A Circuncisão Feminina
É comum se ler em jornais e revistas que a circuncisão feminina é parte da
prática islâmica. Em raras ocasiões entretanto, os que difundem tais fatos se
dão ao trabalho de uma pesquisa mais profunda. O fato de, infelizmente, existirem
muçulmanos que adotam esta prática, não a legitima dentro do ponto-de-vista
religioso. Aliás é um erro comum atribuir todo e qualquer comportamento de
comunidades de maioria muçulmana ao Islam, e a prática da circuncisão feminina
não foge à regra.
A permanência desta prática tem muitas implicações, entretanto será feita uma
tentativa de abordar o tema com o máximo de objetividade. A discussão deste
tema tem na realidade dois objetivos básicos: o principal é tentar esclarecer
não-muçulmanos e muçulmanos sobre as verdadeiras origens deste costume; o
secundário é demonstrar que no Islam não existe lugar para tabus. Existem
inúmeros "hadiths" do profeta Muhamad (SAWS) abordando temas íntimos
e um "hadith" autêntico que diz:
"Não existe vergonha na religião".
Todo e qualquer assunto pode e deve ser discutido desde que seja para adquirir
conhecimento e aperfeiçoar a prática religiosa, não importando o quanto o tema
em questão possa ser considerado "delicado". O importante é que não
se "resvale" para a vulgaridade. Esta é a única exigência real do
Islam. A omissão de algumas comunidades muçulmanas em abordar francamente o
tema só contribui para a sua perpetuação.
Os dados utilizados aqui foram recolhidos de pesquisas realizadas
principalmente em dois países: Egito e Sudão. No Egito se adota na maioria dos
casos a forma mais branda de circuncisão feminina e em alguns casos a forma
intermediária. No Sudão é praticada a forma mais severa e que causa maiores danos
à mulher: a infibulação.
Mas deve-se destacar que nem todas as mulheres destes países são circuncisadas.
Famílias com bom nível cultural e conhecimento religioso não adotam esta
prática, mas infelizmente, a maioria da população apresenta um baixo nível
sócio-econômico, contribuindo para a alta incidência da circuncisão feminina.
Apesar do enfoque nestes dois países, esta prática se alastra por quase todos
os países da África e alguns países do Oriente Médio e Ásia. As observações em
relação a estes dois países servem para dar pelo menos uma idéia das motivações
para a permanência deste costume em outros locais. Deve-se também ressaltar que
alguns países, como o Egito por exemplo, são incluídos tanto em estudos
enfocando a África quanto nos que enfocam o Oriente Médio, podendo provocar um "falso
resultado" nas estatísticas.
Definição de Circuncisão Feminina:
Circuncisão feminina é um termo "popular" para um procedimento que
seria melhor denominado como excisão ou mutilação genital feminina. Existem
três tipos:
1 - Cliteridectomia: remoção da pele sobre o clitóris ou sobre a extremidade do
clitóris.. É denominada "sunnah" nos países onde é praticada e é a
forma mais suave de circuncisão.
2 - Excisão: remoção do clitóris por inteiro e do lábio menor, mas sem
fechamento da vulva.
3 - Infibulação: remoção do clitóris, do lábio menor e de partes do lábio
maior, costurando as laterais e deixando apenas uma pequena abertura para a
passagem de urina e fluxo menstrual.
Origens da Circuncisão Feminina:
As origens deste costume não são firmemente estabelecidas mas não existe dúvida
de que se trata de uma prática milenar. Seu nome popular no Sudão dá uma idéia
de sua antiguidade: circuncisão faraônica. Outros afirmam que se originou na
Eritréia pré-monoteísta se espalhando posteriormente pela Somália, Sudão, Egito
e demais países da África.
De certo entretanto é que é mais antigo que o surgimento do Judaísmo,
Cristianismo e Islam e é provavelmente tão velho quanto as pirâmides do Egito.
