para sua prática em algumas das Escolas de Pensamento Islâmico.

Esta crença é compreensível quando se considera a ausência de informações médicas na época que comprovassem os malefícios da circuncisão feminina. Entretanto na atualidade tais informações estão disponíveis e na prática as intenções têm sido reduzir e até impedir, nos casos mais drásticos, o prazer sexual da mulher, para supostamente garantir sua virgindade até o casamento, salvaguardando assim a honra da família. Além disso, materiais enferrujados e sujos são muitas vezes empregados neste procedimento, resultando em infecções e às vezes morte. Portanto o critério de usar um "hadith" fraco para indicar uma recomendação religiosa devido ao seu bom conteúdo, claramente não se aplica à circuncisão feminina, que já teve seus efeitos prejudiciais reiterados várias vezes.

Na verdade, qualificar esta prática como "sunnah" significa em termos "técnicos", apenas reconhecer que os "hadiths" na qual ela se baseia foram relatados em algum momento da história islâmica por pessoas que não foram totalmente identificadas e compilados por estudiosos que se deram ao trabalho de enfatizar a sua inconsistência. Uma vez que foi constatado que nenhuma das recomendações básicas citadas nos dois "hadiths", fracos e de autenticidade duvidosa, não vêm sendo seguidas, a insistência de alguns líderes religiosos muçulmanos em considerar esta prática como "sunnah", levando em conta apenas o aspecto "técnico" do caso, revela uma total insensibilidade com a questão feminina.

Considerando que tal recomendação é consequência da dedução dos juristas muçulmanos e não de um ensinamento religioso claro contido no Alcorão ou na "sunnah" autêntica do profeta (SAWS), não existem motivos para que esta atitude não seja revisada. É justamente a aceitação desta idéia que abre a porta para práticas mais drásticas e prejudiciais à saúde da mulher.

É preciso destacar entretanto que as divergências entre os teólogos muçulmanos quanto à recomendação ou não da circuncisão feminina, se restringem à sua forma mais branda. Qualquer procedimento que inclua a retirada, ainda que parcial, do clitóris em si é considerada uma violação dos ensinamentos islâmicos. Apesar disso, poucos são os teólogos que claramente se manifestam contra estas práticas. Suas opiniões contrárias só são conhecidas quando diretamente questionados sobre elas e devidamente pressionados para que dêem uma resposta. Se tal circunstância não ocorre, simplesmente adotam a confortável atitude da omissão.

Portanto, aparentemente os líderes religiosos muçulmanos que empregam estes "hadiths" fracos e inconsistentes para justificar a manutenção da circuncisão feminina, incorrem nos seguintes casos: se apegam cegamente às questões "técnicas" sem levar em consideração os prejuízos que causam a tantas mulheres e ignorando o espírito do Islam; simplesmente não têm coragem de lutar contra esta prática tão arraigada e terminam por "legitimá-la"; são eles próprios influenciados por questões culturais. Processo semelhante deve se passar nas comunidades cristã e animista, que também não eliminaram totalmente esta prática.

Consequências da Circuncisão Feminina Para a Saúde da Mulher:

Na realidade os efeitos da circuncisão são bem diferentes dos intencionados, mas muitos dos problemas de saúde resultantes, a menos que ocorram imediatamente após a circuncisão, raramente são conectados à ela. Os problemas físicos estão em geral relacionados à forma como a circuncisão é praticada: sem anestesia ou higiene.

Os efeitos imediatos, principalmente na forma mais severa, a infibulação, incluem: dor, choque, hemorragia, retenção de urina, infecções e febre, tétano. A morte não está excluída, principalmente se a menina ou jovem vive longe de atendimento médico. Ao longo dos anos a mulher pode experimentar infecções pélvicas, algumas vezes forte o suficiente para bloquear as trompas de Falópio e causar infertilidade.

As consequências mais óbvias são é claro no aspecto físico, mas os componentes psicológicos parecem ser os mais devastadores e ao mesmo tempo, os mais difíceis de avaliar. Alguns pais acreditam que recorrendo aos serviços de um médico, que aplica anestesia e trabalha observando normas de higiene, estão protegendo suas filhas das consequências prejudiciais da circuncisão feminina. De fato, a forma mais branda de circuncisão feminina quando executada obedecendo regras de higiene e sob anestesia, não oferece riscos à saúde da mulher e não impede a obtenção de prazer sexual, pelo menos se for considerado apenas o aspecto físico. Entretanto, uma vez que a intenção maior deste ritual é gerar um código de "modéstia forçada" no comportamento feminino, os prejuízos no aspecto psicológico persistem e podem gerar na mulher uma frustração sexual severa, medo do desejo sexual e um senso humilhante de vergonha e culpa por sua existência.