Atinge indiscriminadamente a população feminina dos países onde se encontra,
independente de religião: tanto cristãs, quanto animistas e muçulmanas são
vítimas desta prática.
O fato de atualmente a maioria da população em alguns destes países ser
muçulmana, é o argumento mais usado para justificar que esta é uma prática
islâmica. Entretanto, antes do Islam o Judaísmo e o Cristianismo penetraram na
região e o costume não foi abolido. Se as religiões que vieram antes tivessem
sido bem-sucedidas na eliminação desta prática, ela já não existiria mais quando
o Islam chegou na África e consequentemente, os muçulmanos não a teriam
incorporado.
Na realidade a influência de crenças ancestrais africanas na prática religiosa
dos habitantes destas regiões é um dos motivos para a permanência da
circuncisão feminina, apesar da maior parte destes habitantes ter se convertido
às religiões monoteístas. Além disso, existem indícios de que algumas tribos da
península arábica praticavam a circuncisão feminina no tempo do profeta (SAWS),
sem entretanto existirem registros de como esta prática teria chegado até eles.
Muitas das práticas "islâmicas" no Egito por exemplo, estão
fortemente influenciadas por cultos ancestrais. Estes muçulmanos quando em
contato com outros povos, passam seus ensinamentos e práticas como parte da
religião, por ignorância ou teimosia em manter seus costumes. Atribui-se à
imigração de muçulmanos originários de países onde a circuncisão feminina é
largamente praticada a chegada deste ritual a outros países do Oriente Médio e
alguns países asiáticos de maioria muçulmana, como Indonésia e Malásia.
Razões Para A Persistência da Circuncisã Feminina:
Segundo as pesquisas, a justificativa mais comum para a manutenção desta
prática é "tradição". Para muitos homens e mulheres é um símbolo de
herança de um grupo étnico específico. A segunda razão mais citada é de que é
um requisito religioso, particularmente do Islam. Entretanto, reconhecem os
pesquisadores, em nenhum lugar no Alcorão ou na Bíblia (já que os cristãos que
vivem nestes países também adotam este costume), se encontra tal exigência e
isto tem sido frequentemente reiterado tanto por autoridades cristãs quanto
muçulmanas que tem se manifestado contra esta prática.
As outras razões apresentadas para a manutenção deste ritual são:
ajuda a preservar a virgindade da mulher até o casamento;
protege a honra da família e garante a legitimidade dos descendentes;
reduz o desejo sexual da mulher tornando-a uma esposa mais dócil e menos
propensa à promiscuidade;
aumenta o prazer do homem durante o ato sexual;
as jovens não serão aceitas como esposas se não forem circuncisadas;
é necessária por motivo de higiene;
é mais estético;
é melhor para a saúde da mulher e garante fertilidade.
Apesar de todas as evidências em contrário, estas crenças estão firmemente
enraizadas na população e os pais que circuncisam suas filhas estão convencidos
de que estão fazendo o melhor para elas.
Outros fatores entretanto contribuem para a manutenção desta prática, um deles
é o fator econômico: as parteiras e enfermeiras, que são em geral as
encarregadas de executar o procedimento, possuem um "status" social e
econômico muito baixo. Seus salários oficiais não são suficientes para
satisfazer suas necessidades básicas e a circuncisão se torna uma fonte
importante de ganhos extras e elas, ao mesmo tempo, se valem de sua técnica e
conhecimento para desfrutar de um certo poder social.
Os médicos, em geral requisitados pelas pessoas de maior poder econômico,
também contribuem para a manutenção deste costume por razões financeiras, e
muitas vezes se pronunciam a favor da prática dando "justificativas
médicas" que nada mais são do que um meio de garantir um "dinheirinho
extra".
Existe também um fator sócio-econômico: pesquisa realizada entre mulheres
egípcias que sofreram este tipo de mutilação indica que embora as mulheres em
questão possuíssem em geral curso superior, suas famílias eram de padrão
sócio-econômico baixo. Seus pais, que efetivamente são os que tomam a decisão
de recorrer à circuncisão, eram analfabetos, semi-analfabetos ou na melhor das
hipóteses, com um baixo nível de escolaridade. Além disso a incidência desta
prática é maior em famílias das áreas rurais. Existe também um aspecto
geográfico: as comunidades localizadas mais ao sul do Egito (onde existe um
maior contato com outros países africanos) tendem a apresentar uma incidência
maior de jovens circuncisadas.
Justificativas Religiosas Para a Manutenção da Circuncisão Feminina:
Embora animistas e cristãos também pratiquem a circuncisão feminina, será
abordada aqui apenas a perspectiva dos líderes religiosos muçulmanos. Neste
caso , "hadiths" de autenticidade duvidosa são apresentados para
justificar a permanência desta prática.
Os "hadiths" citados para justificar a circuncisão feminina como
prática religiosa são os seguintes:
"A circuncisão é "sunnah" (tradição) para os homens e
"makrumah" (honra ou caridade) para as mulheres".
Existem entretanto dúvidas com relação a autenticidade deste
"hadith", ou seja, ele pode simplesmente ter sido fabricado. Além
disso, ele não especifica uma obrigatoriedade, como pode ser claramente
entendido de seu texto.
O outro "hadith" citado e compilado por Abu Dawud e Al-Bayhaq, se
refere à uma suposta recomendação do profeta (SAWS) à uma mulher que costumava
realizar a circuncisão em outras mulheres de Medina, onde o profeta (SAWS)
teria dito:
"Não abuse (não retire muito); é melhor para a mulher e mais satisfatório
para o marido."
Este "hadith" se refere à prática de um costume social da época do
profeta (SAWS) e parece óbvio que visa mais limitar a extensão desta prática do
que legitimá-la. Apesar disto, alguns teólogos destacaram que segundo a
orientação existente neste "hadith", a mulher circuncisada ficaria
mais sensível durante o ato sexual. Concluem também que seria retirado apenas o
prepúcio, ou seja, a pele que cobre o clitóris e não o clitóris em si,
deixando-o mais exposto e supostamente aumentando a obtenção de prazer. Este
procedimento então seria teoricamente benéfico para a mulher e o marido.
Destacam também a recomendação para a não-excisão total, que resultaria em
problemas sexuais. Entretanto, não existe nenhuma explicação detalhada neste
"hadith" sobre o que realmente deveria ser retirado, ficando difícil entender
como os religiosos teriam chegado a tal conclusão.
Considerando que este "hadith" supostamente contivesse um ensinamento
e mandamento religioso, seria impossível para o muçulmano observante de sua
religião entendê-lo e aplicá-lo. Tal fato contrasta claramente com os
"hadiths" autênticos do Profeta (SAWS) relacionados às normas de
higiene e assuntos íntimos, que explicam em detalhes os procedimentos a serem
seguidos. Por fim, este "hadith" foi relatado por Abu Dawud, que o classificou
como "daâf" (fraco).
Existem muitas razões para que um "hadith" seja considerado fraco, as
mais comuns são: o narrador é conhecido como mentiroso, desonesto e
não-confiável; o narrador é displicente e não dá importância às informações,
detalhes ou circunstâncias; o narrador não tem boa memória; existem suspeitas
de que o "hadith" seja falso; entre muitas outras. No caso específico
deste "hadith", um dos narradores é desconhecido, sendo por esta
razão classificado como um "hadith" "Mursal".
Outro aspecto a destacar é que a intenção inicial destes "hadiths",
supondo que fôssem fortes e autênticos, seria em primeiro lugar aumentar a
satisfação sexual de ambos, marido e mulher, durante o ato sexual. Em segundo
lugar, seria restringir a prática à forma mais branda que, pelo menos no
aspecto físico e quando observadas normas de higiene, aparentemente não
prejudicam a saúde da mulher e não impedem a obtenção do desejo sexual.