A crença de que a retirada parcial ou total do clitóris reduz o desejo sexual da mulher é baseada em ignorância. O desejo sexual tem origem psicológica e hormonal e a existência ou não do clitóris não desempenha papel relevante, mas sua ausência pode dificultar muito a obtenção de satisfação sexual.

Embora os pesquisadores reconheçam que as consequências sociais e psicológicas desta prática ainda não foram totalmente avaliadas, evidências preliminares indicam que as consequências psicológicas da circuncisão feminina são semelhantes às do estupro.

A Circuncisão Masculina

É oportuno fazer um comentário em relação à circuncisão masculina. Ao contrário da circuncisão feminina, não existem dúvidas com relação a obrigatoriedade da circuncisão para os meninos muçulmanos. Embora a circuncisão masculina não esteja claramente prescrita no Alcorão, existe uma surata ordenando aos muçulmanos seguir os passos do profeta Abraão:

"E revelamos-te que adotes o credo de Abraão, o monoteísta, que jamais se contou entre os idólatras."(Alcorão surata 16:123)

Todos os "hadiths" relacionados a este dever religioso são autênticos, e em um deles o profeta Muhamad (SAWS) menciona que os muçulmanos devem seguir a tradição do profeta Abraão. É sabido que o profeta Abraão só circuncisou os homens de sua casa.

Também ao contrário da circuncisão feminina, a masculina não apresenta nenhum dano à saúde do homem e algumas evidências médicas indicam inclusive que o índice de câncer penial entre homens circuncisados, e cervical em mulheres casadas com homens circuncisados, é muito baixo.

Mesmo aqueles que tentam se opor à prática da circuncisão masculina não apresentam nenhuma evidência de seu malefício, alegando vagamente que seria uma violação à integridade física da criança. Alegam também, que a redução da incidência de câncer penial e cervical pode ser obtida se os homens observarem regras básicas de higiene, sem necessidade de recorrer à circuncisão. Esquecem porém, que a observância de regras de higiene requer dois requsisitos básicos: o primeiro, que a pessoa em questão possua educação suficiente para entender esta necessidade e identificar quais são as recomendações mínimas de higiene; o segundo, que a pessoa possua infra-estrutura disponível para a observância destas normas de higiene. Tais requisitos, infelizmente, ainda não estão disponíveis para a maioria da população de várias partes do mundo. No caso dos muçulmanos, associada à circuncisão, existem regras de higiene íntima que estão diretamente associadas à prática religiosa e que complementam os requisitos que colaboram para reduzir a incidência destes dois tipos de câncer.

Outras alegações, como a de que seria arriscada para a criança com poucos dias de vida ou que causaria dor, são mais indicadas no processo de circuncisão judaico, onde o menino tem que, necessariamente, ser circuncisado no oitavo dia de vida ( a menos que exista uma clara restrição médica) e sem anestesia, já que a circuncisão para ser válida na religião judaica não pode ser realizada por um médico e sim pelo "mohel", que reúne ao mesmo tempo habilidades cirúrgicas e religiosas.

No Islam, embora a circuncisão possa ser feita a partir do sétimo dia de vida, esta obrigatoriedade não existe, só havendo um limite para que a circuncisão seja realizada no máximo até os 12 anos de idade, e não existem restrições ao uso de anestesia. Ao lado dos judeus e muçulmanos, os cristãos coptas também adotam a circuncisão masculina como prática religiosa.

Além de tudo isso, a circuncisão masculina, mais uma vez ao contrário da feminina, não é feita com o objetivo de reduzir ou eliminar o desejo sexual do homem.

Considerações Finais:

Instituições religiosas, costumes ancestrais e fatores sociais e econômicos são os maiores responsáveis pela mutilação genital de meninas e jovens. Esta prática só será erradicada quando o nível de educação de todos os envolvidos for elevado, possibilitando mudar a forma como a mulher é vista nestas sociedades. No caso específico dos muçulmanos deve-se acrescentar ainda o incremento da educação religiosa, para que se retorne à concepção islâmica original da condição da mulher, um indivíduo com plenos direitos à sua sexualidade.

As instituições que estão lutando para eliminar esta prática decidiram inclusive redirecionar seus "alvos", que eram inicialmente as mulheres, já que é em geral a mãe, tia, avó, ou outra mulher da família quem toma a iniciativa de providenciar os preparativos para o procedimento. Mas a constatação de que a persistência da prática está extremamente relacionada à recusa do homem em se casar com uma mulher não-circuncisada, fez dos homens os novos "alvos" das campanhas de educação.

A eliminação de um costume tão firmemente arraigado é extremamente difícil e o uso da força só servirá para levá-lo para a clandestinidade ao invés de eliminá-lo, e ainda aumentará a resistência às mudanças culturais, mesmo que estas sejam benéficas.