É uma regra básica no Islam que um "hadith" cuja autenticidade é
contestada não pode ser usado para estabelecer uma obrigatoriedade religiosa.
Dependendo da natureza de seus ensinamentos (se estiverem relacionados à
prática de boas ações por exemplo) e se existirem outras evidências religiosas
claras que confirmem ou suportem o seu conteúdo, podem ser tomados como bons
conselhos ou recomendações.
A crença de que a circuncisão feminina poderia trazer algum benefício e
aumentar o prazer sexual do casal pode, eventualmente, ter contribuído para a
adoção destes "hadiths" fracos, propiciando a tolerância da
circuncisão feminina em sua forma branda na comunidade muçulmana por um
período, e a consequente recomendação para sua prática em algumas das Escolas
de Pensamento Islâmico.
Esta crença é compreensível quando se considera a ausência de informações
médicas na época que comprovassem os malefícios da circuncisão feminina.
Entretanto na atualidade tais informações estão disponíveis e na prática as
intenções têm sido reduzir e até impedir, nos casos mais drásticos, o prazer
sexual da mulher, para supostamente garantir sua virgindade até o casamento,
salvaguardando assim a honra da família. Além disso, materiais enferrujados e
sujos são muitas vezes empregados neste procedimento, resultando em infecções e
às vezes morte. Portanto o critério de usar um "hadith" fraco para
indicar uma recomendação religiosa devido ao seu bom conteúdo, claramente não
se aplica à circuncisão feminina, que já teve seus efeitos prejudiciais
reiterados várias vezes.
Na verdade, qualificar esta prática como "sunnah" significa em termos
"técnicos", apenas reconhecer que os "hadiths" na qual ela
se baseia foram relatados em algum momento da história islâmica por pessoas que
não foram totalmente identificadas e compilados por estudiosos que se deram ao
trabalho de enfatizar a sua inconsistência. Uma vez que foi constatado que
nenhuma das recomendações básicas citadas nos dois "hadiths", fracos
e de autenticidade duvidosa, não vêm sendo seguidas, a insistência de alguns
líderes religiosos muçulmanos em considerar esta prática como
"sunnah", levando em conta apenas o aspecto "técnico" do
caso, revela uma total insensibilidade com a questão feminina.
Considerando que tal recomendação é consequência da dedução dos juristas
muçulmanos e não de um ensinamento religioso claro contido no Alcorão ou na
"sunnah" autêntica do profeta (SAWS), não existem motivos para que
esta atitude não seja revisada. É justamente a aceitação desta idéia que abre a
porta para práticas mais drásticas e prejudiciais à saúde da mulher.
É preciso destacar entretanto que as divergências entre os teólogos muçulmanos
quanto à recomendação ou não da circuncisão feminina, se restringem à sua forma
mais branda. Qualquer procedimento que inclua a retirada, ainda que parcial, do
clitóris em si é considerada uma violação dos ensinamentos islâmicos. Apesar
disso, poucos são os teólogos que claramente se manifestam contra estas
práticas. Suas opiniões contrárias só são conhecidas quando diretamente
questionados sobre elas e devidamente pressionados para que dêem uma resposta.
Se tal circunstância não ocorre, simplesmente adotam a confortável atitude da
omissão.
Portanto, aparentemente os líderes religiosos muçulmanos que empregam estes
"hadiths" fracos e inconsistentes para justificar a manutenção da
circuncisão feminina, incorrem nos seguintes casos: se apegam cegamente às
questões "técnicas" sem levar em consideração os prejuízos que causam
a tantas mulheres e ignorando o espírito do Islam; simplesmente não têm coragem
de lutar contra esta prática tão arraigada e terminam por
"legitimá-la"; são eles próprios influenciados por questões
culturais. Processo semelhante deve se passar nas comunidades cristã e
animista, que também não eliminaram totalmente esta prática.
Consequências da Circuncisão Feminina Para a Saúde da Mulher:
Na realidade os efeitos da circuncisão são bem diferentes dos intencionados,
mas muitos dos problemas de saúde resultantes, a menos que ocorram
imediatamente após a circuncisão, raramente são conectados à ela. Os problemas
físicos estão em geral relacionados à forma como a circuncisão é praticada: sem
anestesia ou higiene.
Os efeitos imediatos, principalmente na forma mais severa, a infibulação,
incluem: dor, choque, hemorragia, retenção de urina, infecções e febre, tétano.
A morte não está excluída, principalmente se a menina ou jovem vive longe de
atendimento médico. Ao longo dos anos a mulher pode experimentar infecções
pélvicas, algumas vezes forte o suficiente para bloquear as trompas de Falópio
e causar infertilidade.
As consequências mais óbvias são é claro no aspecto físico, mas os componentes
psicológicos parecem ser os mais devastadores e ao mesmo tempo, os mais
difíceis de avaliar. Alguns pais acreditam que recorrendo aos serviços de um
médico, que aplica anestesia e trabalha observando normas de higiene, estão
protegendo suas filhas das consequências prejudiciais da circuncisão feminina.
De fato, a forma mais branda de circuncisão feminina quando executada
obedecendo regras de higiene e sob anestesia, não oferece riscos à saúde da
mulher e não impede a obtenção de prazer sexual, pelo menos se for considerado
apenas o aspecto físico. Entretanto, uma vez que a intenção maior deste ritual
é gerar um código de "modéstia forçada" no comportamento feminino, os
prejuízos no aspecto psicológico persistem e podem gerar na mulher uma
frustração sexual severa, medo do desejo sexual e um senso humilhante de
vergonha e culpa por sua existência.
A crença de que a retirada parcial ou total do clitóris reduz o desejo sexual
da mulher é baseada em ignorância. O desejo sexual tem origem psicológica e
hormonal e a existência ou não do clitóris não desempenha papel relevante, mas
sua ausência pode dificultar muito a obtenção de satisfação sexual.
Embora os pesquisadores reconheçam que as consequências sociais e psicológicas
desta prática ainda não foram totalmente avaliadas, evidências preliminares
indicam que as consequências psicológicas da circuncisão feminina são
semelhantes às do estupro.
A Circuncisão Masculina
É oportuno fazer um comentário em relação à circuncisão masculina. Ao contrário
da circuncisão feminina, não existem dúvidas com relação a obrigatoriedade da
circuncisão para os meninos muçulmanos. Embora a circuncisão masculina não
esteja claramente prescrita no Alcorão, existe uma surata ordenando aos
muçulmanos seguir os passos do profeta Abraão:
"E revelamos-te que adotes o credo de Abraão, o monoteísta, que jamais se
contou entre os idólatras."(Alcorão surata 16:123)
Todos os "hadiths" relacionados a este dever religioso são
autênticos, e em um deles o profeta Muhamad (SAWS) menciona que os muçulmanos
devem seguir a tradição do profeta Abraão. É sabido que o profeta Abraão só
circuncisou os homens de sua casa.
Também ao contrário da circuncisão feminina, a masculina não apresenta nenhum
dano à saúde do homem e algumas evidências médicas indicam inclusive que o
índice de câncer penial entre homens circuncisados, e cervical em mulheres
casadas com homens circuncisados, é muito baixo.