Os homens precisam entender que as relações sexuais e a felicidade no casamento se tornarão significativamente melhores quando a genitália feminina não for mutilada. Além disso a educação das mulheres deve ser acelerada se se pretende que estes objetivos sejam alcançados.

Quanto a idéia generalizada de que a circuncisão feminina é um mandamento religioso, é suficiente argumentar com não-muçulmanos e muçulmanos, que nos países onde é praticada ela é feita tanto por cristãos e animistas quanto por muçulmanos. É encontrada em larga escala em países cuja maioria da população é cristã, como no caso da Etiópia, ou nos países da região sub-saariana da África, cuja população é majoritariamente cristã e animista.

Em contra-partida, muitas mulheres muçulmanas que vivem em países que não foram atingidos por este ritual, não são circuncisadas. Este é o caso das iranianas, argelinas, tunisianas, sírias, sauditas e muitas outras, sem falar nas convertidas. Seriam os habitantes destes outros países muçulmanos menos religiosos? O Irã e a Arábia Saudita são conhecidos por sua postura ortodoxa na prática religiosa, e nem por isto a circuncisão feminina é adotada.

É importante que a comunidade muçulmana lute para extirpar de seu meio esta prática primitiva, e principalmente que as mulheres muçulmanas se unam para se opor à ela, mesmo as que não estão em risco de serem submetidas à circuncisão. O argumento de "tradição" não tem lugar nos ensinamentos islâmicos quando se trata de algo que é prejudicial em todos os seus aspectos. O Alcorão trata deste assunto de forma clara:

"Quando lhes é dito: Segui o que Allah tem revelado! dizem: Qual! Só seguimos as pegadas dos nossos pais! Segui-las-iam ainda que seus pais nada compreendessem nem se guiassem?"(Alcorão surata 2:170)

Para concluir vou citar o "sheikh" Mahmoud Shaltout, antigo "sheikh" de Azhar, a mais famosa universidade do chamado Mundo Islâmico, que disse:

"A legislação islâmica fornece um princípio básico, notadamente o de que certos assuntos devem ser cuidadosamente examinados e se provados prejudiciais ou imorais, devem ser legitimamente interrompidos, para colocar um fim a este dano ou imoralidade. Portanto, uma vez que o dano da excisão foi estabelecido, a excisão do clitóris não é mandatória e nem uma suposta "sunnah"".

Artigo de Maria Moreira, responsável pelo site Islamic Chat.

Bibliografia:

Livros:"Women and the Family in the Middle East" - EUA: University of Texas Press, 1985. Editado por Elizabeth Warnock Fernea.

"Women And Health" - Londres: Zed Books Ltd., 1991. Editado por Patricia Smyke.

"Muslim Women's Choices - Religious Belief and Social Reality" - Londres: Berg Publishers Ltd., 1994. Editado por Camillia Fawzy El-Solh e Judy Mabro.

"Forty Hadith" de An-Nawawis - Síria, The Holy Koran Publishing House, 1976.

Artigos On-Line: "Sudanese Women's Struggle to Eliminate Harmful Traditional Practices" - de Amna Hassan, Secretária Executiva do Comitê Nacional Sudanês sobre Práticas Tradicionais Prejudiciais. "Epidemiology of Female Sexual Castration in Cairo, Egypt" - Dr. Mohamed Badawi, graduado em Medicina pela Universidade de Medicina do Cairo (1973), em Saúde Pública pela Universidade de Michigan (1981), em Medicina Islâmica pela Universidade de Al-Azhar (1985) e atualmente completando seu doutorado em Saúde Pública pela Universidade John Hopkins .

"Circumcision" de M. Afifi al-Akiti no site do Belfast Islamic Centre - Centro Islâmico da Irlanda do Norte.

Artigo sobre circuncisão no Judaísmo de Tracey Rich na Enciclopédia judaica on-line "Judaism 101".

Existem links para todos estes sites na seção de links do Islamic Chat. http://www.geocities.com/islamicchat/links.html

Periódicos:

"Caros Amigos" - Rio de Janeiro: Ed.
Casa Amarela, 1997.

"Egypt Today" - Egito: International Business Associates Group, 1998.


Referências com relação à autenticidade duvidosa dos "hadiths" citados: "Hadith" dizendo que "a circuncisão é "sunnah" para os homens e "makrumah" para as mulheres".. Veja em "Silsilah al-Ahadith ifah" de al-Albani, no. 1935 o comentário em relação à autenticidade deste "hadith".

"Hadith" limitando o quanto deve ser retirado na circuncisão. Relatado por Abu Dawud no livro "Kitab al-Adab", onde Abu Dawud o classificou como "daâf" (fraco). O mesmo comentário aparece no texto "Circumcision" de M. Afifi al-Akiti citado acima.