Mesmo aqueles que tentam se opor à prática da circuncisão masculina não
apresentam nenhuma evidência de seu malefício, alegando vagamente que seria uma
violação à integridade física da criança. Alegam também, que a redução da
incidência de câncer penial e cervical pode ser obtida se os homens observarem
regras básicas de higiene, sem necessidade de recorrer à circuncisão. Esquecem
porém, que a observância de regras de higiene requer dois requsisitos básicos:
o primeiro, que a pessoa em questão possua educação suficiente para entender
esta necessidade e identificar quais são as recomendações mínimas de higiene; o
segundo, que a pessoa possua infra-estrutura disponível para a observância
destas normas de higiene. Tais requisitos, infelizmente, ainda não estão
disponíveis para a maioria da população de várias partes do mundo. No caso dos
muçulmanos, associada à circuncisão, existem regras de higiene íntima que estão
diretamente associadas à prática religiosa e que complementam os requisitos que
colaboram para reduzir a incidência destes dois tipos de câncer.
Outras alegações, como a de que seria arriscada para a criança com poucos dias
de vida ou que causaria dor, são mais indicadas no processo de circuncisão
judaico, onde o menino tem que, necessariamente, ser circuncisado no oitavo dia
de vida ( a menos que exista uma clara restrição médica) e sem anestesia, já
que a circuncisão para ser válida na religião judaica não pode ser realizada
por um médico e sim pelo "mohel", que reúne ao mesmo tempo
habilidades cirúrgicas e religiosas.
No Islam, embora a circuncisão possa ser feita a partir do sétimo dia de vida,
esta obrigatoriedade não existe, só havendo um limite para que a circuncisão
seja realizada no máximo até os 12 anos de idade, e não existem restrições ao
uso de anestesia. Ao lado dos judeus e muçulmanos, os cristãos coptas também
adotam a circuncisão masculina como prática religiosa.
Além de tudo isso, a circuncisão masculina, mais uma vez ao contrário da
feminina, não é feita com o objetivo de reduzir ou eliminar o desejo sexual do
homem.
Considerações Finais:
Instituições religiosas, costumes ancestrais e fatores sociais e econômicos são
os maiores responsáveis pela mutilação genital de meninas e jovens. Esta
prática só será erradicada quando o nível de educação de todos os envolvidos
for elevado, possibilitando mudar a forma como a mulher é vista nestas
sociedades. No caso específico dos muçulmanos deve-se acrescentar ainda o
incremento da educação religiosa, para que se retorne à concepção islâmica
original da condição da mulher, um indivíduo com plenos direitos à sua
sexualidade.
As instituições que estão lutando para eliminar esta prática decidiram
inclusive redirecionar seus "alvos", que eram inicialmente as
mulheres, já que é em geral a mãe, tia, avó, ou outra mulher da família quem
toma a iniciativa de providenciar os preparativos para o procedimento. Mas a
constatação de que a persistência da prática está extremamente relacionada à
recusa do homem em se casar com uma mulher não-circuncisada, fez dos homens os
novos "alvos" das campanhas de educação.
A eliminação de um costume tão firmemente arraigado é extremamente difícil e o
uso da força só servirá para levá-lo para a clandestinidade ao invés de
eliminá-lo, e ainda aumentará a resistência às mudanças culturais, mesmo que
estas sejam benéficas.
Os homens precisam entender que as relações sexuais e a felicidade no casamento
se tornarão significativamente melhores quando a genitália feminina não for
mutilada. Além disso a educação das mulheres deve ser acelerada se se pretende
que estes objetivos sejam alcançados.
Quanto a idéia generalizada de que a circuncisão feminina é um mandamento
religioso, é suficiente argumentar com não-muçulmanos e muçulmanos, que nos
países onde é praticada ela é feita tanto por cristãos e animistas quanto por
muçulmanos. É encontrada em larga escala em países cuja maioria da população é
cristã, como no caso da Etiópia, ou nos países da região sub-saariana da
África, cuja população é majoritariamente cristã e animista.
Em contra-partida, muitas mulheres muçulmanas que vivem em países que não foram
atingidos por este ritual, não são circuncisadas. Este é o caso das iranianas,
argelinas, tunisianas, sírias, sauditas e muitas outras, sem falar nas
convertidas. Seriam os habitantes destes outros países muçulmanos menos
religiosos? O Irã e a Arábia Saudita são conhecidos por sua postura ortodoxa na
prática religiosa, e nem por isto a circuncisão feminina é adotada.
É importante que a comunidade muçulmana lute para extirpar de seu meio esta
prática primitiva, e principalmente que as mulheres muçulmanas se unam para se
opor à ela, mesmo as que não estão em risco de serem submetidas à circuncisão.
O argumento de "tradição" não tem lugar nos ensinamentos islâmicos
quando se trata de algo que é prejudicial em todos os seus aspectos. O Alcorão
trata deste assunto de forma clara:
"Quando lhes é dito: Segui o que Allah tem revelado! dizem: Qual! Só
seguimos as pegadas dos nossos pais! Segui-las-iam ainda que seus pais nada
compreendessem nem se guiassem?"(Alcorão surata 2:170)
Para concluir vou citar o "sheikh" Mahmoud Shaltout, antigo
"sheikh" de Azhar, a mais famosa universidade do chamado Mundo
Islâmico, que disse:
"A legislação islâmica fornece um princípio básico, notadamente o de que
certos assuntos devem ser cuidadosamente examinados e se provados prejudiciais
ou imorais, devem ser legitimamente interrompidos, para colocar um fim a este
dano ou imoralidade. Portanto, uma vez que o dano da excisão foi estabelecido,
a excisão do clitóris não é mandatória e nem uma suposta
"sunnah"".
Artigo de Maria Moreira, responsável pelo site Islamic Chat.
Bibliografia:
Livros:"Women and the Family in the Middle East" - EUA: University of
Texas Press, 1985. Editado por Elizabeth Warnock Fernea.
"Women And Health" - Londres: Zed Books Ltd., 1991. Editado por
Patricia Smyke.
"Muslim Women's Choices - Religious Belief and Social Reality" -
Londres: Berg Publishers Ltd., 1994. Editado por Camillia Fawzy El-Solh e Judy
Mabro.
"Forty Hadith" de An-Nawawis - Síria, The Holy Koran Publishing
House, 1976.
Artigos On-Line: "Sudanese Women's
Struggle to Eliminate Harmful Traditional Practices" - de Amna Hassan,
Secretária Executiva do Comitê Nacional Sudanês sobre Práticas Tradicionais
Prejudiciais. "Epidemiology of Female Sexual Castration in Cairo,
Egypt" - Dr. Mohamed Badawi, graduado em Medicina pela Universidade de
Medicina do Cairo (1973), em Saúde Pública pela Universidade de Michigan
(1981), em Medicina Islâmica pela Universidade de Al-Azhar (1985) e atualmente
completando seu doutorado em Saúde Pública pela Universidade John Hopkins .
"Circumcision" de M. Afifi al-Akiti no site do Belfast Islamic Centre
- Centro Islâmico da Irlanda do Norte.
Artigo sobre circuncisão no Judaísmo de Tracey Rich na Enciclopédia judaica
on-line "Judaism 101".
Existem links para todos estes sites na seção de links do Islamic Chat.
http://www.geocities.com/islamicchat/links.html
Periódicos:
"Caros Amigos" - Rio de Janeiro: Ed. Casa Amarela, 1997.
"Egypt Today" - Egito: International Business Associates Group, 1998.
Referências com relação à autenticidade
duvidosa dos "hadiths" citados: "Hadith" dizendo que
"a circuncisão é "sunnah" para os homens e "makrumah"
para as mulheres".. Veja em "Silsilah al-Ahadith ifah" de
al-Albani, no. 1935 o comentário em relação à autenticidade deste
"hadith".
"Hadith" limitando o quanto deve ser retirado na circuncisão.
Relatado por Abu Dawud no livro "Kitab al-Adab", onde Abu Dawud o
classificou como "daâf" (fraco). O mesmo comentário aparece no texto
"Circumcision" de M. Afifi al-Akiti citado acima.